Geral
|
16 de novembro de 2018
|
09:45

O que era sonho virou urgência: casais LGBT relatam porque estão adiantando o casamento

Por
Luís Gomes
[email protected]
Eduardo (esq.) e Ramires planejavam se casar em 2020, na melhor das hipóteses, mas estão agilizando os documentos para selar a união o mais breve possível | Foto: Arquivo pessoal
Eduardo (esq.) e Ramires planejavam se casar em 2020, na melhor das hipóteses, mas estão agilizando os documentos para selar a união o mais breve possível | Foto: Arquivo pessoal

Eduardo Silva, 36 anos, e Ramires Sanches, 24 anos, tinham planos de se casar, mas era coisa para o futuro. Um futuro não muito próximo. Começaram a namorar em 2015, depois de se conheceram em um aplicativo de namoro. No ano seguinte, passaram a morar juntos. Na melhor das hipóteses, imaginavam oficializar o casamento em 2020, com tempo para planejar uma festa. “Estávamos amadurecendo a ideia, depois adotar uma criança, constituir família, mas tudo no nosso tempo, sem muita pressa”, diz Eduardo.

A tranquilidade, no entanto, foi substituída pelo temor de que esse direito conquistado apenas nesta década pela comunidade LGBT possa ser retirado após a vitória de Jair Bolsonaro (PSL) na corrida presidencial. Para além da retórica homofóbica do deputado federal, o medo é de que o movimento conservador que o conduziu à cadeira que ocupará a partir de 1º de janeiro atue para legislar pelo fim do casamento entre pessoas do mesmo gênero.

O casal cita a declaração da presidente da Comissão da Diversidade Sexual e Gênero do Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Maria Berenice Dias, recomendando os casais LGBT a “correrem para os cartórios” como um dos alertas que os levou a adiantar os planos de casamento. “É inquestionável a postura homofóbica do presidente eleito. Ainda que ele tenha arrefecido seu tom de escracho, não assume nenhum compromisso pelos direitos dos gays”, disse Maria Berenice.

Eduardo diz que a ideia de planejar a longo prazo era para poder fazer uma cerimônia adequada, convidando os amigos. “Coisa que, no momento, a gente não tem a menor condição de poder organizar. O que vai acabar acontecendo é que, na melhor das hipóteses, a gente vai acabar fazendo um casamento daqueles de cartório, rapidinho, e não vamos poder realizar o sonho como gostaríamos”, afirma.

Outro motivo para alerta é um projeto de autoria do senador Magno Malta (PR-ES), em tramitação no Congresso, que prevê a suspensão do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Apesar de Malta não ter sido reeleito, ele é próximo do presidente eleito e cotado desde o período eleitoral para ocupar um ministério.

A advogada Isabel Cristina Sant Anna diz que a situação do casamento LGBT é precária pois ela é permitida atualmente apenas devido à uma recomendação emitida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2013, que obrigou os cartórios a realizarem casamentos entre pessoas do mesmo sexo. A determinação veio para regulamentar uma decisão tomada dois anos antes pelo Supremo Tribunal Federal (STF) de autorizar união estáveis para casais LGBT. No entanto, conforme explica Isabel, trata-se apenas de jurisprudência, podendo ser revertida por legislação aprovada em Congresso, como é o caso da proposta de Magno Malta.

Ela destaca que, na “letra fria da lei”, a Constituição reconheceria apenas o casamento entre homens e mulheres e que a recomendação do CNJ consiste em uma “mutação constitucional”, isto é, uma mudança de entendimento. “O que pode acontecer a partir de janeiro? Por medida legislativa, como o Bolsonaro deve ter a maioria no Congresso, pode-se simplesmente extinguir essa recomendação. Também pode mudar por Medida Provisória, que depois tranca a pauta do Congresso, ou derrubar pelo STF caso a composição mude e ele nomeie um aliado. O preocupante é que você não sabe o que vai acontecer daqui para frente”.

Presidente da Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do RS (Arpen-RS), Arioste Schnorr destaca que ainda não é possível perceber um aumento significativo no número de pedidos de registro de casamentos entre pessoas do mesmo sexo nos cartórios do Rio Grande do Sul em razão da eleição de Bolsonaro. Ele diz que, na semana passada, fez um levantamento entre os demais proprietários de cartórios e nenhum deles havia percebido diferença na movimentação. No entanto, afirma que, ao refazer a enquete nesta semana, já percebeu uma “pequena elevação” em algumas cidades. “Em regra, não poderíamos dizer que está havendo uma procura maior. Em alguns municípios, como Passo Fundo, Pelotas e Santa Maria, dizem que está aumentando a procura por informações. Nos demais, não há uma demanda que chame a atenção”, afirma.

O presidente da Arpen-RS destaca que os casais que desejem registrar a união devem comparecer a um cartório com a certidão de nascimento atualizada, sendo esta uma segunda via expedida atualmente, portando RG e com duas testemunhas que certifiquem não haver impedimento civil. Com isso, uma data poderá ser agendada. Após essa etapa, será publicado o edital de proclamas, que deverá ser afixado publicamente por 15 dias. Schnorr orienta que os casais entrem com o pedido de agendamento com 20 a 25 dias de antecedência da data pretendida para o casamento. Ele ainda salienta que, caso os noivos e noivas não tenham condições financeiras de arcar com as taxas — que podem chegar a R$ 170 no Rio Grande do Sul –, podem declarar-se hipossuficientes e solicitar a isenção dos custos cartoriais.

Pierre (esq.) e José Carlos resolveram adiantar o casamento que irá selar a união de 11 anos | Foto: Arquivo pessoal

O professor de História e Sociologia Pierre Bedin, 49 anos, e o advogado José Carlos Fernandes, 47 anos, já tinham decidido “há um bom tempo” que iriam regularizar juridicamente a relação que têm há 11 anos. Ambos casados com mulheres no passados, dizem que estão aprontando a documentação, obtendo a novas vias de suas certidões de nascimento contendo o registro dos divórcios, e que pretendem se casar até janeiro. Uma cerimônia reservada, com a presença de familiares próximos apenas, pais, os dois filhos de José e os padrinhos. “A decisão em si não coube ao fato que o B17 foi eleito, a aceleração sim”, diz Pierre.

Servidor público, ele explica que a preocupação com a perda de direitos envolve também questões práticas da vida, como a possibilidade de José Carlos não ter direito a pensão se vier a falecer, algo que hoje é garantido a todos os cônjuges.

Pierre destaca que, para além da preocupação com os direitos, ele teme pela “horda de pessoas” que se elegeram junto com Bolsonaro. “A gente vê situações de homofobia, de preconceito. Não que foram inventadas pelo Bolsonaro, mas foram impulsionadas e ganharam espaço”, diz. “Não vão ser anos fáceis, enquanto perdurar, nós vamos sim ter problemas grandes, porque ele incentiva, ele viabiliza, de algum modo legitima, que esse estado de ódio a diferença prevaleça”.

O pedido de casamento de Eduardo a Ramires veio depois de o primeiro receber uma notícia com a fala da representante da OAB, por WhatsApp. O segundo postou no Facebook. Na postagem, muitos amigos e conhecidos parabenizaram o casal, inclusive eleitores de Bolsonaro. A situação incomodou Eduardo, o levando a fazer um desabafo na própria postagem. “Tu vir me dar parabéns por um casamento que a gente está fazendo às pressas, totalmente fora do planejamento, totalmente diferente do que a gente sonhou em função de uma posição política do qual a pessoa fez parte, é deboche, por isso a minha indignação”, diz

Mais diplomático, Ramires entende que as pessoas que os parabenizaram mesmo tendo votado em um candidato que pode tirar deles o direito ao casamento o fizeram por entenderem que se trata de um momento de amor e confraternização. “Quando eles parabenizaram, foi meio que nesse sentido representativo de ser um momento bonito. Só que no nosso caso é mais uma situação de desespero mesmo do que por ser um momento lindo. Se fosse para ser esse momento, a gente teria planejado, seria uma coisa mais para a frente, do jeito que a gente gostaria que fosse e como muita gente idealiza o dia de seu casamento, algo mais perfeito e adequado do que casar as pressas”.

Para Eduardo, a situação vivenciada pelo casal, e também pelos demais, reflete o que considera ser um cinismo da sociedade. “É aquela história, muitas pessoas, especialmente mulheres, com quem existe talvez uma facilidade de fazer amizade com gays, até por uma questão de gays que são profissionais com os quais elas lidam, acabam tendo muita proximidade e tratam a gente muitas vezes como o ‘amiguinho querido’. Só que essas coisas do amiguinho querido muitas vezes acaba soando quase como um estereótipo, quase como se a gente fosse um animal de estimação. Ou seja, um objeto para idealizar certos moldes de amizade. É legal ter um amigo gay. Só que aí falta a empatia de entender que ali tem um ser humano que sofre perseguições que ela não sofre, muitas vezes de pessoas como o marido dessa mulher, o namorado dela. É muito comum tu encontrar grandes amigas, que sabem todas as gírias gays, e são casadas com um cara reacionário. E, muitas vezes, em função do machismo, acabaram indo atrás dele e votando no Bolsonaro”.

Junto com a sócia Graciela Santiago, Isabel está oferecendo orientação voluntária para casais que desejem se unir até o final ano. No próximo domingo (18), elas estarão prestando esse serviço em uma banca no Parque Farroupilha, a Redenção, onde ocorrerá a Parada Livre deste ano. Lá, elas também pretendem reunir interessados em um casamento coletivo a ser realizado em dezembro e que está sendo organizado por uma rede de voluntários. O objetivo é baratear os custos de casais que não tiveram condições de juntar dinheiro às pressas.

Elas dizem que esse movimento, que contam estar se espalhando sob o nome de “Corrente do Bem”, engloba profissionais de diversas áreas e envolve pessoas que já se conheciam e outras que passaram a se oferecer para auxiliar nos casamentos a partir da repercussão de postagens em redes sociais. Até o momento, Isabel e Graciela já ajudaram a dar entrada nos papéis de um casal e estão auxiliando pelo menos outros três que pretendem trocar alianças entre dezembro e janeiro. “Se esses casamentos forem feitos até o final do ano, não são passíveis de anulação. Com isso, nós garantimos a essas pessoas, além do próprio casamento, bens, títulos previdenciários, etc”, diz Graciela.

Miriam (esq.) e Inajara pretendem participar do casamento coletivo que será organizado para dezembro | Foto: Arquivo pessoal

Inajara Conceição Ferreira, 49 anos, e Miriam de Souza Carvalho, 50 anos, já deram entrada no processo pelo escritório Sant Anna & Santiago. Elas estão juntas há cerca de 10 anos. Se conheciam há 20, quando ambas tinham outras famílias. Inajara já estava em um relacionamento homoafetivo, enquanto a atual companheira tinha um relacionamento heterossexual, no qual teve nove filhos. “Cada uma tinha a sua relação. A gente já se conhecia, já éramos amigas e um dia a gente ficou juntas”, resume Miriam.

Elas contam que que há anos pensavam em se casar. “Existia a vontade. ‘Vamos fazer? Vamos fazer’. Mas o tempo vai passando, a vida segue e fomos adiando”, conta Inajara. Com a eleição de Bolsonaro e após sugestão de Isabel, chegaram à conclusão de que não podiam mais adiar o registro. A ideia das duas é participar do casamento coletivo que está sendo organizado para dezembro.

Moradoras do bairro Santa Tereza, Inajara, atualmente desempregada, e Miriam, prestadora de serviços gerais, dizem não ter certeza de que o futuro governo irá retirar direitos da população LGBT, mas temem por isso. “Não só no caso da gente, mas em outras situações também. Claro que tem muita coisa que não é verdade, muito fake, mas tem muita coisa que é escancarada, coisas que ele disse que são o propósito dele como governante. A gente fica a mercê dele”, diz Inajara, justificando a decisão de preferir não “pagar para ver” o que irá acontecer.

Laís Ribeiro, sócia do e-commerce O Amor é Simples, diz que após tomar conhecimento da fala de Maria Berenice Dias,  da OAB, a empresa especializada em vestidos de noivas decidiu se posicionar e aderir ao movimento de ajuda aos casais LGBT. No dia 5, fizeram uma postagem nas redes sociais anunciando que iriam eximir as noivas da taxa de urgência para as confecções da loja. A taxa, no valor de R$ 350, é cobrada quando os pedidos são feitos com a previsão de entrega para menos de 10 semanas, permitindo assim que interessadas recebessem seus vestidos ainda este ano. “A gente já se posiciona totalmente gay-friendly”, diz. Laís conta que ainda não recebeu nenhum pedido confirmado, mas que a postagem teve uma grande repercussão. “Perdemos algumas seguidoras, mas ganhamos várias outras”.

Sensibilizado pelo movimento e pela possível perda de direitos, o professor de cursinho Alexandre Rosa decidiu também colocar o sítio em que mora, na cidade de Mariana Pimentel, distante cerca de 80 km de Porto Alegre, à disposição para a realização de cerimônias de casamento. Apesar de ainda não ter sido contatado, ele diz que está cedendo o espaço sem custos para quem desejar organizar sua festa até o final do ano. “O legal é que mobilizou vários amigos que são fotógrafos, DJs, músicos, que também quiseram contribuir e até pessoas que se disponibilizaram para ajudar, maquiar os noivos e noivas, auxiliar na decoração, fazer comida vegetariana. Essas atitudes, mesmo que não ocorra nenhum destes eventos, têm a ideia de mobilizar as pessoas que estão sensibilizadas com essa questão”, diz o professor.

A fotógrafa Francine Fisher é outra profissional que se colocou à disposição para trabalhar gratuitamente em casamentos LGBT. “O casamento é um dos serviços mais caros de se contratar na fotografia. Como o pessoal está com medo do corte de direitos e por eu saber que é um serviço caro, resolvi participar da corrente também. É uma coisa que eu faço questão de participar, por ser algo em que acredito”, diz.

Ela conta que já foi contatada por dois casais de mulheres, ambos ainda sem data definida para o casamento, mas um está previsto para dezembro e outro para janeiro. Ainda nem falou com as noivas diretamente, mas a madrinha do primeiro lhe contou que uma delas teve mais um motivo para apressar a cerimônia: descobriu um câncer no pulmão.

Melissa e Fabíola (esq.) enfrentam um drama pessoal além da ameaça aos direitos | Foto: Arquivo pessoal

A noiva em questão é a artesã Melissa Dias Torres, 44 anos. Ela diz que a decisão de casar com a médica veterinária Fabíola Villanueva de Bittencourt, 30 anos, já tinha sido tomada depois das eleições. Ambas moram juntas, em Porto Alegre, apenas desde julho, mas, ao verem o que Mel chama de “abertura dos portões do inferno”, decidiram que já estavam certas o suficiente sobre a relação para antecipar a união. “Eu achava que nunca ia me casar no papel, mas a Fabíola foi tudo o que eu pedi a Deus”, diz.

Quando Melissa foi diagnosticada com câncer em estágio de metástase – momento em que o tumor se espalha para além do local onde começou -, concluiu que era mais um motivo para a antecipação. “Como artesã, eu não pagava INSS, então não tenho direito a nenhum auxílio, não temos plano de saúde”, conta. Para agravar a situação, Fabíola foi demitida da pet shop em que trabalhava logo em seguida.

Diante da situação, os padrinhos André Luiz e Sandra resolveram assumir a responsabilidade de organizar o casamento, que deve ser realizado no dia 8 de dezembro. Como as noivas não têm recursos para a festa, André abriu uma vaquinha para arrecadação online, além de estar indo atrás da rede de profissionais voluntários que se formou.

“A gente já tinha uma certa decepção com o mundo, mas essa onda de união, de ninguém larga a mão de ninguém, essas demonstrações de carinhos, atitudes e palavras, mostram que a gente ainda pode ter fé na humanidade. As pessoas estão demonstrando que ainda vale a pena a gente lutar”, diz Melissa.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora