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14 de setembro de 2018
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17:01

‘Quando olhamos para a habitação de interesse social, vemos a cidade como responsabilidade de todos’

Por
Sul 21
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Daniela Sarmento, presidente do CAU/SC. Foto: Maia Rubim/Sul21

Renata Cardoso

A Lei de Assistência Técnica em Habitação de Interesse Social (ATHIS), que entrou em vigor em 2008, assegura às famílias de baixa renda auxílio público e gratuito para o projeto e a construção de habitações de interesse social (centros comunitários, por exemplo) ou para sua própria moradia. A lei abrange o acompanhamento e a execução da obra a cargo dos profissionais das áreas de arquitetura, urbanismo e engenharia, que são remunerados pelo poder público, necessários para a edificação, reforma, ampliação ou regularização das habitações. Segundo a legislação, a assistência técnica pode ser oferecida diretamente às famílias ou cooperativas e associações de moradores.

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Iniciativas como essas podem trazer vários benefícios para a cidade como um todo, principalmente qualificando os usos dos espaços urbanos, possibilitando melhoria em termos de qualidade das habitações, além de proporcionar a democratização do conhecimento e a inserção social. Considerado por muitos o pai dessa lei, o arquiteto Clóvis Ilgenfritz afirma que mesmo tendo a lei como um instrumento importante e necessário, ainda há dois aspectos que interferem na aplicação efetiva da ATHIS: Por um lado, a falta de conhecimento e vontade política do poder público, que não consegue entender o alcance da proposta, e, por outro, a população que também não conhece e não pressiona para que a legislação seja aplicada. “Nós estamos em uma fase que, mesmo com dificuldades muito grandes, estamos furando esse bloqueio, tanto pelo lado institucional como pelo viés das comunidades. Ainda é um processo embrionário, mas já com grandes avanços no sentido de que estão acontecendo diversas experiências em vários pontos do país”, afirma.

Clóvis Ilgenfritz é considerado o pai da ATHIS. Foto: Maia Rubim/Sul21

Ainda segundo o arquiteto, no Brasil, existem problemas causados pela defasagem criada por questões econômicas, sociais e culturais, e algumas dessas disparidades têm sido resolvidas com subsídio governamental. “Há muito tempo existe a educação gratuita em todos os níveis. Na área de saúde, há o SUS, que é um dos projetos mais interessantes no mundo. Então nós precisamos fazer o mesmo para moradia. O arquiteto é um profissional que, assim como os professores, precisa ser utilizado. Temos um problema cultural, pois nós trabalhamos para oito a dez por cento da população, que tem poder aquisitivo, para obras públicas, e, em muitas delas, sem valorizar o trabalho do arquiteto. Por tanto, a gente está insistindo em dizer para o Brasil, para as comunidades, para as prefeituras, que é necessário que se crie uma espécie de SUS da moradia”, defendeu.

Durante a mesa que abordou o tema da habitação de interesse social no evento “Seminário Exercício Profissional”, realizado pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU) do Rio Grande do Sul, foram trazidos relatos de diversas experiências de aplicação da lei, como a implementação da Residência Profissional, curso criado pela Universidade Federal da Bahia e a experiência da nucleação dessa formação na Universidade Federal de Pelotas; o caso da realização do projeto de ATHIS em São Leopoldo, trazendo a experiência da Ocupação Cerâmica Anita; e o caso do projeto Morar Sustentável, que oferece apoio ao Assentamento 20 de Novembro, em Porto Alegre.


Também foi abordado o Plano Estratégico para Implementação da ATHIS, realizado pelo CAU/SC, representado pela arquiteta Daniela Sarmento, com quem conversamos sobre os impactos da lei para a sociedade e para a cidade como projeto urbanístico. Além disso, Daniela aborda a questão pelo recorte de gênero, mostrando como, inclusive na questão habitacional, as mulheres periféricas são as mais afetadas pelo descaso do poder público. Confira a entrevista:

Arquitetos e urbanistas reunidos na Fundação Iberê Camargo para encontro promovido pelo CAU/RS. Foto: Maia Rubim/Sul21

Sul21: Qual a importância social da ATHIS? Como ela impacta a vida das pessoas?

Daniela Sarmento: Eu acho que o primeiro impacto da ATHIS é a inclusão social. É a gente conseguir entender a cidade de uma perspectiva de que ela é para todos e de que ela afeta a todos. A questão da exclusão não é um problema só de quem mora em um local onde não há infraestrutura ou está isolado de uma área formal da cidade. Ela é uma consequência de um modelo econômico e social que não está dando conta de perceber que a cidade é o reflexo da nossa cultura. Quando a gente passa a olhar para a habitação de interesse social, passa a trazer esse debate para que se consiga ver a cidade como uma responsabilidade de todos.

Sul21: Como ter acesso a esse direito?

Daniela Sarmento: Essa lei está disponível desde 2008, mas a utilização dela depende muito do plano de habitação de cada município e de como a cidade se organiza com suas questões territoriais. As cidades que já têm um plano habitacional, que conseguem ter seu conselho de habitação de interesse social, ou seja, cumprir a lei, podem buscar recursos para disponibilizar essa possibilidade para comunidades que recebam até três salários mínimos. Mas não são todas as cidades que têm isso implementado, essa questão está desarticulada, mas a gente percebe que algumas cidades já estão atentas, que existem tentativas. Mas é interessante que não é preciso uma lei municipal para que o proposto pela legislação aconteça, é possível usar a lei federal para usar esse recurso.

Sul21: Esse recurso também pode ser utilizado para reformas e regularizações territoriais, correto?

Daniela Sarmento: A lei oferece o suporte técnico para todas as etapas da obra, desde a regularização, a reurbanização, a reforma de uma pequena parte da casa ou a casa toda. São vários arranjos que estão disponíveis para a sociedade.

Discussão sobre a lei de assistência técnica para habitação de interesse social. Foto: Maia Rubim/Sul21

Sul21: Do ponto de vista urbanístico, como essa lei pode melhorar a cidade?

Daniela Sarmento: Essa lei impacta diretamente na questão da sustentabilidade em todos os sentidos. Quando você tem uma cidade que se resolve na perspectiva social, você afeta e impacta a questão ambiental, a questão da saúde, da autoestima, da sociabilidade e da violência, por exemplo. Quando você tem uma solução que promove a inclusão, você diminui esses espaços de distanciamento entre as pessoas. Uma cidade que se aproxima é uma cidade que se conhece, que tem mais possibilidades de se respeitar. Eu considero a ATHIS uma lei estratégica para o desenvolvimento do país.

Sul21: Quais as relações entre a ATHIS e a questão de gênero?

Daniela Sarmento: Quando a gente traz a perspectiva de gênero para questão da habitação, principalmente nesses espaços de vulnerabilidade, as mulheres são as mais afetadas, pois são elas que lidam com o cotidiano desses territórios. O cuidado com os filhos, a relação com os pares, a dificuldade do dia a dia, a falta de alimento, de água, entre muitas outras questões. Quando a gente traz o assunto da exclusão nas cidades, o público feminino está extremamente vulnerável. As mulheres participam de atividades das comunidades, mas na hora de pensar essas leis elas não estão inseridas. Eu percebo com muita potência quando a gente vê as arquitetas envolvidas com a ATHIS: é um movimento de sororidade entre as arquitetas e as mulheres que moram nessas áreas. Então, eu acho que quando as mulheres estão fazendo esse debate do planejamento e da habitação, elas estão ocupando um espaço público muito importante, tanto para as mulheres que moram nas áreas de vulnerabilidade social e econômica quanto para a arquitetura.


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