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31 de outubro de 2018
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21:04

Doze indígenas são soltos após seis dias presos acusados de formação de milícia no interior do RS

Por
Luís Gomes
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Indígenas realizaram um protesto contra as prisões bloqueando a ERS-324, na altura de Três Palmeiras, na última sexta-feira (26) | Foto: Arquivo Pessoal

Luís Eduardo Gomes

Doze moradores da Terra Indígena Serrinha, reserva localizada entre os municípios de Ronda Alta e Três Palmeiras, no interior do Rio Grande do Sul, foram soltos na manhã desta quarta-feira (31) após quase seis dias presos. Os indígenas, todos homens da etnia kaingang com idades entre 22 e 45 anos, foram detidos em flagrante em uma operação realizada pela Polícia Federal (PF) na última quinta-feira (25) sob a acusação de extorsão de agricultores brancos e de formação de milícia privada, tendo a prisão preventiva decretada no último (27) pela justiça federal de Carazinho.

Conforme os autos do processo, a denúncia que originou a prisão partiu de uma família na tarde do dia 25, quando o agricultor Brasil dos Santos Menes, morador de Ronda Alta, alegou para a polícia que indígenas haviam entrado em sua propriedade munidos de armas de fogo e que realizavam plantio de terra sem a sua autorização. Além da prisão do grupo, a PF apreendeu na ação dois tratores, duas plantadeiras e quatro veículos pertencentes aos indígenas.

Os agricultores acusam os indígenas de cobrar pelo ‘arrendamento’ de suas terras em favor do cacique ou da cooperativa da TI Serrinha para que pudessem plantar no local e que, diante de negativa, teriam passado a ser ameaçados de terem suas terras ocupadas. Os kaingangs também foram acusados pela PF de envolvimento com uma denúncia de tentativa de homicídio registrada no dia 20 de outubro, quando outro agricultor foi atingido por um disparo de arma de fogo, tendo sido internado em estado grave em um hospital da região.

Marciano Inácio Claudino, presidente da Cooperativa de Trabalhadores Indígenas da (Cotriserra), diz que as acusações dos agricultores são infundadas. “Eles alegam que os índios montaram uma milícia. Só que o índio vive em grupo, defende o interesse em coletivo, planta as lavouras em mutirão. Bateram lá e não pegaram nenhuma arma, só uma faca”, diz.

O indígena, que acompanhou o caso, acusa a PF de já estar predisposta a criminalizar os indígenas e que a animosidade contra eles na região tem aumentado. “Uma rádio local deu a notícia e avisou que a PF ia prender índios bandidos. Algemaram os doze na frente da delegacia para os brancos poderem tirar fotos. Foi humilhante demais”, afirma.

Ele diz ainda que o episódio da tentativa de homicídio não tem nada a ver com os indígenas detidos, pois envolveria outra propriedade e pessoas que são, inclusive, de aldeias diferentes — nove grupos distintos compõem a TI Serrinha. Além disso, Marciano afirma que o indígena envolvido na briga que resultou em um agricultor baleado inclusive já se apresentou à PF para prestar esclarecimentos e assumiu sua participação, mas alega que fora atacado primeiro e que uma prova disso seria de que o disparo, que seria acidental, veio de uma arma pertencente a um colono branco.

Em audiência realizada na manhã de sábado na 1ª Vara Federal de Carazinho, o juiz substituto Fabrício Ponte de Araújo considerou que havia indícios suficientes de que os indígenas cometeram os crimes dos quais são acusados para que fosse decretada a prisão preventiva. Em sua decisão, ele mesmo destaca que não há elementos que permitam ter certeza sobre o envolvimento de todos os detidos, mas diz que os indícios existentes indicam que havia a constituição de milícia privada, pois teriam sido flagrados impondo à força o “plantio de terras alheias”.

O artigo 158 do Código Penal afirma que configura o crime de extorsão “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa”. Já o artigo 288-A afirma que se configura o crime de constituição de milícia privada “constituir, organizar, integrar, manter ou custear organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos neste Código”.

Em pedido de habeas corpus, a defesa dos indígenas alegou que a prisão foi ilegal, que o flagrante policial foi forjado e que o juiz foi enganado sobre a denúncia de tentativa de homicídio. Segundo a defesa, este fato teria sido incluído às demais denúncias para “dar conotação criminógena e crueldade de milícia fictícia na conduta dos pacientes que nenhuma relação guardam com qualquer dos fatos”.

A defesa alegou ainda que as prisões ocorreram quando quatro indígenas estavam trabalhando no plantio de uma área e foram “flagrados com maquinário próprio pela Polícia Federal”, não estando armados, o que tornaria sem sentido a acusação de formação de milícia.

O Ministério Público Federal, por meio da procuradora Fernanda Oliveira, também emitiu um parecer na segunda-feira (29) pedindo a revogação da prisão preventiva e a soltura dos indígenas.

Conforme o parecer, na origem da disputa pela terra, está uma ação civil pública que tramita na justiça pedindo a condenação do Estado do Rio Grande do Sul e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) a promoverem o reassentamento ou indenizar os ocupantes não-indígenas de lotes de terra que estão dentro da Terra Indígena Serrinha. No entanto, estes colonos, que não chegariam a 10 famílias, estariam se recusando a aceitar indenizações referentes às benfeitorias que fizeram no local, a serem pagas pela Fundação Nacional do Índio (Funai),  justamente porque ainda não receberam indenizações devidas pelo Estado e o Incra e, caso aceitassem, teriam que sair da área.

Os indígenas da TI Serrinha são acusados por estes agricultores de pressioná-los a receberam indenizações da Funai e alguns estariam ameaçando e exigindo o pagamento de uma taxa para que os colonos pudessem continuar plantando na área.

Marciano, que é filho de um antigo cacique da TI Serrinha, diz que os indígenas, de fato, estão impacientes com a demora para a resolução da disputa fundiária. A terra em questão é uma antiga área de propriedade da União gravada como reserva indígena pelo governo federal ainda nos anos 90. O território de 11.752 hectares abrange parte dos municípios de Constantina, Engenho Velho, Ronda Alta e Três Palmeiras. A maioria dos agricultores que estavam no local foram removidos e receberam indenização. Os kaingang cobram a remoção dos demais brancos, especialmente da Funai, órgão que acusam de já ter recursos suficientes para as indenizações.

“A Funai está com dinheiro. Se os brancos não querem receber, podem fazer o depósito em juízo. Até quando vamos ficar esperando a boa vontade dos brancos?”, questiona, para depois complementar: “Mas não quer dizer que estávamos armados, ninguém estava armado”.

Em seu parecer, a procuradora da República Fernanda Alves de Oliveira corrobora a tese de Marciano de que o ato de plantio e o modo de organização indígena são, por natureza, coletivos e que isso, por si só, não pode caracterizar a formação de milícia privada. Ela afirma que não há evidências de que os acusados se reunissem para tal. “A segregação de 12 pessoas sem qualquer elemento demonstrativo das condutas ilícitas de cada um deles equivaleria à prisão pela condição étnica”.

A procuradora avalia que a prisão preventiva foi prematura. Ela salienta também que a acusação de tentativa de homicídio deve ser apurada em auto separado. Além disso, aponta que outro crime do qual os indígenas foram acusados, esbulho possessório, depende de manifestação do ofendido ou de representante legal após a captura para que o auto de prisão em flagrante seja lavrado, o que não ocorreu. Destaca também que este crime, por ser de gravidade menor, não deveria justificar a aplicação de medida cautelar.

Nesta quarta, uma advogada que representa os doze indígenas detidos confirmou que eles tiveram o alvará de soltura expedido pelo juiz federal pela manhã.


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