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24 de novembro de 2018
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17:23

Corte de verba ameaça Reforma Psiquiátrica e sinaliza preferência por internações

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Sul 21
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Corte de verba ameaça Reforma Psiquiátrica e sinaliza preferência por internações
Corte de verba ameaça Reforma Psiquiátrica e sinaliza preferência por internações
Caminhada do Dia da luta antimanicomial em maio de 2018 em Porto Alegre. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Luciano Velleda
Da RBA

A decisão do governo de Michel Temer em cortar o repasse de R$ 77,8 milhões destinados aos Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) em todo o país pode ser, segundo especialistas, o início do desmonte da política de saúde mental implementada, a partir de 2001, com a Reforma Psiquiátrica.

A decisão do governo federal foi publicada no Diário Oficial da União no último dia 16, com a justificativa de “ausência de registros de procedimentos nos sistemas de informação do SUS”. Na avaliação da psicóloga Marisa Helena Alves, do Conselho Federal de Psicologia e do Conselho Nacional de Saúde (CNS), a suspensão do repasse faz parecer que há um cuidado do governo federal com o uso do dinheiro público, porém, ao cortar o recurso dos municípios, o principal afetado é o usuário do serviço.

Para ela, o correto seria o governo fazer uma auditoria para identificar quais gestores não cumpriram o dever de cadastrar os serviços no sistema de informação do SUS. “Com o corte, o governo está na verdade punindo o usuário. No nosso entendimento, há um caráter punitivo ao município, mas o afetado é o usuário. Por que não tem um sistema de cobrança, de monitoramento? Por que deixar isso acontecer?”, questiona.

A consequência prática, explica Marisa Helena, é o desmonte da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), composta por serviços e equipamentos variados, sendo o mais conhecido os Centros de Atenção Psicossocial(Caps), junto com os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), os Centros de Convivência e Cultura, as Unidade de Acolhimento (Uas), e os leitos de atenção integral.

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A Raps integra o Sistema Único de Saúde (SUS) e estabelece a política de saúde mental do Brasil ao atender usuários de crack, álcool e outras drogas, assim como pessoas com transtornos mentais, inclusive crianças. O corte imposto pelo governo Temer representa cerca de um terço do recurso investido pelos municípios para manter o serviço.

Fruto de uma longa luta antimanicomial, a Reforma Psiquiátrica foi instituída por meio da Lei 10.216/2001, sendo a Raps sua efetivação. “Com esse corte, isso desmonta a Rede. É gravíssimo”, afirma a psicóloga e membra do Conselho Nacional de Saúde (CNS).

Fechamento de serviços

A fragilização do modelo da Raps, a responsabilidade do município em arcar sozinho com o financiamento de uma política estratégica de saúde, e o fechamento de serviços aos usuários são as consequências práticas apontadas por Fábio Luiz Alves, médico sanitarista e secretário de Saúde do município de Itatiba (SP), após o anúncio do corte dos recursos.

Segundo ele, há municípios que terão dificuldade em manter o funcionamento de determinados serviços ou terão de arcar com as despesas sozinhos, uma realidade difícil para a maioria das cidades do país.

“Vai ter fechamento de serviço. Não vamos conseguir fazer ações para os usuários, não vamos conseguir fazer o estágio de reabilitação, que é muito importante para esses pacientes. São consequências importantes”, afirma o secretário de Saúde de Itatiba, destacando que sua cidade não perderá recursos, o que não lhe impede de ser solidário com os gestores que passarão por dificuldades.

Já Rodrigo Pressoto, membro do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP-SP), explica que a interrupção de serviços, o não acolhimento do usuário ou a diminuição do tratamento tem consequências graves em pacientes de saúde mental. “A gente, como serviço público, não tem o direito de penalizar os usuários. É muito cruel”, afirma.

Pressoto pondera que tratamentos de pacientes com depressão ou esquizofrenia, por exemplo, exigem a formação de um forte vínculo, que agora pode ser quebrado pela falta de recurso financeiro. “Na hora em que a pessoa começa a ter uma melhora, então, tem a quebra do tratamento, e isso causa muitas vezes um surto.”

A situação será grave também com os usuários inseridos nos Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), onde eles têm a oportunidade de reorganizar a própria vida a partir de uma moradia, um lar para viver e cuidar. “Como a gente explica o fechamento desse tipo de serviço? O morar, o viver, o voltar a conviver em sociedade”, critica Pressoto.

Além de atingir os usuários, o desmonte da Raps terá também consequências entre os profissionais da psicologia. O SUS é uma das cinco áreas que mais empregam psicólogos e, dentro do SUS, a saúde mental lidera a empregabilidade.

Rodrigo Pressoto não tem dúvida ao afirmar que o corte da verba é um indício da “volta maciça das internações” em hospitais psiquiátricos e nas polêmicas unidades terapêuticas. “O atual governo e o governo eleito não têm compromisso com a política de saúde mental e nem com os trabalhadores. É algo extremamente nocivo”, avalia.

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Depois de avançar com a lei da Reforma Psiquiátrica, a luta antimanicomial sofre um revés com o corte de recursos. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Redução de danos x internação

Opinião semelhante tem o secretário de Saúde de Itatiba (SP), Fábio Luiz Alves, para quem o corte demonstra a falta de importância do governo federal com relação à estratégia da política de saúde mental, onde se lida com problemas complexos de transtornos mentais e dependência química.

“O SUS brasileiro tem experimentado organizar um modelo de atenção multiprofissional de atendimento nos Caps, buscando uma relação de mais humanização e que vai trabalhar a crise para ajudar na reabilitação psicossocial desse paciente”, explica.

Para ele, o grande tema por trás da suspensão da verba é a disputa do modelo de atendimento, que coloca em lados opostos defensores do tratamento mais humanizado, com conceitos de redução de danos, e aqueles que defendem a internação e a abstinência.

“Ao minar essa política, se está retomando o modelo hegemônico tradicional que é o da internação psiquiátrica, isolando o indivíduo da sociedade e da sua família, distanciando ainda mais de uma possibilidade de recuperação psicossocial”, avalia Fábio Luiz Alves. “É uma grande rasteira na política de saúde mental. Tenho muita clareza de que há essa disputa, ela existe no estado de São Paulo e no país inteiro.”

Considerando que a Reforma Psiquiátrica é relativamente recente, a Rede de Atenção Psicossocial está sendo criada nos municípios em estágios distintos, com algumas cidades já mais avançadas, enquanto outras ainda tentam se estruturar. O corte da verba, neste contexto, é considerado pelo secretário de Itatiba como uma intervenção grande na política de saúde mental baseada na Reforma Psiquiátrica.

“É uma disputa forte. Temos por um lado o modelo hegemônico tradicional que aposta na internação psiquiátrica, que favorece alguns grupos na sociedade vinculados a médicos e religiosos. O nosso modelo de Reforma Psiquiátrica aposta em outras intervenções e recursos terapêuticos”, explica Fábio Luiz, defensor do SUS como uma política pública de atenção integral.

“Essa intervenção é claramente um poder de quem está exercendo hoje a política no país e que vem apostando muito mais no modelo tradicional do que na história que o SUS criou após a Reforma Psiquiátrica. Então, tem sim uma certa intencionalidade, que não é só justificada pela lógica de crise financeira e nem pela ineficiência do serviço de saúde mental”, pondera.

Segundo o governo federal, os recursos poderão ser liberados se os municípios regularizarem os dados do serviço junto ao sistema de informação do SUS. O sistema está em funcionamento há cerca de cinco anos e Fábio Luiz explica que muitos municípios conseguem utilizá-lo de modo correto, mas outros não, devido a deficiências estruturais e técnicas, como equipamentos, acesso à internet e pessoal especializado.

“Pela diversidade que é o SUS no Brasil, com municípios de grande porte, de pequeno porte, alguns muito capacitados, municípios com relações com universidades e outros ‘abandonados’, sem capacidade de organização, é um problema plenamente aceitável. O diagnóstico para o não registro pode ser variado demais, agora, punir todo mundo de maneira linear, por não enviar essa produção, e deixar de enviar o repasse é uma atitude utilitarista para poder justificar a falta de prioridade da política de saúde mental no governo atual”, afirma.

Para a psicóloga Marisa Helena Alves, do Conselho Federal de Psicologia e do Conselho Nacional de Saúde (CNS), o corte dos recursos é um “grande retrocesso” para a Reforma Psiquiátrica.

“A luta parece que retrocedeu 30 anos. Agora vamos batalhar para manter o que conseguimos, mas as forças contrárias são muito fortes”, pondera, para em seguida concluir: “Só posso dizer que, manicômio, nunca mais.”


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