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20 de outubro de 2018
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20:29

Saúde mental de professores se agrava com desvalorização, baixos salários e falta de estrutura

Por
Sul 21
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Baixos salários, péssimas condições de trabalho e violência nas escolas são os principais fatores que colaboram para o sofrimento mental dos professores | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Débora Fogliatto

Além de ter que lidar com todas dificuldades que os professores de escolas públicas enfrentam diariamente, Aline Simeão também passa pelo luto, indignação e depressão. Seu marido, Itacyr Zuffo, que também era professor estadual e vice-diretor de uma escola, morreu há um mês. A saúde mental de Itacyr, que já sofria de depressão, vinha se agravando nos últimos meses, até o dia em que a esposa chegou em casa e o encontrou sem vida. “Está muito difícil. É impossível”, resume Aline, logo após sair de consulta médica exigida pela perícia devido à licença de saúde que tirou depois do ocorrido.

Não é de hoje que a docência é considerada uma das profissões com maior índice de adoecimento mental, o que é confirmado por estudos brasileiros e internacionais. Em 2015, segundo a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), a educação aparecia com o terceiro maior índice de afastamento entre as secretarias estaduais, com 30%. De acordo com a pesquisa, baixos salários, péssimas condições de trabalho e violência nas escolas são os principais fatores que colaboram para o sofrimento mental dos professores.

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) aponta a categoria docente como sendo a segunda a apresentar mais doenças ocupacionais. Um estudo realizado no Paraná, em março deste ano, mostra o sofrimento mental como o problema de saúde mais citado pelos professores estaduais: 29,73% da categoria relatou alguma forma de adoecimento como depressão, ansiedade e estresse, entre outros.

O Sindicato dos Professores da Rede Privada do Rio Grande do Sul lançou, em 2016, uma cartilha contendo estudos sobre a saúde mental dos docentes. O documento aponta que “o sofrimento na docência ocorre, por exemplo, diante de conflitos nas relações, da longa e exaustiva jornada de trabalho, da diversidade e complexidade das atividades, das dificuldades inerentes às relações em sala de aula, da desvalorização salarial, da progressiva desqualificação e do escasso reconhecimento social de seu trabalho”.

Segundo o estudo, entre os anos 2009 e 2013, somaram-se 2.100 auxílios-doença e/ou aposentadorias por invalidez concedidas na região Sul do Brasil a professores da rede privada, o que representa 62% entre os afastamentos por adoecimento mental.

Para os professores estaduais do RS, o Centro dos Professores do Rio Grande do Sul (Cpers/Sindicato) considera que os últimos quatro anos têm sido especialmente complicados, pois os servidores vêm sofrendo com atrasos e parcelamentos salariais que já completam 34 meses. A entidade está realizando um levantamento em todo o Estado sobre as condições da saúde mental dos profissionais, mas o estudo ainda não foi concluído.

A categoria afirma que os casos de afastamento e ansiedade vêm aumentando nos últimos anos. Além disso, para aqueles que já sofrem com algum tipo de doença, o atraso nos salários também dificulta a compra de medicamentos. Jane Caetano, professora em Cruz Alta, conta que já convive com a depressão há anos. A situação delicada que enfrenta atualmente, porém, agravou sua situação. Aos 67 anos, ela teve que pedir dinheiro emprestado à mãe para uma consulta psiquiátrica.

Às vezes, a pessoa já está mergulhada em dívidas e tem que pagar um médico para ele dar uma receita” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Devido à necessidade de ajustes na medicação que tomava, Jane se viu numa forte crise depressiva no ano passado, que lhe impedia até mesmo de sair de casa. Para lidar com a situação, necessitava do tratamento. “Um psiquiatra custa R$ 400 uma consulta, então minha mãe teve que me ajudar a pagar. Muita gente não tem acesso ao tratamento psiquiátrico, e então a pessoa cada vez mergulha mais num vazio. Essa desvalorização, esse pouco caso, essa falta de acesso à medicação, tudo colabora”, afirma.

Por conviver com a doença há anos, Jane se interessa pelo assunto e busca apoiar colegas que passam por situações parecidas. “Vejo colegas mergulhados numa angústia, num desespero, que seria a depressão causada por esse inferno, seria um tipo de depressão causada por situações externas”, relata. A pressão sofrida e o sofrimento de não saber se irão receber seus salários completos são alguns fatores que colaboram para que esse quadro se desenvolva nos professores. “Tu compra o remédio e quando chega o fim do mês tu ainda está pagando e vai ter que comprar mais, fica uma dívida imensa”, exemplifica.

Professora de artes há mais de 20 anos, Jane conta que sua doença é controlável desde que não pare de tomar os antidepressivos. “Às vezes, a pessoa já está mergulhada em dívidas e tem que pagar um médico para ele dar uma receita. O tratamento não é barato, e psicólogo só pode acompanhar, não dá medicação”, explica. Ela aponta o apoio da família e de amigos como uma das principais formas de se combater a doença, mas também acredita na importância da valorização profissional.

Seu marido, que também é professor, ainda não recebeu integralmente o salário neste mês. “Isso nos causa ansiedade também. Temos uma certa estabilidade ainda, porque temos casa própria, mas eu me preocupo com quem está com depressão ou qualquer outra coisa e precisa pagar mercado, escola, aluguel. Tem muitas pessoas sofrendo de ansiedade generalizada”, lamenta.

É o caso de Bianca Damacena, professora em Porto Alegre, que passou a ter crises de ansiedade e pânico neste ano e precisou se afastar para cuidar da saúde. “A situação ainda é difícil. É uma desvalorização financeira, da postura dos governos, e passa a ser também da sociedade, dos alunos que não respeitam, uma bola de neve mesmo. Não tem apoio de nenhum lado”, relata.

Por questões financeiras, ela precisou aumentar as horas de trabalho, chegando a cumprir 60 horas semanais em duas cidades diferentes, o que a deixou exausta. Bianca também diz que o índice de adoecimento mental da categoria é muito grande e vem aumentando. “É muito trabalho, pouca valorização, parcelamento”, resume. Agora, ela está fazendo tratamento com terapia e medicação.

“A gente não consegue dar conta”, diz viúva de professor

Aline relata que o marido já havia sofrido de câncer, além da depressão, e que a sua saúde vinha piorando conforme a situação na escola em que trabalhava, no bairro Partenon, também se agravava. “A gente gostava muito de ser professor, considerávamos uma vocação, sempre conversávamos sobre isso. Nos últimos tempos, teve várias questões, brigas e ameaças na escola dele, alunos bateram em professores. Ele não conseguia mais sair. Ele sempre teve depressão e isso foi agravando”, conta.

Conforme a saúde ia piorando, o relacionamento com os colegas também era ameaçado. Isso porque, de acordo com Aline, quando alguém adoece, outro professor precisa acumular as turmas, devido à falta de funcionários para substituir os que faltam. Ela relata que quando informou aos colegas do marido sobre a morte dele, recebeu pedidos de desculpas. “Meu marido estava muito mal, ele estava faltando muito. Quando eu avisei que ele tinha falecido, recebi um texto de uma professora no grupo pedindo desculpas porque ela sempre ficava braba quando ele faltava e não entendia, tinham raiva disso. Ela disse que foi uma pessoa horrível e queria pedir perdão em público”, diz Aline.

Comunidade escolar colocou faixa em homenagem a Itacyr após sua morte | Foto: Reprodução/ Facebook

Para Aline, a falta de professores para ministrar as disciplinas, de infra-estrutura, de valorização profissional e de compensação financeira foram alguns dos fatores que agravaram a saúde de Itacyr. “O Estado não faz mais concurso, não estão nem aí. Quando chovia na escola dele, eles tinham que ir todos para a mesma sala. É realmente deprimente, ele não aguentava mais ver aquilo. A gente está sobrecarregado, não consegue dar conta”, diz. Professores de escola pública, Aline e o marido faziam um esforço para pagar escola particular para os filhos. “Chega a ser incoerente nós não confiarmos nossos filhos a uma escola pública”, afirma.

Após a morte de Itacyr, Aline também começou a tomar antidepressivos e, conversando com as colegas sobre o assunto, percebeu que muitas outras também fazem uso do medicamento. “Não teve uma que falou ‘eu não tomo’, fiquei estarrecida”, lamenta. O relacionamento com os estudantes e famílias também é complicado, segundo ela, e casos de violência são comuns.

Por outro lado, a professora entende que as crianças e jovens não se sintam motivados a estar na escola. “Meu marido levava tudo de casa. É um lugar triste, não tem nenhuma motivação para a criança estar ali dentro. As crianças têm que inventar jeitos de brincar, o professor tem que fazer milagre, não tem nada que estimule. Os alunos estão mil anos luz à frente dos computadores que eles colocam nas escolas, com internet que não funciona direito”, avalia.

Além de trabalharem para o Estado, ambos também eram professores municipais, ele, em Canoas, e ela, em Porto Alegre e Esteio. Mesmo com Itacyr sendo vice-diretor, o salário estadual não era o suficiente para a família. “A gente tratava o Estado como um complemento para ter o plano de saúde, porque não era nosso salário principal. E é uma vergonha porque trabalhávamos em quatro lugares, ficávamos 60 horas fora de casa, os três turnos na rua, para ter uma renda digna média, para poder dar alguma coisa para as crianças”, afirma.

Posição do Estado

A Secretaria de Educação do Estado não informou se conta com algum programa de apoio aos professores e disse não ter um levantamento de docentes afastados por adoecimento mental, pois esses dados são de responsabilidade do departamento de Perícia Medica da Secretaria de Modernização Administrativa e de Recursos Humanos (SMARH). O Sul21 entrou em contato nesta quinta-feira (18), mas, até o fechamento da reportagem, não obteve resposta por parte da SMARH.


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