O que fazer com a casca do maracujá? Foi a busca de uma resposta para essa curiosidade que levou uma estudante de Osório, no litoral norte do Rio Grande do Sul, a ser premiada com o primeiro lugar na categoria Ensino Médio do Prêmio Jovem Cientista, entregue na última terça-feira (30) pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A resposta encontrada pela estudante Juliana Davoglio Estradioto, do 4º ano do curso Técnico em Administração do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), foi transformar o resíduo da fruta em plástico biodegradável que pode ser destinado a armazenar mudas de plantas, com potencial para substituir os “saquinhos plásticos pretos” utilizados por agricultores e floriculturas.
Juliana, 18 anos, ingressou no Campus Osório do instituto federal em 2015. Filha de um engenheiro agrônomo, em seu primeiro ano na instituição procurou a professora a Flávia Twardowski, que a orienta até hoje, com interesse em desenvolver pesquisas voltadas para os agricultores da região.
O RS é responsável por apenas cerca de 1% da produção de maracujá no Brasil – 5.447 toneladas de um total de 554.598 mil toneladas. No entanto, é uma economia importante para o litoral norte. “Ela me procurou porque eu tinha um projeto em que eu falava de aproveitamento integral das culturas cultivadas no litoral norte gaúcho. Ela chegou para fazer um projeto de extensão que eu tinha com os agricultores e começou a fazer saídas de campo”, conta a professora.
Nessas visitas a agricultores da região, a jovem percebeu que eles tinham um problema com a casca da fruta, que virava resíduo após a produção industrial de suco e de geleia. “Essa casca acaba indo para lixão, para terreno baldio, para encosta de recurso hídrico. Isso é muito preocupante porque polui o meio-ambiente, pode causar, inclusive, contaminação de lençol freático, de solo, de água. Foi através da percepção desse problema ambiental lá no meu primeiro ano que eu quis procurar um destino para a casca do maracujá”, afirma Juliana.
Será que aquela casca precisava mesmo ir para o lixo? Não haveria algum aproveitamento para aquele resíduo? “Foi a partir dessas indagações que eu me motivei a fazer um projeto de pesquisa”, conta.
Identificado o problema, o próximo passo era decidir o que fazer. Flávia não queria estragar parte da “graça” da ciência indicando um rumo para a jovem. Preferiu sugerir que ela pesquisasse quais seriam as possibilidades de transformação dos resíduos. “Ela veio com várias propostas. A primeira ideia era extrair pictina para usar em produção alimentícia. Mas a gente precisaria passar pelo Comitê de Ética, isso impossibilitaria seguir em frente de forma mais rápida. E aí ela disse assim: ‘E se a gente fizesse um plástico biodegradável para envolver alimentos?’. Eu disse: ‘Não, pode fazer um plástico biodegradável, mas não para envolver alimentos’. Aí ela começou a estudar. Juntou uma série de artigos sobre isso e a gente começou a testar”.
O projeto foi desenvolvido ao longo de 12 meses. Foi um processo de descoberta de conhecimento. Estudou o que era o maracujá, a casca. “Tinha coisas que eu nem conhecia sobre a fruta que eu comia em casa”, diz a estudante. Para a então jovem de 14 anos, pesquisar representava também sair da zona de conforto das disciplinas do currículo do ensino médio. “Foi preciso muita dedicação, muita perseverança da minha parte e da minha orientadora. Sem ela, eu certamente teria desistido, porque começou tudo dando errado, como sempre é com a ciência. Com ela me estimulando e me incentivando a continuar, eu fui conseguindo resultados”.
De certa forma, a pequisa foi desenvolvida de forma rudimentar. O IFRS de Osório não dispunha de um laboratório adequado para transformações químicas. O trabalho de Juliana precisou ser feito em um laboratório de panificação.
Isso ocorre porque o IFRS de Osório não oferece cursos técnicos voltados para áreas científicas. Os alunos do Ensino Médio optam por Informática ou por Administração. Flávia explica que o forno do laboratório não era nem industrial, sequer um fogão, era um forno elétrico semelhante ao encontrado em residências sem qualquer vocação científica. “Todos esses experimentos foram feitos basicamente em cima de uma mesa de escola”.
A professora conta que a principal dificuldade no início da pesquisa era replicar o que a literatura científica dizia no laboratório de panificação do campus. Em visita à UFRGS, aprenderam técnicas que as auxiliassem nessa adaptação. O próximo passo foi estabelecer uma metodologia e começar a pesquisa. Quando os testes preliminares começaram a dar certo, Juliana “deslanchou”.
“Fazer a adaptação [do laboratório] foi uma das maiores dificuldades. Primeiro, que foi o meu primeiro contato com ciência. Eu nunca tinha entrado num laboratório, nunca tinha vestido um jaleco, nunca tinha visto aquele monte de vidraria com nomes diferentes. Mas foi muito divertido. Essa parte de adaptar o que eu lia para os laboratórios aqui de Osório foi, com certeza, a parte mais desafiadora. Eu tive que adaptar para as minha condições”, conta a jovem.
Hoje em dia, o campus de Osório já tem um laboratório de ciências com melhores condições para a pesquisa científica.
Antes do Prêmio Jovem Cientista, que lhe garante uma bolsa de iniciação científica, o trabalho de Juliana já tinha obtido reconhecimento além dos limites do município de Osório. Sua pesquisa foi premiada em eventos nacionais e internacionais, como Intel ISEF (2017), em Los Angeles (EUA), Genius Olympiad (2018), em Oswego (EUA), e Mostratec (2018), em Novo Hamburgo (RS). Em 2017, ela participou de uma feira na Universidade de São Paulo (USP) e foi convidada por um professor da Engenharia Química para conhecer os laboratórios da instituição. Ali, encontrou uma máquina que faz a produção de plásticos biodegradáveis em larga escala. “Com certeza, agora na graduação, eu quero testar isso para produzir industrialmente”.
Após encerrar os trabalhos com a casca do maracujá, em meados de 2017, Juliana desenvolveu outra pesquisa, dessa vez com a casca da macadâmia. O reaproveitamento de resíduos é uma paixão da adolescente. “A gente não se dá conta que tudo que a jogamos no lixo, na verdade, poderia ser transformado em algo melhor em benefício da sociedade”.
Atualmente, ela integra um projeto em cooperação com pesquisadores do Espírito Santo — onde o descarte da casca de macadâmia é um problema — que está transformando esse resíduo em alimento para microrganismos. A jovem traduz para leigos: “Esses microrganismos, ao mesmo tempo em que se alimentam da casca da macadâmia, que iria para o lixo, acabam produzindo, sintetizando uma membrana de celulose”.
A segunda pesquisa já lhe garantiu um novo prêmio. Foi convidada na última semana para participar, em dezembro de 2019, do Seminário Internacional de Ciências Juvenis de Estocolmo (SIYSS), na Suécia, que reúne 25 dos melhores jovens cientistas do mundo. “Eu nem estava esperando tudo isso. Só estava fazendo o que eu gosto, que é fazer pesquisa, e agora vieram esses dois prêmio, um e em seguida do outro. Fui muita emoção em uma semana. Acho que nunca chorei tanto em um curto intervalo de tempo”.
Além de passar uma semana realizando um intercâmbio científico e cultural no país europeu, irá acompanhar a cerimônia de entrega do Prêmio Nobel e de um banquete com os laureados na premiação. “É uma coisa muito, muito chique”, brinca a jovem, que nunca tinha viajado de avião antes de ir a eventos como pesquisadora. “É muito massa porque eu fui a primeira menina brasileira selecionada para esse evento”.
Juliana entrou de cabeça na pesquisa logo no primeiro ano no IFRS Osório, mas não era algo que ela trazia do Ensino Fundamental. Seu colégio até tinha uma Feira de Ciências, mas conta que o máximo que havia feito era pesquisar no Google e “apresentar para os coleguinhas”. Chegando ao Ensino Médio, uma coisa que a incomodava nas aulas de Ciências era a ausência de referências a pesquisadoras. Eram sempre homens. Entre os nomes ensinados, também não haviam jovens. Pelo contrário, estavam todos mortos há décadas. “Ver a minha professora trabalhando em pesquisas com outros alunos me fez ter vontade de explorar esse universo. Ver se a curiosidade que eu tinha não poderia ter uma utilidade. Ela existia dentro de mim, mas eu não sabia o que fazer com isso”.
Flávia diz que logo no primeiro mês de pesquisa, já pode perceber que a estudante era um ponto fora da curva. Segundo a professora, ela tinha “aquele brilho no olho” quando apareciam os resultados dos experimentos. “Ela entra constantemente na minha sala com um caderninho com anotações”, diz. “Tem espírito de cientista, investigativo. Isso é bem evidente”.
Além de descobrir um canal para o qual direcionar a sua curiosidade, Juliana também encontrou uma paixão. “Quero fazer isso para o resto da vida”, diz. A jovem já se inscreveu para prestar o vestibular na UFRGS para o curso de Engenharia Química. A escolha vem do fato de ser uma área que une elementos da Biologia, da Química e da Matemática. “Assim que eu entrar na graduação, já quero entrar num laboratório de novo”.
Juliana nasceu na cidade de Passo Fundo, no planalto médio do RS. Quando ela tinha 3 anos, a família se mudou para Osório. A estudante conta que um dos sonhos da vida de seu pai, engenheiro agrônomo aposentado, era fazer Química. “Acho que a paixão passou pelo sangue”, diz. A mãe também é da área da educação, professora municipal de uma escola localizada no Morro da Borússia, principal ponto turístico da cidade.
O exemplo de dedicação aos estudos pegou do irmão mais velho, Luís Eduardo, 22 anos, que cursa Engenharia Elétrica na UFRGS. “Muitas vezes os meus amigos me achavam meio louca, porque eu ficava muito tempo durante o final de semana fazendo as minhas coisas de pesquisa, estudando. Tudo extracurrilar, não era nada que a escola exige. E ele [o irmão] passava muitas tardes comigo estudando. Às vezes, eu não entendia alguma coisa, ele ia lá e me explicava. Sempre me incentivando muito”.
A adolescente ressalva, contudo, que a sua verdadeira inspiração para a ciência vem de mulheres pesquisadoras. Na última terça-feira (30), teve a oportunidade conhecer uma delas, a vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Vanderlan da Silva Bolzani. “Ela é muito, muito referência nessa área”, diz. Outra inspiração é a professora Vera Lúcia Imperatriz-Fonseca, da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa), no Rio Grande do Norte. No Prêmio Jovem Cientista, Vera foi agraciada com o Mérito Científico, dedicado a pesquisadores de carreira. “O trabalho que ele faz com as abelhas é sensacional”, exclama Juliana.
Mas, antes de todas as outras, vem Flávia. “É a grande inspiração para mim. O trabalho que ela faz aqui em Osório, mobilizando os jovens da região a quererem pesquisar, se envolverem com as áreas de Ciências, Matemática, Química, Biologia e Engenharia. Ela é muito, muito especial”.
Estimular os jovens de Osório a pesquisarem é um trabalho que vai além das obrigações formais de Flávia. Engenheira de formação, é professora do Ensino Superior no IFRS. No Ensino Médio, ministra apenas a disciplina de Gestão da Produção e Qualidade, oferecida ao terceiro ano do curso técnico de Administração. “Eles vinham até mim porque eu montava um projeto de pesquisa. Hoje, eles vêm porque já viram outros estudantes fazendo pesquisa, viajando pelo mundo e têm muita vontade de fazer também”.
