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4 de setembro de 2018
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16:10

Nova medicina do câncer traz esperança e um dilema: estamos preparados para prever o futuro?

Por
Sul 21
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Siddhartha Mukherjee: “Já sabemos que cada caso de câncer é único. Não há doença como esta”. (Fronteiras do Pensamento / Luiz Munhoz)

Marco Weissheimer

Uma pesquisa realizada em 1986 nos Estados Unidos perguntou a um grupo de pessoas quais eram as palavras que elas mais temiam. As duas palavras mais citadas foram “tubarão” e “câncer”. O medo relacionado à primeira palavra foi, em grande medida, alimentado pelo filme de Steven Spielberg, de 1975. Já o medo em relação ao câncer se projeta bem mais longe no passado e, muito provavelmente, também no futuro. O medo do câncer está diretamente ligado à ameaça da morte, da nossa própria morte ou de entes queridos. Mas esse medo tem também outras dimensões. Uma delas é a possibilidade de tomarmos conhecimento, por meio de novas tecnologias médicas, da presença atual ou potencial de doenças em nosso corpo ou de alguém que amamos. Conhecer o futuro também abre espaço para o medo.

“No final da minha fala hoje aqui quero que vocês tenham um pouco menos de medo”, disse o médico oncologista e escritor Siddhartha Mukherjee no início de sua fala, segunda-feira à noite, no salão de atos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em mais uma edição do ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento. “Genes, câncer e o futuro da Medicina”, foi o tema da conferência do autor de “O Imperador de todos os males – uma biografia do câncer”, obra vencedora do Prêmio Pulitzer em 2011, e de “O Gene – uma história íntima”. Durante aproximadamente 45 minutos, Mukherjee falou sobre onde estamos agora na pesquisa sobre o câncer e quais os principais desafios para o futuro.

Ao abordar esses temas, o médico e professor da Universidade Columbia, citou uma crítica ao livro “O Imperador de todos os males” publicada na revista The New Yorker (Cancer World, 08/11/2010) Escrita por Steven Shapin, um historiador da ciência, a resenha toca num ponto considerado fundamental por Mukherjee. Um mundo onde o câncer é normalizado como uma condição crônica, mas administrável, seria uma coisa maravilhosa, mas um mundo de risco onde todos nós vivemos pensando nós mesmos como pré-cancerosos não seria nem um pouco maravilhoso, questiona Shapin. Essa situação de vigilância permanente, acrescenta, pode diminuir a incidência de algumas formas de malignidade, enquanto aumenta enormemente o número de pessoas saudáveis sob tratamento médico. Seria uma estranha vitória em que o preço a ser pago para identificar, o mais cedo possível, a presença de câncer no corpo seria a sua disseminação descontrolada pela cultura da sociedade, diz o historiador da ciência.

“Não estamos preparados para a disseminação cultural do câncer” Fronteiras do Pensamento / Luiz Munhoz

É importante ter essa reflexão em mente, assinalou Mukherjee, pois os avanços da pesquisa e da medicina estão nos colocando nesta direção. “Já sabemos que cada caso de câncer é único. Não há doença como esta. Estamos começando a entender o câncer em nível celular e molecular e avançando nas tecnologias de detecção precoce e tratamento preciso. Mas não estamos preparados para a disseminação cultural do câncer, referida por Steven Shapin, que esses avanços provocarão. E precisamos nos preparar para esse mundo que vai chegar muito mais cedo do que pensamos”.

Mukherjee citou três exemplos da gramática que já começa a descrever esse mundo. A palavra “previvente”, observou, não existia há dez anos e define as pessoas que ainda não tiveram a doença mas podem vir a ter.  Outra palavra recente é “scananxiety”, que é a ansiedade vivida por quem realiza exames de pet scan. Uma terceira expressão dessa nova realidade é “haircut party”, um encontro que reúne amigos e familiares de alguém que vai se submeter a um processo de quimioterapia.

Essas palavras e expressões, acrescentou, apontam também os marcos do novo plano global de luta contra o câncer. Esse plano tem três características centrais. A primeira delas é a ênfase em prevenção, por meio da identificação de novos estados carcinogênicos, como obesidade e inflamações, por exemplo. Esses estados carcinogênicos podem ser modificados por mudanças de comportamento (a redução do tabagismo é um exemplo disso). A segunda é a detecção precoce para identificar os primeiros sinais de câncer no corpo usando novas tecnologias como as biópsias líquidas. A terceira é o uso da genética e da fisiologia do próprio organismo para elaborar tratamentos individualizados.

As novas possibilidades de detecção precoce, por outro lado, trazem alguns problemas que precisaremos enfrentar, destacou Mukherjee. Como poderemos saber se não estamos fazendo diagnósticos em excesso, de forma desnecessária? Qual o custo para fazermos isso de forma massiva e sistêmica? Essa mesma questão se coloca para a possibilidade de tratamentos individualizados. “Cada câncer tem suas próprias digitais. A diversidade de casos de câncer é igual à diversidade de seres humanos. A diversidade da doença espelha a diversidade dos pacientes. Esse é um dos maiores desafios que temos que enfrentar”, acrescentou, referindo-se às novas possibilidades abertas pelas medicinas personalizadas com técnicas de imunoterapia, que utilizam o próprio sistema imune para atacar o câncer.

A partir da década de 1990, assinalou ainda, começou a ser possível não somente fazer essa personalização, mas também fazer isso o mais cedo possível. Isso significa abrir o debate sobre como reduzir o risco antes de ter câncer. “Estamos nos afastando da lógica do tratamento ‘daqueles que têm câncer’ para a lógica do ‘todos’. Esse é um deslocamento cultural muito importante. Passamos a pensar a questão do risco sob novas formas”. Hoje, nos Estados Unidos, relatou, é possível sequenciar a parte relevante do genoma de uma pessoa por aproximadamente 1.000 dólares. Esse preço deve cair significativamente nos próximos anos. De posse desse sequenciamento, é possível identificar riscos potenciais de se ter um câncer no futuro. Além das possibilidades de detecção precoce e de tratamento mais eficaz, isso também traz algumas questões incômodas. Mukherjee fez alguns questionamentos ao público para ilustrar esse ponto.

“Se escondermos da sociedade esse mundo que estamos criando, teremos problemas ainda maiores”. (Fronteiras do Pensamento/Luiz Munhoz)

“No futuro, será possível prever a altura de seu filho ou filha a partir do código genético do feto. Quem aqui gostaria de ter essa informação? Também será possível saber o risco de sua filha, por exemplo, ter câncer de mama, a partir do código genético do feto durante a gravidez? E se um exame desse tipo mostrar que seu filho terá 50% de chances de ter uma grave doença neuro-degenerativa quando tiver entre 10 e 15 anos, você levará a gravidez adiante mesmo assim? Quantos aqui fariam alguma coisa com essas informações. Esse é o mundo que estamos inventando e ele vai chegar mais cedo que imaginamos. É um mundo um tanto assustador”.

O médico contou que viveu esses dilemas quando sua obstetra perguntou se ele queria fazer o sequenciamento genético de seus filhos. “Tenho um histórico de doença mental em minha família. E se o sequenciamento genético mostrasse que uma delas corria esse risco, de que forma isso mudaria o meu relacionamento com elas. Uma delas teria essa marca e a outra não. A minha obstetra disse que isso era verdade, mas que havia outro elemento a considerar: se daqui a cinco anos nós tivermos um tratamento para essa doença, você não gostaria de saber que ele poderia curar sua filha?”.

Mukherjee comparou essa nova realidade que está emergindo aquilo que o sociólogo Erwin Goffman chamou de “instituição total”: “um local de residência e de trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por um período considerável de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada”. Ele retornou, aqui, ao questionamento feito por Steven Shapin, na New Yorker: em que medida ingressaremos em um mundo sob uma situação de permanente vigilância e angústia, onde acordaremos de manhã e pensaremos: é hoje que vou detectar meu câncer? É hoje que meu filho vai receber um diagnóstico da doença?”.

O médico não encerrou sua conferência, porém, com um tom pessimista “O mundo não é dividido entre cientistas e não cientistas. Se escondermos da sociedade esse mundo que estamos criando, teremos problemas ainda maiores. Por isso, entendo que devemos falar sobre isso e nos prepararmos para viver essa realidade que está surgindo”. Se fosse possível resumir a conclusão de sua conferência, ela poderia ser: não saber é pior.


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