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19 de novembro de 2018
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18:06

“Não vejo como suprir essa falta dos médicos cubanos”, diz ex-coordenador do Mais Médicos

Por
Sul 21
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“Não vejo como suprir essa falta dos médicos cubanos”, diz ex-coordenador do Mais Médicos
“Não vejo como suprir essa falta dos médicos cubanos”, diz ex-coordenador do Mais Médicos
Em 2016, a então presidenta Dilma Rousseff anunciava a prorrogação da permanência dos médicos brasileiros formados no exterior e estrangeiros no Programa Mais Médicos | Foto: José Cruz/Agência Brasil

Débora Fogliatto

Com a iminente saída dos médicos cubanos do Brasil, anunciada pelo governo do país caribenho após declarações do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL), 29 milhões de pessoas correm o risco de ficar sem atendimento médico. A falta destes 8.500 médicos, combinada com o fato de que o governo de Michel Temer (MDB) desmontou os programas de formação de residentes em medicina da família, fazem com que o ex-coordenador do Mais Médicos, Felipe Proenço, avalie que a saída dos cubanos “abre uma lacuna insuperável” na atenção básica brasileira.

Proenço explica que essa formação, que permitiu a entrada de mais 2.500 brasileiros no programa, a partir de 2016 deixou de ser prioridade do governo federal. “Era um dos caminhos possíveis, a solução foi dada pelo próprio Mais Médicos. O programa não esperava ficar para sempre na dependência dos médicos estrangeiros, mas o governo deixou de fazer medidas estruturantes, que eram os cursos de medicina e a residência médica na área da medicina de família”, lamenta.

Professor e coordenador da residência na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Felipe é gaúcho, formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Fez sua residência em Medicina Familiar e Comunidade pelo Conceição no início dos anos 2000, quando atuou na Vila Dique, antes ainda do início das remoções dos moradores do local. “Então eu migrei de uma área com mais médicos para uma área com menos médicos, fui trabalhar na saúde da família em Aracaju e então fui aprovado para professor aqui na UFPB”, conta.

Em 2012, foi cedido para o Ministério da Saúde, sendo diretor do Departamento de Planejamento e Regulação da Provisão de Profissionais de Saúde do Ministério da Saúde, onde teve a atribuição de Coordenador Nacional do Projeto Mais Médicos para o Brasil até 2016, quando voltou para a Paraíba após o impeachment de Dilma Rousseff (PT). “Coordeno a residência aqui e estou fazendo justamente com que a residência vá para a periferia de João Pessoa”, relata.

Médicos cubanos desembarcando no Brasil, em 2014 | Foto: José Cruz/Arquivo Agência Brasil

Confira a entrevista completa:

Sul21 – O senhor pode falar um pouco sobre como funcionou o planejamento inicial e a implantação do Mais Médicos?

Felipe Proenço – Eu era parte da diretoria que implantou o programa. Desde 2011, o Ministério da Saúde tinha feito seminários para debater a escassez de médicos em áreas remotas, e a partir daí começou a ouvir especialistas, gestores e universidades para entender o que poderia ser feito. Lançou o Provab em 2012, que tinha como objetivo atrair os médicos brasileiros para áreas mais distantes, com pagamento de bolsas no mesmo valor da que é oferecida pelo Mais Médicos e uma pontuação adicional para participar das provas de residência. Em 2013, esse programa conseguiu atrair 3.500 médicos brasileiros, mas havia um déficit de dez mil médicos. Já se via a possibilidade de contar com estrangeiros, seja pelo número insuficiente ou pelo fato dos profissionais quererem ficar mais perto das capitais, que em geral é onde tiveram sua formação.

No Mais Médicos, primeiro se ofereceram as vagas para profissionais brasileiros, mas inicialmente houve um boicote, pouco menos de mil responderam ao chamado, assim como pouco mais de 300 de outros países, como Argentina e Portugal. Mas havia 18 mil vagas a serem preenchidas no programa. E Cuba é um país que tem oito médicos a cada mil habitantes, enquanto o Brasil recém chegou, com dificuldades, a ter dois a cada mil, então Cuba tem quatro vezes mais médicos que o Brasil em relação à população. E esse formato de cooperação Cuba já tinha com outros países, está em 60 países.

Sul21 – Como funcionava o convênio com Cuba? De que forma se diferenciava dos outros países?

Felipe Proenço – É uma cooperação em que não se chama o médico individualmente, é um acordo trilateral entre o Brasil, a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) e Cuba. Por isso não é o mesmo tipo de relação do que a que se tem com os médicos que ingressam individualmente, sejam eles do Brasil ou de outros países. Então o médico cubano manifesta o interesse para o governo cubano, ele segue sendo um servidor federal, recebe um adicional do salário dele, que continua recebendo, e um recurso para família dele. Aqui, recebem R$ 3 mil, que é o mesmo valor que o médico residente ganha no Brasil, temos 30 mil médicos residentes trabalhando 60 horas semanais e ganhando isso. Mais um valor que pode chegar a R$ 2.500, que o município repassa de auxílio moradia e alimentação, então são valores condizentes com uma boa qualidade de vida no Brasil, enquanto a família lá continua tendo acesso à educação e saúde pública. Ao mesmo tempo, não tem como comparar os valores que eles ganham lá com dólares ou reais, porque eles ganham um valor menor lá, mas tem uma remuneração condizente com o custo de vida, com o funcionamento do país.

Médico cubano conversa com paciente em frente a posto de saúde na Restinga, em 2013 | Foto: Vinícius Roratto/Sul21

Sul21 – O senhor chegou a ir para Cuba para ver como funciona a saúde básica lá? Que diferenças encontrou em relação ao Brasil?

Felipe Proenço – Sim. Em termos de atenção básica é um exemplo para o Brasil. Tem consultórios de médico de família, estatais, que cada um atende uma população de no máximo mil pessoas. Aqui, a média é de 3.500 pessoas para cada. Esse consultório geralmente é a parte de baixo da casa onde o médico vive, então não tem distância do local de trabalho. E é um sistema que tem suporte das policlínicas, esse gargalo de atendimento de determinados especialistas lá é suprido pelo contato direto entre o médico de família, as policlínicas e o sistema hospitalar. É um investimento muito grande, o percentual do PIB de Cuba investido em saúde é o dobro do que investem aqui. Aqui a maior parte do orçamento de saúde do PIB é privado. Além disso, lá todos os médicos para estarem na atenção básica tem que ser médicos especialistas em Saúde da Família, o que aqui é muito difícil. Temos milhares de equipes de saúde da família e apenas 5 mil especialistas aqui no Brasil. Não é à toa que a mortalidade infantil deles está em 4,3 mortes a cada mil nascidos vivos. Aqui tem até médicos que tem bastante experiência, tem trabalhos muito legais sendo desenvolvidos, mas não chegaram a fazer formação específica.

Sul21 – Pelo que o senhor pode observar, pode-se dizer que o governo Temer já estava de certa forma desestruturando o Mais Médicos? Ou ele seguiu com o programa normalmente?

Felipe Proenço – Uma das diretrizes do programa era a residência em Medicina de Família, que teve uma expansão de 2.500 vagas, mas a partir de 2016 deixou de ser prioridade do governo federal. Era um dos caminhos possíveis, a solução foi dada pelo próprio Mais Médicos. O programa não esperava ficar para sempre na dependência dos médicos estrangeiros, mas o governo deixou de fazer medidas estruturantes, que eram os cursos de medicina e residência médica na área da medicina de família. Isso abre uma lacuna insuperável, não vejo como suprir essa falta dos médicos cubanos.

A ideia era suprir vagas com residentes, inclusive aqui em João Pessoa são 70 residentes na atenção básica, em áreas de periferias. Aqui na capital não tem médico cubano, não vamos sofrer tanto o impacto, mas o interior vai ficar sem médico e então o impacto chega aqui porque eles vão voltar a procurar a capital para ter atendimento de saúde. Então é um modelo possível para cidades capitais e de médio porte, e com tempo e planejamento, de pequeno também. A questão é que o Ministério da Educação não fez o tema de casa nos últimos dois anos e meio. O governo Temer alegava que já tinham aberto muitas vagas, que não teria qualidade.

Sul21 – É possível medir o impacto da saída dos médicos cubanos?

Felipe Proenço – O impacto numérico é 8.500 médicos, são 1.500 cidades em que os médicos do Programa eram só cubanos. São 80% dos médicos que trabalham com saúde indígena, que historicamente não tinha atenção médica. Então são 29 milhões de pessoas que eram assistidas por eles. Além disso, deixar de ter médicos com a formação necessária para entender as necessidades, o contexto, tem esse impacto que é mais difícil de mensurar, que é grande. As pessoas vão deixar de ter assistência médica em certos lugares, nos quais por muitos anos não teve, e daí vem uma política pública que garante essa assistência por cinco anos, e de repente deixar de ter isso novamente, é algo muito grave.

Médicos cubanos no Haiti após o terremoto de 2010 | Foto: Granma

Sul21 – Essa questão dos cubanos trazerem ou não a família, há realmente uma determinação sobre isso?

Felipe Proenço – Posso dar o exemplo do médico cubano que está numa área indígena, passa 2, 3 dias de barco para chegar na aldeia, fica 15 dias na aldeia, sem ter nem comunicação. Não tem porque trazer o familiar, não existia vedação nenhuma para os familiares virem, mas não existia interesse. Até porque em Cuba os filhos deles estão estudando, tendo acesso ao sistema de saúde de Cuba, sempre de forma gratuita. Então há muitas coisas sendo ditas que não condizem com a realidade. Os médicos que decidem se querem vir, eles têm uma remuneração condizente por ser uma cooperação. Os médicos que ficavam doentes escolhiam se queriam tratamento aqui ou em Cuba, muitos voltaram também em virtude isso. Também não vejo porque criar certos mitos, os que queriam sair do programa saíam quando queriam.

Na época da revolução cubana, mais da metade dos médicos cubanos foram embora do país. Apesar desse déficit, que pode-se perceber que já foi suprido, mesmo assim no primeiro ano mesmo os médicos de lá já fizeram brigadas para ajudar outros países. Já faz mais de 50 anos que eles fazem esse tipo de missão humanitária. A Organização Mundial da Saúde (OMS) quando precisou de médicos para erradicar o ebola recorreu a eles e usou o mesmo modelo de cooperação que fizemos aqui no Brasil. Então são colocações que não se sustentam com os fatos.

Sul21 – Por que há pouco interesse dos médicos brasileiros em trabalhar nessas áreas em que os cubanos atuavam?

Felipe Proenço – O Brasil demorou muito a fazer uma reforma curricular focada em atender a atenção básica. Eu acabei de defender a minha tese de doutorado, e o que acontece nos cursos de medicina com formação tradicional é que os estudantes não vão para atenção básica, eles ouvem de professores que nunca trabalharam na atenção básica que é muito ruim, que é menos qualificado, e são seduzidos pelo dinheiro do privado. Por isso é importante o Mais Médicos mudar isso na formação. Acho que os brasileiros têm condição e muitos procuram trabalhar na atenção básica, mas precisam do suporte. Não vivenciaram isso na formação, enquanto em Cuba tem médicos de família, especialistas. Acredito que da forma como foi desenvolvido o programa, a ideia era suprir as vagas com médicos brasileiros dentro de alguns anos. Esse eu creio que seja um dos grandes consensos que há, de que é necessário ser médicos brasileiros sim, mas tem etapas para isso, e as mudanças que começaram a acontecer e foram interrompidas. Agora vai começar a ser debatido isso.


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