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1 de novembro de 2018
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14:57

Para educadoras, ‘Escola Sem Partido’ e vigilância de professores criam ambiente de medo no ensino

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Sul 21
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Para educadoras, ‘Escola Sem Partido’ e vigilância de professores criam ambiente de medo no ensino
Para educadoras, ‘Escola Sem Partido’ e vigilância de professores criam ambiente de medo no ensino
Em 2004, grupos começaram a se organizar em torno da ideia de um modelo escolar “neutro”. O principal deles ganhou força ao se intitular Movimento Escola Sem Partido, criado pelo advogado Miguel Nagib. Foto: Marcos Santos/USP

Giovana Fleck 

Vanessa Gil é professora no Estado desde 2012. Ela se identifica como feminista e militante da Marcha Mundial das Mulheres. “Já sou o alvo do Escola Sem Partido. Já faço parte de um grupo detestado que é o grupo de professoras que tenta discutir as questões de violência contra a mulher na escola.” Vanessa estimula o debate em sala de aula. Os temas são diversos. Um deles, a violência contra as mulheres. “Sou professora de sociologia e esse é um dos temas da sociologia.” Em uma das aulas, levantou a discussão em torno do porte de armas irrestrito e seus impactos na vida das mulheres.

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Ela conta que, nessa aula, muitas alunas que tentavam apresentar um posicionamento eram interrompidas por colegas meninos. “Eu interrompi os meninos e questionei o que eles pensavam da flexibilização do porte de armas e como isso poderia impactar em casos de feminicídio.” Vanessa foi gravada enquanto dialogava com seus alunos. Além disso, fotos suas foram tiradas nesse dia, dentro de sala de aula. Tudo foi divulgado em redes ligadas ao projeto Escola Sem Partido, afirmando que Vanessa seria parte de um grupo de professores que “doutrinam” seus alunos.

Comunicado divulgado por Ana Caroline Campagnolo. Imagem: Facebook/Reprodução

Na segunda-feira, a deputada estadual recentemente eleita Ana Caroline Campagnolo (PSL) divulgou, em sua página no Facebook, um comunicado pedindo que estudantes catarinenses gravem e denunciem manifestações político-partidárias contrárias ao presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL). A imagem descrevia o mesmo perigo de “professores doutrinadores” que transformariam as turmas de alunos em uma “audiência cativa para suas queixas político-partidárias”.

A publicação fez com que diversas instituições de ensino, sindicatos e órgãos da educação se manifestassem contra a deputada. Representantes dos trabalhadores em educação das redes pública e privada municipal, estadual e federal do Estado de Santa Catarina classificam a atitude da deputada como ameaça e ataque à liberdade de ensinar do professor. O Ministério Público de Santa Catarina, por meio da 25ª Promotoria de Justiça de Florianópolis instaurou, via ofício, um procedimento para apurar possível violação ao direito à educação e adotar as medidas cabíveis.

“São ações que criminalizam o pensamento”, aponta Vanessa. “Mas a liberdade de cátedra é garantida pela Constituição. É uma clara tentativa de repressão do pensamento crítico – é a busca do retorno do pensamento único.” Uma investigação foi aberta para apurar o caso da professora de sociologia. Ela entrou com um processo contra o movimento Escola Sem Partido, que divulgou sua imagem sem autorização prévia e expôs seu perfil no Facebook, fazendo com que Vanessa passasse a sofrer ameaças. “É o estilo dessas pessoas que não querem o debate e o pensamento livre nas escolas.”

‘Paradoxal e contraditório’

Esses são os dois adjetivos que a professora e coordenadora da Frente Gaúcha Escola Sem Mordaça, Russel Dutra da Rosa, usa para resumir o projeto Escola Sem Partido. “O mesmo poderia ser dito no caso da deputada”, afirma. Antes de ser eleita, Ana Caroline Capagnolo lecionava história – além de ter presença considerável nas redes sociais, onde se destaca com vídeos em que se define como “antifeminista” e “antimarxista”.

Quando era mestranda na Udesc (Universidade do Estado de Santa Catarina), Ana Caroline ganhou notoriedade ao processar sua orientadora, Marlene de Fáveri, por suposta “perseguição ideológica e discriminação religiosa”. Durante uma aula da disciplina “História e relação de gênero”, a então aluna foi confrontada por colegas por opiniões que manifestava nas redes sociais. Ela gravou a discussão e divulgou o vídeo, não só em seus perfis pessoais, como em conferências.

Fáveri, que orientava sua dissertação, redigiu um documento pedindo para se desligar da aluna por “incompatibilidade teórico-metodológica”. Posteriormente, em entrevista ao site Catarinas, afirmou que se tratou de “uma questão de transparência” e que ela não poderia “orientar alguém que não acredita naquilo que estuda”. A aluna passou a ser orientada por outros dois docentes. Ela defendeu uma dissertação com o nome “Traços da violência” em maio de 2016, mas foi reprovada pela banca. No dia 6 de setembro de 2018, o 1º Juizado Especial Cível de Chapecó julgou seu processo contra a professora “improcedente”. A aluna recorreu.

Segundo a advogada de Marlene, Daniela Félix, Ana Caroline passou a usar o processo como plataforma de campanha para as eleições de 2018. “Ela ganhou fama e espaço”, afirma. Daniela ressalta que todos os ataques pessoais que Marlene passou a sofrer foram judicializados. De acordo com a advogada, a professora, que prefere não se manifestar publicamente enquanto o processo não é encerrado, tem incentivado a manifestação de entidades da educação contra atitudes que cerceiam o livre pensamento do professor.

Por meio de nota, a deputada estadual reitera que sua trajetória política está “diretamente vinculada com o combate ao marxismo cultural e a denúncia do sucessivo silenciamento e supressão nas escolas de indivíduos que apresentam opiniões sustentadas nos valores da mentalidade cristã, sobre a qual nossa civilização está fundamentada”. Ela também acrescenta que “cabe aos professores […] manter a neutralidade em suas ações durante o exercício da função”. No entanto, imagens de Ana Caroline vestindo uma camiseta com o rosto de Jair Bolsonaro (PSL) em sala de aula têm sido divulgadas nas redes sociais. Segundo a Revista Fórum, um ex-aluno – que preferiu não se identificar – teria confirmado que ela teria usado a camiseta ao lecionar.

O que é o Escola Sem Partido?

Em 2004, grupos começaram a se organizar em torno da ideia de um modelo escolar “neutro”. O principal deles ganhou força ao se intitular Movimento Escola Sem Partido, criado pelo advogado Miguel Nagib. Em seu site, o movimento disponibiliza um modelo de projeto de lei a ser apresentado por vereadores e deputados do Brasil às suas respectivas câmaras ou assembleias. “Na época, ninguém deu muita bola”, diz a professora Russel Dutra da Rosa.

Dez anos mais tarde, em 2014, uma articulação entre deputados membros da bancada religiosa fez com que o tema ganhasse destaque no debate político nacional. Discutia-se uma revisão do Plano Nacional de Educação. “Se falava muito na discussão em torno de gênero e sexualidade, assim como nesse medo de uma suposta “doutrinação” das crianças”, explica Russel. O debate resultou em um apensado de 12 Projetos de Lei muito parecidos, que tramitam tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal. A temática principal está em incluir entre os princípios do ensino o respeito às convicções do aluno, de seus pais ou responsáveis, dando “precedência aos valores de ordem familiar sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa”.

“É uma proposta extremamente escorregadia”, diz Russel. “São projetos que abrem precedentes para que se barre discussões importantes sobre a vida humana. Quando se proíbe o trabalho em torno da diversidade de gênero, se exclui uma parte da população que já sofre violência pela intolerância. Além disso, é inconstitucional. São propostas que ferem o Artigo 5º, que rege sobre a liberdade de expressão, e o Artigo 206, sobre a regulamentação da educação.”

“Não se pode pensar que é possível uma aula sem nenhum tipo de viés ideológico. Inclusive, defender aulas sem viés ideológico é uma ideologia”, diz Vanessa. “O projeto é uma contradição em si. Toda e qualquer aula, de qualquer disciplina, é feita a partir de uma visão de mundo.”

Fora do cenário nacional, Estados e municípios também discutem projetos semelhantes ao apensado do Escola Sem Partido. Em julho de 2018, São Lourenço do Sul, na região sudeste do Rio Grande do Sul, se tornou a primeira do Estado a aprovar uma lei municipal baseada nas diretrizes do movimento. Em agosto, no entanto, o prefeito do município vetou o projeto. O texto retornou para a Câmara de Vereadores, que ainda pode manter ou derrubar a decisão do Executivo. De acordo com um mapa interativo criado pelo Movimento de Professores Contra o Escola Sem Partido, no RS, há registro de oito propostas municipais e uma estadual do tipo em tramitação.

‘Ataque’ e ‘perseguição’

“É triste um país que prevê ataques aos professores”, diz a professora e presidente do Cpers, Helenir Aguiar Schürer. “Escola Sem Partido é um grande marketing. Eu não quero uma escola com partido também. Mas o ponto é esse: nunca houve uma escola com partido.” Segundo ela, já existem mecanismos de punição e controle caso se comprove que o professor ultrapassou limites em sala de aula. Tanto o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) quanto a Lei das Diretrizes e Bases da Educação definem que o professor tem o papel de assegurar uma educação plena com base em critério curriculares definidos e estão sujeitos a medidas administrativas caso se desviem de sua função de ensinar.

“O ambiente educacional é ambiente de acolhimento, de discussão. É desejável que seja problematizado o racismo e a homofobia em uma sociedade civilizada. É desejável que se fale sobre violência, sobre os males que acontecem no mundo. Assim, cria-se uma consciência crítica”, aponta Russel. “O que acho triste é que o debate está sendo deslocado. O Brasil tem uma divida história com a povo em educação. Só começamos a universalizar o ensino fundamental a partir do século XX. Ainda não cumprimos as metas de escolarização da população brasileira. Não há recursos suficientes. Não há professores em licenciatura plena suficientes. Muitos professores não recebem o piso. As escolas estão caindo aos pedaços. Esse é o problema da educação brasileira, não o que está em sala de aula.”

Na terça-feira (30), um dia antes de ter o parecer votado pela Comissão Especial que avalia o apensado de projetos na Câmara dos Deputados, o texto foi alterado. O projeto, que anteriormente tinha o combate ao que classifica como “ideologia de gênero” e “preferências político-partidárias” direcionado a livros didáticos e paradidáticos, agora também deseja atingir os conteúdos curriculares e planos educacionais, em uma perspectiva mais abrangente. A votação acabou suspensa pouco depois do início, durante a tarde, após impasse provocado por manifestantes – a sessão deve ser retomada na semana que vem. “É um texto vago que pode permitir ataques e perseguições a professores – validando atitudes como a da deputada [Ana Caroline Campagnolo]”, aponta Russel. “A escola faz parte da rede de proteção a infância e juventude. Se os professores começam a ter medo de denúncia anônima, param de exercer esse papel”, completa.


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