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8 de novembro de 2018
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22:43

Presidente do Padre Cacique sobre Quilombo Lemos: ‘vão sair nem que seja a última coisa que eu faça’

Por
Sul 21
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Foto de Sandro (E) com seu pai, Jorge (D), que foi zelador do Asilo | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Débora Fogliatto

Para o presidente do Asilo Padre Cacique, Edson Brozoza, a comunidade ameaçada de despejo do terreno localizado nos fundos da instituição não é um quilombo, e sim uma “invasão afrodescendente”. Em entrevista no final da tarde desta quinta-feira (8), Brozoza reiterou sua insatisfação com a permanência dos moradores, que quase foram removidos na quarta-feira (7), mas acabaram conseguindo permanecer no local após mediação da Defensoria Pública. Ele afirma que há ameaças por parte da família de “invadir o asilo”.

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O presidente explicou que o asilo está sofrendo com falta de verbas, dependendo do apoio da comunidade, pois o que conseguem com o aluguel dos 33 imóveis que possuem não é suficiente para cobrir os gastos. O poder público, segundo ele, não os auxilia em nenhuma instância. Em um discurso que misturou a questão pontual do asilo com o cenário político nacional, ele afirmou que quando o presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) assumir o governo, irá “acabar com essa palhaçada”.

Criticou, ainda, o fato de instituições de direitos humanos e de defesa dos negros e pobres nunca terem ajudado o Padre Cacique, enquanto agora querem apoiar o Quilombo. “Direitos humanos que só ajudam bandido, marginal. Nunca recebi no asilo nenhum movimento de direitos humanos, nenhum movimento negro e quilombola pra ajudar os meus pretinhos queridos, que nós temos aqui. Agora vieram dar apoio pra essa família que de quilombola não tem nada. Não podemos confundir quilombo com invasão afrodescendente. Isso é um bando de marginais reunidos”, afirmou.

Brozoza disse que se família invadir o asilo, “vai dar morte” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Segundo ele, funcionários foram ameaçados com facão e houve também ameaças por parte dos moradores de invadir o asilo. Brozoza disse que irá dormir no local e que, se houver invasão por parte da família, “vai dar morte”. “Eles só vão entrar no asilo passando por cima de mim. Uma dezena pelo menos, eu levo pro inferno. Não vão explorar o asilo, tomar conta do patrimônio do asilo”. Embora de início tenha falado que os moradores eram “invasores”, depois contou a história de como a família chegou ao local. “Na marra, no tapetão, ninguém vai ganhar, e esses invasores vão sair daí nem que seja a última coisa que eu faça na minha vida, de qualquer jeito. E se invadirem nosso lar, vai dar morte”, colocou.

A maior casa que existe no terreno era moradia do zelador, Jorge Alberto Rocha de Lemos e sua esposa, Delzia Gonçalves de Lemos. Ambos trabalhavam no asilo e, por isso, podiam morar no local. Com a morte de Jorge, em 2008, a instituição iniciou o processo de reapropriação da área, através de uma ação de reintegração de posse. Segundo Brozoza, familiares dele teriam se apossado ilegalmente do imóvel e, desde então, o Asilo estaria tentando dialogar com a família para negociar a sua saída.

Em certo momento, o presidente disse que o asilo precisava da casa pois era necessário ter um zelador, mas também relatou que a ideia atualmente é usar o terreno pra construir um centro de convivência e “creche” para idosos, onde eles possam ir durante o dia. Os recursos para a obra, que contemplariam 150 idosos, já estariam garantidos pelo Fundo Municipal do Idoso e há planos de também buscar verbas pela Lei Rouanet.

Brozoza garante que pode provar que a comunidade não é um quilombo e pretende encaminhar uma notícia-crime para a Polícia Federal para que seja instaurado um inquérito sobre falsidade ideológica por parte da família. “Eu vou debater sobre isso ser terra de quilombo, eu tenho como demonstrar que isso tudo é uma farsa. A justiça há de vencer”, acredita.

Imagens do projeto de creche para idosos e centro de convivência que seria feito na área do quilombo | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Quilombo é reconhecido pela Fundação Palmares

Também hoje, por outro lado, o Quilombo Lemos foi reconhecido como tal pela Fundação Cultural Palmares, responsável pela emissão de certidão às comunidades quilombolas e sua inscrição em cadastro geral. Agora, o processo segue para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que define as demarcações. Foi esse o argumento utilizado pelo advogado da comunidade, Onir Araújo, para pedir que o processo seja avaliado pela Justiça Federal.

Em reunião nesta manhã, na Secretaria de Segurança Pública, ele levantou este ponto e obteve a garantia, por parte do tenente-coronel Mario Augusto da Silva Ferreira, de que não haverá reintegração da área pelo menos até segunda-feira (12). A partir de agora, Onir irá conversar com a Defensoria Pública da União e o Ministério Público Federal sobre o assunto “Não tem mais nenhum vício formal ou juízo de valor que possa ser feito a respeito da comunidade quilombola aqui. É reconhecida dentro dos trâmites normais e legais pela legislação brasileira e internacional”, afirmou.

De qualquer forma, a família está em vigília. Na comunidade, o clima era bem diferente do descrito por Brozoza. Nesta tarde, ao invés de facões e ameaças, havia uma série de apoiadores dialogando, fazendo uma roda de música, além de crianças brincando e uma mesa com lanches. No final de semana, irão ocorrer atividades culturais no local para apoiar os Lemos.

Filho dos antigos zeladores, Sandro Gonçalves de Lemos lamenta a intransigência da presidência atual do Asilo. “Meu pai trabalhou por 46 anos no asilo, minha mãe, 35 anos. Ele deu a vida por esse trabalho. Literalmente, ele morreu trabalhando. Nunca lesamos o asilo em nada, tínhamos uma boa relação quando eram as freiras”, conta. Segundo ele, quando Jorge chegou no terreno, o local era “terra de ninguém” e ele que se instalou no local e depois passou a trabalhar para o Asilo, ainda na década de 1960.

O reconhecimento como remanescente de quilombo se dá pelo fato de que a bisavó de Sandro, já falecida, foi uma das fundadoras do quilombo Maçambique, em Canguçu. “São 70 famílias, todas têm meu sangue. E por isso que não saiu antes, a gente depende da Fundação Palmares, tem todo o processo. Já fomos reconhecidos”, conta. A jornalista Elisa Casagrande, cujo projeto de mestrado é justamente a respeito do reconhecimento de quilombos urbanos, explica que a família Lemos se encaixa na denominação. “Não se questiona se eles são remanescentes, o quilombo urbano é exatamente isso”, afirma.


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