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20 de outubro de 2018
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17:11

Oxfam aponta para aumento da desigualdade no campo provocado por cadeias de supermercados

Por
Sul 21
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“A organização coletiva faz a diferença. Eles têm responsabilidade com a situação do campo e precisam encará-la”, resslata Gustavo Ferroni. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Giovana Fleck  

No início de 2018, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) julgou e encerrou três processos relativos a formação de cartel no mercado de compra de laranjas para produção de suco concentrado congelado da fruta. A investigação era a mais antiga do Cade: começou em 1999, com base em denúncia da Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias da Câmara dos Deputados.

O esquema era organizado em torno do ajuste de preço para a aquisição de laranja dos produtores, assim como da divisão de mercado e da troca de informações sensíveis à concorrência de mercado. Como resultado, os pequenos produtores – majoritariamente concentrados no interior de São Paulo – acabaram sendo desvalorizados e suprimidos. Em menos de 20 anos, o pouco que já recebiam (cerca de 17% do valor do produto final) diminuiu ainda mais, chegando, em média, a 4% do valor vendido pelos grandes supermercados, já em forma de suco e no exterior.

Esse exemplo ilustra a maneira desigual como a cadeia de venda e consumo impacta a vida dos trabalhadores do campo. Essa realidade é o enfoque do relatório “Hora de Mudar – Desigualdade e sofrimento humano nas cadeias de fornecimento dos supermercados”, realizado pela Oxfam (organização internacional que atua na busca de soluções para a pobreza, a desigualdade e a injustiça). Em entrevista ao Sul21, o assessor sênior de políticas e incidência da Oxfam, Gustavo Ferroni, explica como grandes redes de supermercados da Europa e dos Estados Unidos podem atuar decisivamente para mudar a situação de pobreza e as más condições de trabalho de milhões de pessoas no mundo – inclusive no Brasil.

“A desigualdade econômica não acontece por acaso: ela é uma desigualdade de poder. Uma das origens está nas grandes cadeias de fornecimento que privilegiam grandes produtores em detrimento dos pequenos por uma questão de efetividade e custo. Mas isso gera outros impactos. Acaba excluindo os pequenos agricultores, especialmente os agricultores familiares do mercado”, aponta Ferroni. Para ele, existe a necessidade de uma articulação entre os produtores rurais e a sociedade civil para responsabilizar as grandes empresas. “A organização coletiva faz a diferença. Eles têm responsabilidade com a situação do campo e precisam encará-la.”

“Os supermercados na ponta acabam tendo o papel de ditar como que essa dinâmica vai acontecer – mesmo que indiretamente.” Foto: Joana Berwanger/Sul21

Sul21: Como o relatório foi concebido?

Gustavo: A Oxfam sempre trabalhou em defesa da pequena agricultura, da agricultura familiar, como uma maneira de combater a pobreza e a desigualdade. Esse trabalho envolve uma análise de como funcionam as cadeias produtivas globais de alimentos e qual o papel das grandes empresas da ponta com relação à origem dessas cadeias no campo. Não é a primeira vez que a Oxfam faz esse tipo de trabalho, no passado fizemos campanhas pressionando outros tipos de empresas – como as grandes produtoras de alimentos bebíveis: Coca-Cola, Nestlé, Unilever… Mas, dessa vez, fizemos uma análise focada nos supermercados. Principalmente porque, na Europa e nos Estados Unidos, a tendência daqui a uns anos é uma concentração do mercado de supermercados e o que se nota é que o papel dos supermercados nas cadeias de alimentos passa a ser mais preponderante a partir de um aumento de poder deles.

Sul21: Por que essa lógica, tanto de consumo quanto de venda, está institucionalizada da forma como opera hoje?

Gustavo: A desigualdade econômica não acontece por acaso: ela é uma desigualdade de poder. Uma das origens está nas grandes cadeias de fornecimento que privilegiam – muitas vezes não por questões ideológicas ou por ter uma visão mais ampla da agricultura – grandes produtores em detrimento dos pequenos por uma questão de efetividade e custo. Mas isso gera outros impactos. Acaba excluindo os pequenos agricultores, especialmente os agricultores familiares do mercado. Ou acaba criando barreiras e esses pequenos agricultores têm que vender para intermediários que têm capacidade de processamento e, também, produzem o mesmo tipo de alimento. Isso cria intermediários poderosos na cadeia. Os supermercados, na ponta, acabam tendo o papel de ditar como que essa dinâmica vai acontecer – mesmo que indiretamente.

Sul21: A pesquisa ressalta o recorte de gênero dentro da cadeia – onde a situação acaba sendo ainda mais precária para a mulher na agricultura. 2017 teve como uma de suas marcas a aprovação da reforma trabalhista, que, por exemplo, abre precedentes para que mulheres grávidas e lactantes trabalhem em locais insalubres – manejando agrotóxicos, por exemplo. Como a Oxfam espera que esses dados impactem na vida dessas mulheres?

Gustavo: Fizemos duas análises. Sabemos que as cadeias de alimentos são altamente excludentes. Elas reforçam a situação de injustiça de gênero presente na sociedade. Na cadeia global do tomate, por exemplo – que envolve países como a Itália, o Marrocos e a África do Sul – nota-se que, mesmo tendo predominância da mulher, o salário feminino ainda é menor que o dos homens. Vemos que existe um problema estrutural. Além disso, analisamos 16 supermercados europeus e estadunidenses para entender que tipo de políticas eles adotam para o início da cadeia de fornecimento. A parte de políticas com enfoque de gênero teve os piores resultados. Foi praticamente inexistente. Então, não existe preocupação por parte de grandes supermercados, que ancoram grandes cadeias de abastecimento, para a situação das mulheres na produção de alimentos.

Sul21: Sobre essa lista, chamam a atenção alguns nomes – como a rede Whole Foods, que é publicizada como um supermercado que motiva uma vida mais saudável, com a venda de alimentos orgânicos. Apesar disso, teve um dos piores resultados segundo os critérios da Oxfam.

Gustavo: Claramente, existem lacunas muito grandes que eles têm que tentar preencher. Não queremos dizer que não tenham algum nível de preocupação, mas ainda há falhas em todos os grandes supermercados que precisam de melhorias urgentes. Chamar a atenção para isso é evidenciar que ainda há problemas que não podem ser detectados pelo consumidor somente na sua relação com o espaço físico.

A fatia que fica com os supermercados do preço pago pelo consumidor final – na média de toda a cesta de produtos e em uma série de países consumidores – aumentou de 43,5% em 1996 para 48,3% em 2015, enquanto a dos pequenos agricultores e trabalhadores caiu de 8,8% para 6,5% no mesmo período. Gráfico: Hora de Mudar/Oxfam

Sul21: Por isso a preocupação em divulgar os nomes das empresas?

Gustavo: Existe uma grande assimetria de poder entre a sociedade civil, os trabalhadores, os consumidores e as grandes empresas. Principalmente as grandes empresas globais, já que muitas têm o poder econômico semelhante ao de países pequenos. Só com ação coletiva conseguiremos fazer com que as empresas mudem suas atitudes. Por isso, precisamos que os cidadãos pressionem essas empresas. Além disso, o próprio mercado pode atuar em favor. Investidores e acionistas também podem cobrar posições. Esse é um trabalho que também tentamos construir, a partir da mobilização de diversos atores.

Sul21: Quanto ao Brasil, o relatório destaca dados sobre a produção de laranjas. O suco exportado aumentou mais de 50% ao longo dos últimos 30 anos, mas o lucro dos produtores diminuiu de 17% para 4% do valor final. Ainda assim, um em cada quatro copos consumidos de suco de laranja no mundo tem origem no Brasil. O que esse dado demonstra em termos de ações práticas?

Gustavo: Aqui no Brasil, tentamos fortalecer a visão de que, se ações políticas podem ajudar a aumentar a desigualdade na agricultura, aumentando a concentração de terra e a exclusão de pequenos agricultores, as políticas das grandes empresas do setor privado – tanto no Brasil quanto no exterior – também podem ter esse papel.

O caso da laranja é um caso clássico. A laranja passou por um processo de cartelização durante 20 anos, onde algumas empresas manipularam preços e, com isso, minaram a organização coletiva dos pequenos agricultores. Durante esse período, houve uma queda abrupta no número de agricultores no estado de São Paulo – que concentra grande parte da produção.

De 17 mil, foram para menos de 10 mil em questão de alguns poucos anos. Hoje, são cerca de 6 mil produtores de laranja. Três empresas que estiveram envolvidas no cartel: a Cutrale, a Citrosuco e a Dreyfus controlam 50% da produção da laranja e a maior parte do processamento em suco de laranja que é exportado. Então, os outros produtores dependem dessas empresas. Um em cada quatro copos de suco de laranja consumidos no mundo são do Brasil e essas empresas representam 90% da exportação. Isso é um poder imenso.

Sul21: E como isso se relaciona com os supermercados?

Gustavo: Nesses 20 anos, a política de preços do suco dentro dos supermercados aumentou muito. Os supermercados foram os que mais ganharam. Hoje, eles ficam com a maior fatia do valor do suco de laranja brasileiro. Nos últimos 20 anos, com esse cartel operante e o número de produtores reduzido, o preço aumentou para os consumidores europeus e americanos, logo, o lucro dos supermercados aumentou. Do outro lado, o valor que vai para os pequenos produtores caiu de 17% do valor final para cerca de 4% hoje.

Sul21: O que isso quer dizer?

Gustavo: Que, pela maneira como os supermercados estruturaram sua cadeia de fornecimento, reforçaram a lógica de empresas que atuavam criminalmente. A multa aplicada ao cartel do suco de laranja pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) foi a maior da história: R$ 300 milhões. Ainda assim, é pífia se comparada ao que essas empresas faturaram ao longo das últimas décadas.

No mesmo período, também observamos uma maior concentração de terras no estado de São Paulo. Além disso, como quase não há compra direta dos pequenos produtores, eles têm dificuldade de se organizar para processar a laranja e transformá-la  em suco. Então, eles são obrigados a vender o fruto para as empresas. Há alguns anos atrás, por volta de 2012 e 2013, houve uma supersafra e o preço do suco de laranja caiu muito. O que essas empresas fizeram: usaram os pequenos agricultores como uma zona de segurança. Privilegiaram a produção própria e os pequenos agricultores ficaram com a sua produção na mão, sem ter para quem vendê-la. Eles se organizaram em protestos, chegaram a despejar suco de laranja nas estradas. Mas a gente viu que a concentração econômica pode trazer situações desesperadoras e de muita vulnerabilidade.

“Não tem como discutir agricultura no Brasil sem pensar nas cadeias globais de produtos agrícolas.” Foto: Joana Berwanger/Sul21

Sul21: Quais outros produtos podem exemplificar essa concentração de poder econômico?  

Gustavo: O processo de concentração de renda na agricultura é muito forte no Brasil. As cadeias de frutas, no geral, ligadas à exportação – até por demandas de qualidade e exigências de como padronizar o produto para o transporte – acabam gerando impacto na atuação não só das grandes empresas, mas das que atuam como intermediárias. Assim, os supermercados e as grandes produtoras de alimentos e bebidas acabam concentrando seu fornecimento nessas empresas e excluem os pequenos.

Sul21: O relatório da Oxfam foi publicado em junho deste ano. Estamos em ano eleitoral, quando se fala muito em propostas para o setor agrícola – tanto do ponto de vista do pequeno produtor quanto dos grandes fazendeiros e empresários. Houve alguma resposta de entidades do governo ou de candidatos?

Gustavo: Não tivemos respostas do governos, mas tivemos algum engajamento com o setor privado; entre empresas ligadas ao setor alimentício. Ainda assim, a principal resposta veio da sociedade civil e de movimentos sociais.

Sul21: E isso se reverteu em alguma ação?

Gustavo: Por enquanto, não.

Sul21: Isso era esperado? Quais ações poderiam se somar aos dados trazidos pelo relatório?

Gustavo: Nesse momento, nossos principais alvos estão na Europa e nos Estados Unidos. Ainda assim, a campanha vai ocorrer por mais alguns anos. O que vimos até agora é que alguns supermercados europeus se comprometeram com mudanças. O Lidl (Alemanha) mudou sua política de importação da banana para comprar apenas produtos cuja origem esteja no comércio justo – ou seja, se comprometendo com prazos para tentar atingir um fornecimento em que os produtores não são prejudicados pela cadeia de consumo e garantir uma renda maior para os agricultores.

Sul21: Como esse impacto nas redes estrangeiras pode ser sentido na cadeia de produção brasileira?

Gustavo: Acho que tem dois lados dessa questão. Primeiro, não tem como discutir agricultura no Brasil sem pensar nas cadeias globais de produtos agrícolas. Há um reflexo no sentido de que, mesmo que a mudança esteja nos atores no final da cadeia de fornecimento, ela deve ser refletida aqui na postura que eles têm com relação ao campo.

O outro lado está relacionado ao papel dos supermercados no Brasil. Aqui, temos também uma alta concentração [de renda] no varejo. São três supermercados que concentram 46% do setor: o Carrefour, o Pão de Açúcar e o Walmart. Esses supermercados têm uma capacidade boa de mobilizar ações de impacto social e, até mesmo, uma certa preocupação. O problema é que eles são estrangeiros e a maneira como gerenciam a cadeia de fornecimento aqui não é aplicada a nível global. São processos completamente separados.

Sul21: Um é pior que o outro?

Gustavo: Ainda estamos analisando. Mas sabemos que são preocupações diferentes. Se o Carrefour aqui compra a maior parte de suas frutas de pequenos agricultores, isso não é necessariamente verdadeiro para o Carrefour global. Muitas vezes, o peso do Carrefour global pode ser maior. Não conseguimos mensurar isso ainda. Só que, além desses três supermercados, temos um setor supermercadista muito pulverizado no Brasil. São grandes empresas mas, muitas vezes, não têm estrutura. Há um desafio com relação a como chegar nesses empresários e nas suas lojas para trabalhar essa agenda.

Sul21: O relatório aponta que, nas Filipinas, boa parte dos produtores não têm acesso a uma alimentação básica de qualidade enquanto abastecem boa parte do mercado mundial com sua colheita. No Brasil, embora a fome tenha se mantido em patamar relativamente baixo desde o começo da década de 2010, a ameaça de crescimento do número de pessoas severamente subalimentadas é real – algo relacionado aos níveis de desemprego e subemprego elevados, com queda abrupta da renda das famílias e com a estagnação econômica. A lógica de mercado e da cadeia de produção pode agravar esse cenário?

Gustavo: Sim. A fome no mundo sempre esteve muito associada à pobreza rural. O que é uma contradição em si porque é onde está a produção de alimentos. Vulnerabilizar os trabalhadores que produzem alimentos é uma realidade em diversos países. O Brasil superou isso não por uma mudança na dinâmica da produção e nem na maneira como as empresas organizam seu fornecimento de alimentos. Superou isso através de políticas públicas específicas para o campo e de combate à fome. Mas isso está mudando. Com certeza, trará um impacto maior. Ainda é cedo para ter uma posição concreta sobre a volta da fome no Brasil, mas há um expectativa de deterioração.

Sul21: Como a sociedade civil pode contribuir para quebrar essa lógica?

Gustavo: Pesquisamos 12 produtos vendidos em supermercados e que fazem parte de cadeias globais. Com isso, identificamos que, quando existe organização coletiva dentro da agricultura familiar, a fatia do valor que fica com elas acaba sendo bem maior. A organização coletiva faz a diferença.
Além disso, em países com salário mínimo definido, a tendência é um aumento de renda dos trabalhadores também. Mas, mais do que isso, há um peso grande atribuído às vendas diretas. Agricultores que vendem diretamente aos consumidores ou aos supermercados, sem intermediários, conseguem ter uma renda maior.

Acho que o nosso papel enquanto sociedade civil e consumidores é pressionar os supermercados para que eles adotem uma postura mais pró-ativa de fomentar uma concentração do dinheiro de forma mais justa nas mãos dos produtores. Eles têm responsabilidade com a situação do campo e precisam encará-la.

Quadro elaborado pela Oxfam com projeções de ações para reverter a lógica de consumo e pressionar os grandes supermercados por mudanças. Gráfico: Hora de Mudar/Oxfam

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