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4 de novembro de 2018
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10:29

Pequenas livrarias resistem em meio à crise editorial e ao fechamento de grandes redes

Por
Sul 21
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Desenho retrata a escritora Virginia Woolf na parede da Padula Livros | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Débora Fogliatto

Na última segunda-feira (29), a rede de livrarias Saraiva, a maior do país, anunciou o fechamento de 20 das suas 104 lojas em todo o Brasil. Em nota sobre o assunto, a empresa citou “desafios econômicos e operacionais do mercado”. Poucos dias antes, a Livraria Cultura entrou com pedido de recuperação judicial, depois de dois anos de atrasos em pagamentos a editoras. Anteriormente, a Cultura já havia fechado todas as lojas da Fnac após adquiri-la e encerrar as atividades também de sua loja no Rio de Janeiro.

Na nota divulgada pela Saraiva, a livraria cita ainda a expansão das vendas online, que representam atualmente 38,4% do negócio. A chegada da Amazon ao Brasil, em 2014, foi um ponto significativo nessa mudança de hábitos de compra em relação aos livros. As dificuldades enfrentadas pelas grandes redes acabam agravando a situação das editoras, que não recebem ou recebem com atraso os pagamentos pelos livros, também passando a estar em crise.

Mesmo com todas as dificuldades do mercado editorial atual, livrarias menores, de nichos específicos ou sebos parecem estar prosperando mais do que as grandes empresas. Em Porto Alegre, desde 2014, pelo menos quatro novos comércios do tipo abriram na região central da cidade, dos quais dois neste último ano, enquanto a Bamboletras, tradicional livraria independente da cidade, foi vendida e está sob nova administração.

O que não significa que as pequenas tenham passado incólumes pela crise. A Palavraria, uma das mais conhecidas na cidade, que atuou por 13 anos, encerrou as atividades em 2016. Ainda hoje é difícil apontar exatamente o que levou a Palavraria a fechar, mas Mauro Meirelles, sócio-proprietário da Cirkula, livraria e editora que reúne algumas semelhanças com a Palavraria, ressalta que as dificuldades enfrentadas pelas grandes também atinge as pequenas.

Editora e livraria Cirkula está localizada na avenida Osvaldo Aranha | Foto: Guilherme Santos/Sul21

“O grande desafio é resistir, porque as grandes livrarias geraram uma desconfiança nas editoras. O pessoal olha e diz ‘se a Saraiva e a Cultura fecharam, as outras também vão’. Recentemente eu liguei para um editora e eles disseram que tiveram problema com a Saraiva e agora só fazem venda, não fazem mais consignado”, relata. A consignação consiste em um modelo, predominante no mercado livreiro no Brasil, em que as editoras repassam os livros sem custo e só recebem o dinheiro por eles após a venda, juntamente com os exemplares que restaram.

Ou seja, por problemas financeiros, as grandes livrarias deixaram de pagar ou atrasaram o pagamento das consignações, gerando a desconfiança mencionada por Mauro. “O que a Cultura e a Saraiva fizeram foi justamente matar a diversidade de livrarias. Compraram a Siciliano, a Fnac, e estão fechando lojas. Agora só temos essas duas de livrarias grandes”, destaca.

É nesse cenário que surgem iniciativas como a própria Cirkula, criada como uma editora independente em 2013 e concretizada como loja física em fevereiro deste ano. Mas por que essas pequenas livrarias continuam abrindo e como prosperam? Alguns dos motivos apontados pelos proprietários dessa nova leva independente é justamente o fato de serem menores, em geral voltadas para um tema e um público específicos, terem atendimento qualificado, feito por pessoas que gostam de ler e entendem de livros, e se preocuparem com a comunicação feita pelas redes sociais.

“Tem livrarias como a nossa e tem outras também surgindo que apostam num acervo interessante, fidelização do público, e pessoas que saibam conversar a respeito de livros. Não é um mero atendente de balcão que vai ver num sistema online. Porque na Saraiva e na Cultura os caras olham naquele balcão onde está o livro e dizem onde está, mas nem sabem do que se trata”, avalia Milton Ribeiro, proprietário da Bamboletras, a mais tradicional livraria independente da cidade, adquirida por ele em março deste ano.

Ribeiro lembra que, logo que abriu a loja em Porto Alegre, a Cultura contava com atendentes mais especializados, mas, para baratear os custos, acabou optando por contratar trabalhadores menos qualificados. “A maioria das pessoas que entra aqui fala que não gosta de comprar lá [em shoppings] porque ninguém vem atender. É relacionado ao ambiente, lá não tem só livro, é uma coisa meio separada do cliente”, aponta Marina Leal, sócia da Padula Livros, inaugurada há um ano no Centro da cidade.

Livraria Cirkula conta principalmente com livros de ciências sociais e humanas | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Outra questão apontada por Mauro é justamente o fato de os pequenos negócios terem um caráter mais “familiar”. “Empresa grande tem que dar retorno para acionista”, resume. Já sua sócia, Luciana Hoppe, destaca a relação com os clientes. “O mais legal é a frequência das pessoas que vêm sempre, tu começa a construir uma relação com as pessoas, não é só um cliente”, destaca.

Algumas destas livrarias apostam em nichos determinados, como a Baleia, que há quatro anos e meio existe no espaço multicultural Aldeia, no bairro Santana. Lá, a proprietária, Nanni Rios, faz a curadoria dos livros, priorizando os escritos por mulheres e pessoas LGBTs (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais), e dá especial destaque a autoras negras.

Já a Taverna e a Cirkula contam especialmente com livros de ciências humanas e sociais, o que está diretamente conectado com a formação dos proprietários. Mauro é doutor em Antropologia, e os sócios da Taverna também estudaram ciências sociais. “Desde o início o acervo era muito focado em ciências humanas, sociologia, antropologia, ciência política, história, filosofia, e com clássicos da literatura e da arte”, conta o proprietário Ederson Lopes.

Títulos já lançados pela editora Taverna | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Um pouco mais sobre cada livraria independente:

Bamboletras
Rua Gen. Lima e Silva, 776 – Cidade Baixa

Há 23 anos no mercado, a Bamboletras é a mais antiga das pequenas livrarias, mas recentemente foi vendida pela idealizadora, Lu Vilella, para Milton Ribeiro, que trabalhava como jornalista e já era um antigo frequentador e parceiro do local. “Ter comprado a Bamboletras foi o maior aprendizado da minha vida. Sempre sonhei, sempre quis ter uma livraria. Então era o cumprimento de um sonho”, conta ele, que fez um acordo com a antiga proprietária e irá pagá-la de forma parcelada até 2021.

“Ela queria uma pessoa que conhecesse livros, gostasse muito de literatura e que desse sequência ao trabalho na Bamboletras. Combinamos que com o lucro da própria livraria eu poderia pagá-la”, relata Milton. “Tem gente que vem para esse lado da cidade apenas para visitar a Bamboletras, as pessoas esperam que tenhamos um acervo diferenciado e acho que é isso que nos leva a estar pagando as contas”.

Ele destaca que uma das dificuldades enfrentadas pelas pequenas livrarias é que as distribuidoras tentam “empurrar” os best-sellers que vendem na Saraiva e na Cultura. “As pessoas vão às livrarias pra se surpreender. Na internet tu que dirige a pesquisa, vai encontrar o que tu quer, mas dificilmente vai encontrar surpresas”, avalia ele sobre o crescimento dos negócios online de venda de livros.

Cirkula
Av. Osvaldo Aranha, 522 – Bom Fim

A quadra da avenida Osvaldo Aranha em frente ao Instituto de Educação estava praticamente abandonada pelo comércio, mas desde o início deste ano a Cirkula revitalizou o espaço. Nascida de um grupo de professores que queria publicar um livro e decidiu abrir uma editora, a Cirkula foi crescendo, inicialmente com vendas pela internet, até se tornar um espaço físico, que também conta com um café e um auditório. “A ideia é a largo prazo ser um centro cultural, fazer um espaço com música, aulas abertas com professores de universidade”, conta Mauro.

Luciana Hoppe e Mauro Meirelles, sócios na livraria Cirkula. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Os proprietários definem a Cirkula como uma livraria acadêmica, e falam com orgulho que possuem todos os livros da editora Boitempo, a coleção de publicações da UFRGS e da Unesp e são o único local que vende a editora Piaget. “A pequena livraria trabalha com produtos de nicho, destinados a um público específico. Nós nos dedicamos a um público acadêmico, a boas traduções”, diz Mauro.

Além da relação com os clientes, dentre os quais eles afirmam que muitos são “fixos”, Luciana e Mauro destacam que um dos grandes diferenciais em relação às grandes livrarias é o fato de os proprietários serem pessoas apaixonadas pelo que fazem. “Se fosse pra resumir em uma frase eu diria que, o cara que tem uma pequena livraria ama o que faz”, diz Mauro. Para Luciana, mesmo que a livraria, por seu pouco tempo de funcionamento, ainda não dê lucros, o trabalho já é gratificante. “Nem tudo é retorno financeiro”.

Baleia
Rua Santana, 252 – Farroupilha

A Baleia nasceu há quatro anos e meio, após a proprietária Nanni Rios ter passado quatro anos trabalhando na editora L&PM, onde adquiriu conhecimento sobre o mercado editorial, e de onde surgiu a inspiração para fundar um espaço com curadoria e atrelado à uma causa. “Acho que livro, literatura, cultura, arte, precisa ter esse vínculo político. Eu nunca quis ter uma livraria lotada de livros de autores homens, porque as outras já fazem isso. Vou mobilizar as minhas forças pra ter um acervo predominantemente feminino”, explica.

Os livros vendidos por ela, em geral, não são os oferecidos pelas distribuidoras e editoras. Muitas vezes, inclusive, não é possível consegui-los por consignação e Nanni precisa comprar os exemplares para então disponibilizá-los na Baleia. “Isso demanda, além deste investimento de tempo, busca e pesquisa, muitas vezes um investimento financeiro. Eu acho que não posso me dizer uma livraria que quer ser representativa de direitos humanos e feminista sem ter determinados títulos”, destaca ela.

Em contraste com as grandes livrarias, que colocam os “best-sellers” em destaque, Nanni escolhe os livros e os organiza de forma a relacionar os assuntos entre eles, para facilitar a busca do leitor. “O leitor que é o nosso público é o que aprecia a curadoria, que olha um livro e daí vê que o livro do lado é sobre o mesmo assunto e acaba levando os dois. Ele tem a investigação própria dele, um objetivo próprio e eu acho que é com esse leitor que eu dialogo desde o início da Baleia”.

Padula
Rua Cel. Fernando Machado, 997 – Centro

A ideia de investir nos livros veio para o casal Diego Padula e Marina Leal depois que ele foi dispensado de um contrato temporário de professor do governo estadual e se viu sem alternativas para pagar as contas. “Eu tinha muitos livros, sempre gostei e a gente começou a vender na feirinha aqui na frente do Capitólio, no chão mesmo, com um paninho. Começamos a vender na internet, criamos uma página”, conta ele.

Marina Leal e Diego Padula, proprietários da Livraria Padula | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Mesmo com as vendas na internet e nas feiras aumentando, foi quando passaram a ter a loja física que os negócios prosperaram, segundo Diego. “A gente vendia só pela internet e daí vimos esse lugar aqui, que é na frente da nossa casa, e faz um ano que temos a loja física”, lembra. Assim como outras livrarias menores, a Padula dá preferência para áreas específicas, acadêmicas, como sociologia, filosofia, psicologia. A diferença é que eles vendem também livros usados, funcionando como livraria e sebo.

Nesse sentido, os sócios contam que os clássicos sebos do centro, como o Ladeira Livros e o Nova Roma, foram parceiros que ajudaram no início dos negócios. “Se eles veem no sistema que a gente tem o livro e eles não têm, eles vêm e pegam conosco. No começo, foi uma boa alavanca, depois foi criando clientela, com o pessoal mais do bairro, que conhece. Tem muita gente que nos doa livros, ou que só compra com a gente”, diz Diego.

Taverna
Rua Cel. Fernando Machado, 370 – Centro

A Taverna foi inaugurada há quatro anos, no dia 1 de novembro de 2014, e surgiu como espaço físico em 2016. Há cerca de um mês, o local dobrou, com a locação do espaço ao lado da loja original, na rua Fernando Machado. Assim como a Padula, os proprietários Ederson Lopes e André Günther também começaram vendendo livros online. “Desde o início já era uma ideia ter o espaço, que não era só livraria. Por isso botamos Taverna, que era pensão, bar, cantina e um centro de encontro cultural durante muitos anos, séculos. Escolhemos esse nome justamente pra construir um espaço de acolhimento, que seja boêmio e ao mesmo tempo cultural”, relata Ederson.

Atualmente, a Taverna também é uma editora. “A gente trabalhava com muitas publicações independentes, como fanzines, até livros mais artesanais, que são feitos um a um. Nesses três anos amadurecemos bem a ideia, e nos estabelecemos como um comércio, com faturamento, funcionários”, descreve o proprietário, destacando que, depois de quatro anos, os dois sócios se mantêm exclusivamente com os ganhos da Taverna.

Ederson Lopes e André Günther, da Livraria Taverna | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Ele atribui o sucesso do negócio ao acervo e ao trabalho diferenciado que fazem no local. “Crescemos durante todo esse tempo, continuamos crescendo, a Taverna está super bem financeiramente porque acho que temos esse diferencial de ter trabalho ético, posicionamento político, nosso acervo é especializado, tem o atendimento. O acervo talvez seja o principal”, diz Ederson. Para ele, quando se trata de livrarias independentes, as especializadas em um nicho tendem a prosperar.

Outros pontos destacados por ele são o acolhimento da vizinhança e o fato de terem clientes habituais. Mesmo com o espaço pequeno, a Taverna também recebe lançamentos de livros e eventos culturais, como a Noite na Taverna, sarau que ocorre uma vez por mês desde a abertura do espaço. Desde a criação da editora, quatro livros já foram lançados. O mais recente deles, a obra Não existe mais dia seguinte, de Vitor Necchi, vendeu 200 exemplares apenas na noite de lançamento.


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