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2 de dezembro de 2018
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14:59

Um médico da família: Jorge, o cubano que deixa saudades em Taquari

Por
Luís Gomes
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Jorge chegou a Taquari em setembro de 2016. Ele deixa o interior gaúcho em dezembro | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Luís Eduardo Gomes

O clima no bairro Léo Alvim Faller, em Taquari (RS), é de tristeza. O lamento é por um homem que ainda não foi, mas que já está deixando saudades, o médico cubano Jorge Carlos Quevedo Tamayo, 49 anos, responsável pelo posto de Estratégia de Saúde da Família Eli da Silva. Ele é um dos 8,3 mil mil médicos que retornarão à ilha caribenha com o encerramento abrupto da parceria com o Programa Mais Médicos. No último dia 23, moradores da região e do entorno do posto organizaram um protesto, que acabou em despedida do médico que, apesar de não entenderem direito sua fala, consideravam como parte da família.

Taquari está distante cerca de 90 km de Porto Alegre. Localizada às margens do rio de mesmo nome, é a cidade mais antiga do que hoje constitui o Vale do Taquari. Com cerca de 27 mil habitantes, porém, já não é a mais importante da região, perdendo o posto para Lajeado, que possui mais de três vezes essa população e para onde muitos taquarienses se deslocam diariamente para trabalhar.

Jorge adota um estilo despojado. Por baixo do jaleco aberto, usa uma camisa pólo branca, com listras em azul e preto, compondo um degradê. Combina com uma calça jeans e um sapato social. Na segunda-feira (26), seu cabelo está bagunçado, a barba está por fazer. Profundas olheiras indicam que tem dormido pouco.

A enfermeira Jane Mari Cruz Machado, 47 anos, coordenadora do Eli da Silva, destaca que Jorge construiu um vínculo com a comunidade que vai além da relação médico-paciente. Ocorre com frequência de uma visita que o cubano faz como médico da família se estender porque os anfitriões o convidaram para um cafezinho. Volta e meia o convite era ampliado para almoços e jantares. Após o anúncio de que Cuba havia convocado os profissionais em atuação no Brasil pelo Programa Mais Médicos para retornarem à ilha, no dia 14 de novembro, os convites para churrascos de despedidas só aumentaram.

Os bombeiros locais, que examinou logo após chegar à cidade, o convidaram para uma dessas confraternizações. Um ilustre morador local também o levou para passear de barco. Desceram o rio Taquari até Porto Alegre, com direito a cerveja à vontade. A família da dentista do posto Eli da Silva o levou para um café colonial. O vice-prefeito André Brito (PDT) conta que já perdeu as contas de quantos churrascos em homenagem ao cubano já participou.

Taquari conta com dois profissionais do programa Mais Médicos desde 2013. Jorge é o terceiro cubano a trabalhar na cidade. O outro profissional dos Mais Médicos atualmente é um brasileiro, vindo do Nordeste, que atua na unidade de Saúde da Família do bairro Praia.

A enfermeira Jane explica que a comunidade atendida pelo Eli da Silva é composta pelos bairros Pinheiros, Léo Alvim Faller, União e as vilas São José e São Francisco, uma área que faz com que a unidade tenha sob seus cuidados entre 4 mil e 4,5 mil pessoas — a maior da cidade. Essas duas comunidades estão entre as áreas mais pobres da cidade.

A chefe da unidade diz que, pela extensão da área atendida, uma característica do posto é que Jorge acaba realizando consultas com uma diversidade maior de pacientes do que em outras unidades da cidade. Atende crianças, adolescentes, adultos e idosos, homens e mulheres. “É muito difícil um usuário da unidade não procurar o posto, enquanto em outros locais tem médicos que não atendem pediatria, por exemplo”, diz a enfermeira.

Jorge diz que muitos pacientes, como sabem onde mora, acabavam passando na sua casa quando tinham um problema fora do horário de atendimento do posto. O celular também não parava nunca, e continua tocando nesses últimos dias do cubano na cidade. “Ontem, desliguei o telefone de novo. Não aguentava mais”. Acontecia de pacientes oferecerem dinheiro para pagar essas “consultas extraordinárias”. Ele prontamente recusava.

A grávida Sílvia Rasquinha faz questão de ser acompanhada pelo médico cubano | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Ele escuta

Sílvia Rasquinha, 39 anos, está grávida de cinco meses. Mãe de duas meninas, Júlia, 10 anos, e Isadora, 2 anos, agora terá dois meninos gêmeos. A sua médica de referência é uma obstetra do Posto Central da cidade. Contudo, apesar de não ser a especialidade do cubano, ela prefere que o acompanhamento seja feito por ele, que conhecia pelo atendimento que tem prestado a sua mãe, hipertensa, e que nunca se eximiu de orientá-la.

“Eu preferi ficar aqui pelo tratamento. A gente vem aqui para tirar uma dúvida, nem precisa ter hora marcada”, diz Sílvia.

Ela conta que Jorge não é o tipo de médico que faz duas perguntas, uma rápida análise com o estetoscópio, anota duas ou três coisas e prescreve um remédio. Destaca a preocupação que o cubano sempre demonstra em ouvi-la, em conversar para procurar entender o que realmente está passando com o paciente.“Ele não é só um médico, acaba sendo um amigo”.

O médico acredita que 50% de um diagnóstico vem de exames. Mas os outros 50% surgem da conversa. “O paciente chegou com dor, tem que interrogar. Onde é a dor? Quais são as características? Tem que deixar o paciente falar. Às vezes, o paciente não tem nada e tu pergunta: Tá com problema em casa? Tem um problema familiar? Tá estressado no trabalho? E aí está a causa do problema”, diz.

Foi Jorge quem suspeitou que Teodoro Araújo dos Santos sofria de problemas cardiovasculares. Operador de motosserra, o taquariense trabalhava cortando mato até que, no início do ano, começou a sentir fortes dores no ombro e no braço direito. Entre o final de março e o início de abril, já não conseguia mais levantar o braço para trabalhar.

Teodoro reclama da falta de atenção de médicos que não diagnosticaram os seus problemas no coração | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Com 64 anos, mas sem o tempo de contribuição necessário para se aposentar, Teodoro decidiu então dar entrada na documentação para se “encostar”, como diz, pelo INSS. O primeiro passo era passar por uma perícia médica. Foi atendido por um cardiologista de Montenegro, que uma vez por semana dá expediente em Taquari. O diagnóstico era de que se tratava de um problema nos nervos, mas que não era o suficiente para garantir ao operador de motosserra a aposentadoria por invalidez.

Na noite do dia 18, um domingo, Teodoro começou a sentir fortes dores no peito. Foi ao plantão do Posto Central de Taquari. Recebeu uma medicação e foi encaminhado para casa. Na manhã seguinte, sua esposa, Vera Rosane dos Santos, 62 anos, ligou para o posto Eli da Silva e marcou uma consulta para as 15h.

Vendo a gravidade da situação, Vera levou Teodoro às 14h. Ele já estava em situação de enfarto. Foi colocado sobre a mesa de um consultório e recebeu os primeiros socorros de Jorge e enfermeiras do posto. Posteriormente, foi encaminhado para tratamento com um especialista em um hospital de Lajeado. Foi operado e recebeu o implante de uma mola para aliviar o entupimento de veias do braço.

Uma semana depois, Teodoro já se movimenta animado pelos corredores do posto após uma visita ao cubano, a quem credita o fato de estar vivo. “Ele é como uma pessoa comum. É a mesma coisa que uma pessoa pobre tratando a gente”, diz Teodoro. “É uma pena um médico desses ir embora”.

Depois de dois anos no Brasil, o relato dos pacientes é de que a única dificuldade que às vezes ainda enfrentam com Jorge é a questão da língua. O cubano compreende quase perfeitamente o português. Se comunica em um portunhol bastante compreensível, pontuando quase todas as frases com a palavra “irmão”, uma tradução literal que faz do “hermano” que utilizava em sua língua materna. Quando um paciente não entende um diagnóstico, Jorge tenta repetir falando pausadamente ou chama algum outro profissional do posto para ajudá-lo com a tradução.

O mesmo compromisso adota com suas receitas, escritas em letra de forma semi cursiva, com as letras separadas uma das outras, não unidas no emaranhado indecifrável que se convencionou chamar de “letra de médico” no Brasil. O cubano diz que a sua letra é até elogiada nas farmácias.

Jorge e guri moram em uma casa de um dormitório localizada em um bairro de classe média de Taquari | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Uma casa pequena e um cão

Jorge é casado com Lesvia, chefe da enfermagem na sua cidade natal, Santiago de Cuba, localizada no lado oposto da ilha, a cerca de 900 km da capital. A filha mais velha, Claudia, 19 anos, está no segundo ano do curso de Medicina. O mais novo, Cristian, 16 anos, estuda para seguir a carreira da irmã e do pai. A última visita que recebeu da esposa foi em julho. Planejava trazê-la para estarem juntos nos últimos meses da estadia no Brasil.

O cubano chegou ao Brasil em setembro de 2016. O primeiro mês foi de treinamento em Brasília, obrigatório para todos os integrantes do Mais Médicos. Passou o período no Hotel Nacional, tradicional hospedaria localizada na asa sul da Capital federal, antes de ter o seu destino definido.

Em Taquari, inicia o seu expediente por volta das 7h, quando um motorista da prefeitura passa em sua casa para levá-lo ao posto. Além das consultas, que ocorrem em maior número nas segundas e terças-feiras, o médico também faz visitas a domicílios de pacientes e trabalha com grupos de pacientes de risco. Às 17h, há outro carro disponível para levá-lo de volta para casa. Nas sextas-feiras, não trabalha no posto. Dedica o dia para cursos e atividades online obrigatórios para todos os profissionais que atuam no Mais Médicos.

A residência é uma casa de alvenaria de um piso, consideravelmente menor do que a da vizinhança do Prado, um bairro de classe média próximo ao centro da cidade. Ela é cercada por grades, como a de todos os vizinho, denotando que a preocupação com a violência é presente no interior do Estado. O aluguel é pago com o auxílio moradia que recebe da prefeitura. A sala e a cozinha compõe um ambiente único. Há um quarto e um banheiro. Há uma piscina nos fundos. O jardim é amplo, mas grama alta denúncia que o médico está prestes retornar ao seu país de origem. Mesmo com uma obra de ampliação em andamento, sobra um grande espaço na frente para Guri, um vira-latas de dois anos que Jorge ganhou de um dos motoristas da prefeitura, brincar. “Só falta falar”, resume a relação com o animal.

Guri ficará em Taquari. Voltará aos cuidados do motorista. O médico diz que, se voltasse ao seu país ao fim do contrato, em julho de 2019, provavelmente levaria o cão, mas o adiantamento inesperado do regresso o impediu de fazer os preparativos necessários. Jorge ainda nem se despediu, mas já sente saudades.

Principal ponto turístico de Taquari, a Lagoa Armênia também é palco de disputa política | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Uma cidade conservadora, um prefeito do PT

De origem açoriana, mas posteriormente tendo recebido imigrantes de outras etnias, Taquari não é das cidades mais conservadoras do interior gaúcho. Apesar de ser o primeiro prefeito do Partido dos Trabalhadores da história da cidade, Emanuel Hassen de Jesus, o Maneco, conseguiu se reeleger em 2016. Ele foi antecedido por uma gestão de Ivo dos Santos Lautert, do PDT, partido do atual vice, André Brito. Mas há uma clara mudança de maré no posicionamento político local.

No segundo turno das eleições presidenciais, o petista Fernando Haddad foi derrotado por Jair Bolsonaro por uma média de quase dois contra um a cada três votos válidos, 63,85% a 36,15%. Na comemoração da vitória, simpatizantes do candidato do PSL levaram à Lagoa Armênia, o principal ponto turístico da cidade, bustos de papelão do ex-presidente Arthur da Costa e Silva, um dos generais da ditadura militar e nascido em Taquari. A ação foi uma clara alusão à decisão tomada por Maneco em 2014 de mandar retirar o busto de Costa e Silva que ocupava um local proeminente próximo à lagoa depois que a Comissão da Verdade apontou a participação do general em violações de direitos humanos. Costa e Silva estava no poder quando o Ato Institucional Número 5 (AI-5) foi assinado, dando início ao maior período de repressão da ditadura militar.

No final do mês de novembro, o prefeito Maneco estava de férias e participando de um curso fora da cidade. Cabe então a vice-prefeito André Brito contar que quando o primeiro médico cubano, José, chegou à cidade, em 2013, foi recebido com certa desconfiança por uma parcela da comunidade. Os médicos taquarienses, em especial, teriam torcido o nariz. “Em 60 dias, as pessoas começaram a levar fé e os cubanos passaram a ser membros da família. O Jorge já não é mais médico, é amigo do bairro”. André diz hoje que já não escuta comentários críticos em relação ao programa ou aos cubanos, sequer entre a classe médica. “Eles executam um grande serviço. Infelizmente, um programa tão bonito passou a fazer parte de um debate ideológico”, lamenta.

André destaca que contratar novos médicos não é dos maiores problemas para o município, uma vez que não está tão distante da Capital e seus postos de saúde não ficam em áreas tão remotas. O Léo Alvim Faller, por exemplo, não está mais do que 10 minutos de carro distante do centro da cidade. Pouco mais de 30 minutos de caminhada. O xis da questão é a rotatividade nos postos de trabalho.

O vice-prefeito André Brito aponta a alta rotatividade como a principal dificuldade enfrentada pelo município para repor a saída de médicos | Foto: Guilherme Santos/Sul21

O vice-prefeito comenta que é muito comum que profissionais assumirem a titularidade de um posto de Saúde da Família, mas pedirem exoneração do cargo após meses porque foram aprovados em outra residência. A não obrigatoriedade de permanência por nenhum tempo específico pode ser um atrativo para os médicos brasileiros, mas torna-se um prejuízo para os moradores que não conseguem criar vínculos com seu profissional de referência. “O Mais Médicos trouxe estabilidade ao município”, diz.

Jorge evita falar em política, diz que debates com esse viés não têm espaço em seu consultório, mas lamenta a polêmica criada em torno da presença de seus compatriotas no País. “Nossa função é social. Nenhum dos médicos faz política para nenhum partido. A minha política é trabalhar pelas pessoas pobres. E eu sei que é difícil um médico vir trabalhar aqui, é a parte mais pobre da cidade. Eles vêm, fica um dia e vai embora”, diz.

Ele considera que o Mais Médicos foi usado pelo futuro governo brasileiro para criar um problema político com a ilha. “Os Estados Unidos estão por trás disso. A CIA está aqui, tratando de criar um problema político entre Brasília e Havana. Mas quem está no meio e paga a conta é o povo brasileiro.”

O médico diz que não se sente explorado pelo fato do governo de seu país ficar com 70% de seu salário. “Antes de vir para cá, nós assinamos um contrato. Quem não aceitava, não aceitava e ponto”, afirma.

Ele argumenta que por Cuba ser um país pobre, alvo de um bloqueio econômico, compreende que o dinheiro que enviam para a ilha seja usado para garantir serviços públicos para os compatriotas. “A saúde de Cuba é totalmente de graça. Não existem clínicas privadas. O governo financia todos os medicamentos, tudo é barato. O mesmo com a educação. É educação de primeira, saúde de primeira, irmão. Tem hospitais 24h e tudo flui rapidamente”.

Mais atenção, menos remédios

A atenção que Jorge dá aos pacientes e as relações que constrói a partir disso faz com que muitos deles prefiram procurar ele a outros médicos quando buscam orientações de saúde, mesmo que as dúvidas sejam de especialidades que não sejam aquelas praticadas pelo cubano.

Jorge não gosta de liberar o paciente sem algum tipo de resposta, mesmo que o problema apresentado não seja de sua área. Quando o problema é de natureza otorrino, como é especialista na área, trata ele mesmo. Caso não seja, pede auxílio aos colegas cubanos que tem essa especialidade. Ele diz que os compatriotas que participam do Mais Médicos se organizam em grupos de WhatsApp em que discutem as situações que aparecem em seus consultórios para conseguir dar um primeiro encaminhamento já no posto. “Nos ajudamos entre todos os cubanos, irmão”. Ele também é fã da plataforma Telessaúde, que utiliza para tirar dúvidas. “Não pode ficar com uma dúvida porque é pior, o paciente tem que sair da consulta com algum diagnóstico”. Quando essas vias não são suficientes, se esforça pessoalmente para ajudar o paciente a conseguir uma consulta.

O aposentado Delmar Garcia, 71 anos, é um dos pacientes que hoje procura com frequência o médico cubano, nem que seja para uma conversa, antes de um especialista de outra área. Vítima de depressão, um antigo psiquiatra havia prescrito a ele um extenso coquetel de remédios, que incluía Talopram, Donarem, Ansitec, Diazepam, Lorazepam, Nootropil, e várias outros que sua esposa, Maria Erci Brandão de Oliveira, 64 anos, não consegue recordar de cabeça.

Delmar e Erci destacam que Jorge é um médico que trata os pacientes como se fosse de casa | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Os medicamentos tinham por objetivo controlar o sofrimento psíquico de Delmar, mas o custo era alto. Os efeitos colaterais da combinação de diversos remédios fizeram com que não conseguisse mais levantar os braços, apresentasse dificuldades para andar e a sua capacidade de conseguir articular a fala estivesse minguante. “Eu tomava um punhado de remédios por dia e não adiantava nada”.

Foi o cubano que sugeriu que Delmar trocasse de psiquiatra e procurasse outro que não tivesse um gatilho tão rápido na hora de prescrever novas medicações a cada sintoma que o aposentado denunciasse. Jorge lamenta a dependência que a medicina brasileira tem com a indústria farmacêutica. Argumenta que o uso de diferentes tipos de medicamentos combinados pode ser mais prejudicial à saúde dos pacientes, como no caso de Delmar.

Acredita que muitos dos sintomas reclamados pelos pacientes do posto não demandem medicação, podendo ser tratados com chás, acupuntura ou mesmo sendo naturais da idade. “Sou um adepto da medicina chinesa, é menos invasiva”, diz o médico. É adepto também da psicoterapia. Da boa conversa. Uma consulta de Jorge dura pelo menos 10, 15 minutos, mas por vezes se estende por mais. Ao final, muitas vezes vai contra a vontade do paciente de sair da consulta com uma receita para levar à farmácia.

A agente de saúde da família Adriana Silva 44 anos, da equipe do Eli da Silva diz ver na prática o resultado dessa postura e que, de fato, muitos dos problemas de saúde reclamados pela comunidade se resolvem já na conversa. “O nosso povo tem muita vontade de ser ouvido e o Jorge é mais que um médico, é quase um psicólogo”, diz

Antes de conversar com Delmar, fomos avisados de que ele já não se comunicava muito bem e havia ficado muito tímido, então a esposa Erci falaria mais por ele. Mas o médico cubano, como tópico, parece ser um remédio para a inibição do aposentado. Não só fala, como se emociona. “Ele trata a gente como se fosse de casa”, diz. “Se ele passa pela gente, não entrando para conversar, dá adeus. Tem muitos médicos que não dão nem adeus”.

O temor de Erci e Delmar é que, com a saída de Jorge, o posto fique sem um médico titular ou ainda volte a sofrer com o problema da rotatividade de profissionais alertado pelo vice-prefeito. Erci teme que um “médico daqueles que têm nojo de gente” o substitua.

Adriana acha difícil que a Prefeitura encontre um médico que trabalhe no posto por 40 horas. “Acho que vão voltar as filas para cá”, diz.

Idas e despedidas 

O interior do Rio Grande do Sul não é a primeira experiência de Jorge no exterior. Para dizer a verdade, a pequena cidade do Vale do Taquari talvez seja a menos “aventureira” na comparação com as paradas anteriores. Formado em 1994 em Havana, sua primeira experiência foi em uma área rural de Cuba, com a atenção primária. Posteriormente, passou por uma especialização em clínica geral com três anos de duração, que seriam sucedidos por mais uma residência em otorrinolaringologia. Suas boas notas lhe possibilitaram um lugar na Brigada Henry Reeves, corpo médico criado pela ilha em 2005 para auxiliar no atendimento de situações de desastres e graves epidemias. A brigada o levou para trabalhar em países como a Venezuela e a Guatemala.

No exterior, atua sempre como clínico geral e na atenção primária. “Eu adoro trabalhar na atenção primária, porque cria um vínculo mais direto entre o médico e a população. No hospital é diferente, o paciente entra e sai”.

Jorge diz que aprendeu em Cuba a praticar essa medicina uma cuja base é olhar nos olhos do paciente, em que a criação de vínculos não só não é vista negativamente, como é estimulada. “Todos os médicos cubanos são preparados para tratar o paciente olhando para sua parte humana. O nosso sistema de saúde é assim, irmão. Quando triunfou a revolução, Cuba ficou quase sem médicos. E foi se criando uma saúde que creio é própria de Cuba, em que se olha sempre para a parte humana do paciente. Por isso muitos brasileiros vão sentir saudades”.

Não só os brasileiros. Jorge já se despediu outras vezes. Muitas lágrimas rolaram. Na Guatemala, durante onze meses foi o médico responsável por atender uma tribo indígena que vivia em uma floresta atingida por um terremoto. Não tinha acesso à água potável, à saneamento básico, à energia, mas se apaixonou pela experiência. Chorou ao ser transferido para um posto de saúde de uma cidade local.”Fui muito feliz naquele lugar. Sem luz, dormindo em uma cama de madeira, com um colchão magrinho que todo dia eu acordava com dores na coluna, mas era feliz”.

A pior despedida, no entanto, está sendo no Brasil. Conta que brinca com a esposa dizendo que, apesar de ser uma pessoa de choro fácil, vai deixar a cidade com as pálpebras secas por pelo menos três meses. “Não pensei que aqui em Taquari fosse assim. O acolhimento das pessoas foi muito melhor. Aqui fiz meus melhores amigos, amizades sinceras, de coração, que não tenho em Cuba.”

Jorge está acostumado com despedidas, mas diz que nunca tinha sentido tanto quanto dessa vez | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Quem vai substituir Jorge?

O vice-prefeito André diz que a saúde no interior do Rio Grande do Sul, como um todo, está estrangulada pela falta de repasses do governo estadual. Em Taquari, 23% do orçamento já é destinado para a área, o que, segundo a Prefeitura, já está no limite do comprometimento possível. Ainda assim, há vagas para a contratação de médicos. Há um concurso aberto para um médico que atenda 20h, com salário de R$ 6.481,81, ou 40h, com vencimento de R$ 12.861,45. Com o adicional de 20% por insalubridade, o salário torna-se mais vantajoso do que aquele pago pelo governo federal no Mais Médicos. A ideia é preencher uma vaga aberta por um pedido de demissão recente de um dos postos de saúde do município. Mas, caso a vaga de Jorge no programa não seja preenchida, uma segunda vaga no concurso pode ser aberta.

A municipalidade estuda encaminhar uma correspondência ao governo cubano solicitando a elaboração de uma parceira direta para a permanência do profissional na cidade. Mas, a essa altura, ainda é mais um desejo do que possibilidade concreta.

A esperança mais realista é que o médico seja substituído por outro profissional na esfera do programa, o que traz uma estabilidade maior, visto que garante um período mínimo de permanência na cidade. Além disso, há o alivio financeiro. A Prefeitura custeia atualmente apenas R$ 3,5 mil em auxílios moradia e refeição para os profissionais do Mais Médicos que atuam na cidade. O salário é pago pelo governo federal.

O vice-prefeito comenta que, na realidade, a administração municipal está em uma situação de total insegurança, uma vez que sequer foi notificada oficialmente pelo Ministério da Saúde sobre quando o cubano deixaria de trabalhar pelo programa.

Na segunda-feira, nem Jorge sabia ainda quando voltaria. Fala que uma possível data era o dia 4 de dezembro, mas ainda tinha dúvidas sobre a confirmação do retorno. Enquanto a situação não se resolve, continua atendendo, sem saber se poderia ou não. “O que eu vou fazer em casa? Ficaria até deprimido”, diz o cubano.


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