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8 de dezembro de 2018
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11:06

“Tinta Bruta” retrata solidão em Porto Alegre pelo olhar de “uma bicha que reage” às violências

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Sul 21
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Como Garoto Neon, Pedro pode ser tudo o que não é na “vida real” | Foto: Divulgação/ Tinta Bruta

Débora Fogliatto

Premiado em Berlim, em Montreal, no Rio de Janeiro, e exibido em diversos festivais no país e no mundo, o gaúcho Tinta Bruta estreou nos cinemas brasileiros — incluindo em Porto Alegre, cidade onde foi gravado — nesta quinta-feira (6). O segundo longa dos diretores Filipe Matzembacher e Marcio Reolon, lançado três anos após Beira-Mar, traz um protagonista alguns anos mais velho do que os adolescentes do primeiro filme, tentando se encontrar em uma cidade que parece querer fazê-lo se perder.

Assim como Beira-Mar, Tinta Bruta tem um jovem gay como protagonista, mas não trata da sexualidade de Pedro como um motivo de conflito pessoal interno. Pelo contrário, o tema é abordado justamente na relação dele com outros, seja de forma afetiva ou pelos preconceitos que sofre. O filme, dessa forma, expõe as violências pelas quais as pessoas LGBT passam, e as consequências que sofrem se respondem a elas.

“Todo mundo vai embora dessa cidade”, constata Pedro em certo momento. Dentre os diversos conflitos pelos quais o protagonista de Tinta Bruta passa durante o filme, a partida de pessoas que ama é possivelmente o que mais o afeta. Enquanto responde a um processo criminal, Pedro tem que lidar com a mudança da irmã, com quem mora, de Porto Alegre para a Bahia.

Segundo os diretores, essa atmosfera de cidade-fantasma, aparente em cenas em que as ruas do Centro aparecem vazias e placas de ‘vende’ são mostradas em apartamentos, foi baseada na sua própria experiência como jovens moradores da capital gaúcha. “Queríamos muito falar sobre abandono e despedida, muito resultado da relação que estávamos sentindo com Porto Alegre. Foi se tornando uma cidade violenta, hostil, menos atrativa para a juventude. A gente percebeu que dos nossos dez melhores amigos, seis ou sete estavam morando fora. Uma debandada assim”, resume Filipe.

A cidade funciona como um personagem do filme, quase um antagonista, como define o diretor. Antes de ir embora, a irmã de Pedro, Luísa, o faz prometer que irá sair para caminhar todos os dias, “pelo menos por cinco minutos”. Mas as ruas não parecem amigáveis e Pedro literalmente conta cada segundo de seus passeios para poder voltar logo para casa, assombrado por olhares de vizinhos e passantes, que parecem julgá-lo.

Pedro e a cidade que todos abandonam,, quase antagonista do filme | Foto: Divulgação/ Tinta Bruta

“O filme é muito sobre o olhar, e o Pedro tem uma relação com o ato de olhar que é muito interessante. Ele se sente muito violentado por olhares, porque especialmente se tu faz parte de algum grupo social marginalizado, um olhar pode ser muito violento, porque tu nunca sabe qual a natureza daquele olhar”, destaca Filipe. No caso do Pedro, são vários fatores que motivam esses olhares: preconceito por ele ser gay, interesse, ou julgamento por saberem do crime cometido por ele um ano atrás.

Ao mesmo tempo, é em casa, para onde Pedro sempre volta, que ele se sente seguro e onde encarna o personagem Garoto Neon, que faz performances sensuais para desconhecidos pela webcam, pintado com tintas coloridas. A internet, um quase-cenário do filme, também está relacionada à questão dos olhares, tão presentes ao longo da história. “A gente quis fazer um paralelo, a questão da postura de julgamento da sociedade com a internet. Porque são pessoas anônimas as que aparecem nas janelas, silhuetas sem definição. Para a gente era muito interessante o filme estar cercado pela ideia do olhar”, resume Filipe.

Como Garoto Neon, Pedro rebola e seduz os espectadores, enquanto na vida fora da internet, é tímido, não fala muitas palavras e em certo momento afirma categoricamente: “eu não danço”. Filipe destaca que essas diferenças entre Pedro e Garoto Neon são uma forma do próprio personagem expressar o que não consegue no seu dia a dia. “Esses sites, por mais que sejam pornográficos, são muito semelhantes às redes sociais, em que a gente precisa ser uma persona para dialogar. Acho que é muito uma versão idealizada de quem o Pedro gostaria de ser, essa pessoa viva, colorida, sensual, e o Pedro não consegue ser isso. Ele foi colocado de lado pela sociedade e na internet ele consegue criar esse personagem e se comunicar”, resume.

Poster oficial do filme | Foto: Divulgação/ Tinta Bruta

O público que o assiste pela internet paga pelas performances, que são a única fonte de renda de Pedro/Garoto Neon. É por isso que ele fica tão frustrado quando a irmã conta, antes de ir embora, que alguém está “roubando” a ideia dele, também performando na webcam coberto por tintas neon. É a partir daí que Pedro conhece Leo, com quem inicia uma relação que passa por diversas fases. Mesmo tendo personalidades completamente distintas, os dois estão conectados, além de pelas performances, pela violência que os cerca e o abandono que ambos sentem no seu dia a dia.

Enquanto Leo é um dançarino, em busca de uma bolsa de estudos no exterior, com um grande grupo de amigos, Pedro abandonou a faculdade de Química e não mantém laços afetivos com praticamente ninguém. Na pele de Pedro, o estreante Shico Menegat transpõe para a tela os sentimentos de um jovem que parece ser incapaz de se relacionar, mas na realidade vive com a permanente sensação de estar sendo abandonado. Quando percebe que consegue sentir afeto e até amor por outra pessoa e ser correspondido, Pedro se transforma.

No início do processo de desenvolvimento do filme, Pedro foi concebido antes do Garoto Neon, e essa questão do abandono foi central para a história, conforme Filipe. Mas, para além disso, também foi importante criar um personagem que não apenas aceitasse passivamente as violências da vida. Pelo contrário, Pedro é alguém que constantemente reage.

“Queríamos fazer um personagem reativo, que sofreu diversas violências conforme a vida foi passando, mas teria essa característica de reagir. É até um vício de algumas narrativas de ter personagens gays que são vítimas de opressões, mas ele não passa dessa vítima. Para nós era muito importante ter uma bicha sempre pronta para reagir, responder”, conta o diretor. A ideia de transformá-lo também em um performer veio enquanto os diretores pesquisavam sobre a indústria pornô para outro projeto e se depararam com sites em que pessoas realizam performances eróticas em frente às webcams.

“Uma vez que o Pedro não pode mais sair de casa, ele vive quase uma agorafobia, dentro do quarto dele, encontra uma maneira de além de ser um sustento, conseguir seguir se comunicando e viver a sexualidade dele. Porque a sociedade cerceou isso para ele”, aponta Filipe. O filme tem um tom erótico, diferentemente de Beira-Mar, em que o desejo ficava de certa forma contido, ainda sendo descoberto pelos perotagonistas. “A gente queria falar de sexualidade, essa questão do erotismo é um tema que nos interessa muito, o desejo é um elemento essencial do ofício do protagonista. Então o filme tinha que ser imbuído nesse desejo, nesse erotismo para fazer sentido”, aponta.

Encontrar um ator para interpretar um personagem com tantas nuances não foi um processo fácil, segundo Filipe. Enquanto Bruno Fernandes foi a “primeira e única opção” para interpretar Leo, Shico Menegat nunca havia atuado anteriormente quando Márcio e Filipe o conheceram. “O Bruno era ator de teatro, quando o vimos na pela ‘Qual a diferença entre o charme e o funk?’, sabíamos que queríamos trabalhar com ele. E escrevendo o roteiro, pareceu muito interessante ele como Leo, ele tem essa característica de entrar no espaço e preencher”, conta.

Já Shico foi “encontrado” enquanto discotecava em uma festa que os diretores compareceram. “Queríamos um ator que tivesse uma fragilidade na aparência, e no olhar tivesse uma intensidade. Ficamos procurando um ator pro Pedro em Porto Alegre, até pelo filme falar tanto da cidade. Um dia estávamos numa festa e o Shico estava discotecando, não conhecíamos ele. A gente viu ele e pensou que tinha as características que queríamos no Pedro, ele estava ali com aquele cabelo preto comprido pesado, aparência magra meio andrógina, tatuado”, relata Filipe.

Os diretores o abordaram e marcaram um café para conversar sobre o filme. Shico já conhecia o trabalho da dupla em Beira-Mar e nunca havia atuado ou frequentado aulas de teatro. “A gente ficou sete meses ensaiando com os dois [Shico e Bruno]. Começou quase como uma terapia em grupo, para desenvolver interesses em relação ao filme, aos personagens, daí começamos texto, processos teatrais, incluímos outros personagens”, conta Filipe. Apesar desse ser o primeiro trabalho de Shico, o diretor constata: “acho que agora ele vai continuar atuando”.

E não é à toa que Filipe destaca isso, pois a atuação de Shico, premiado como melhor ator no Festival do Rio, é um dos grandes triunfos do filme, cuja história é centrada no personagem e suas reações diante da vida. Guiado pelo roteiro escrito pelos próprios diretores, o ator de 25 anos, com seus cabelos encaracolados frequentemente bagunçados em frente ao rosto, encarna o personagem de forma intrigante e sensível, utilizando bastante linguagem corporal, olhares e poucas palavras.

Mesmo contando uma história de cunho particular, o filme se relaciona também com o momento político atual do país, que elegeu um presidente que constantemente desrespeita as pessoas LGBT. O golpe de 2016, inclusive, foi destacado por Filipe como um momento no qual os diretores já estavam escrevendo o roteiro e se depararam com sentimentos de raiva, os quais quiserem passar para a história.  “Aconteceu o golpe de 2016 quando a gente estava no auge da escrita, e daí tinha essa raiva, desespero que a gente decidiu canalizar no personagem. E ele estreando agora parece ter dupla importância”, resume o diretor.

Pedro e Leo durante performance conjunta no filme | Foto: Divulgação/ Tinta Bruta

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