Últimas Notícias > Geral > Areazero
|
26 de setembro de 2018
|
17:30

Ensino Superior: ‘Governos acham que a solução vai vir do mercado, privatizando, terceirizando’

Por
Sul 21
[email protected]
Francisco Tamarit participou de painel em Porto Alegre após o CRES | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Débora Fogliatto

Porto Alegre recebeu, nesta terça-feira (25), reitores e representantes de universidades do Brasil, da América Latina e do Caribe que participaram do painel “A educação superior no Pós-CRES 2018″, no Centro Cultural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O evento teve como objetivo fazer um balanço da última Conferência Regional de Educação Superior na América Latina e no Caribe (CRES), e contou com a presença do ex-reitor da Universidade de Córdoba e coordenador-geral do CRES, Francisco Tamarit.

O evento foi promovido pela Associação Nacional dos Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), a Associação Brasileira dos Reitores das Universidade Estaduais e Municipais (Abruem) e o Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Conif), com a coordenação da UFRGS. No dia anterior, Tamarit também falou sobre o assunto em palestra no Ciclo de Debates ‘A Universidade do Futuro – edição 2018’, promovida pelo Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados da UFRGS (ILEA) e pela ADUFRGS-Sindical.

A CRES 2018 foi realizada em junho em Córdoba, na Argentina, e foi a reunião preparatória do continente para a Conferência Mundial sobre o Ensino Superior, que ocorrerá em Paris, em 2019. Na ocasião, representantes de cada continente levarão à capital francesa suas propostas, que foram aprovadas nas conferências regionais. A conferência mundial é realizada a cada dez anos pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). “O que se fez em Córdoba foi a declaração de princípios, e aqui em Porto Alegre estamos trabalhando, assim como em outros lugares em paralelo, com um plano de ação para daqui a dez anos, que permita atingir as metas que temos traçado de forma conjunta”, explicou Tamarit em entrevista ao Sul21 após o evento.

Ele relata que a principal conclusão da CRES realizada em Córdoba foi reafirmar que para a América Latina e o Caribe o ensino superior é um direito de cada indivíduo. “É um direito humano básico, mas também um bem social da comunidade, que tem um valor estratégico muito alto e portanto é uma responsabilidade de cada um dos Estados”, diz Tamarit, que é professor decano da Faculdade de Matemática, Astronomia e Física.

Tamari relata que CRES defendeu maior integração das universidades no continente | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sobre uma maior articulação entre os países latino-americanos, Tamarit relata: “a gente reafirmou o desejo de que o sistema de ensino superior trabalhe de forma articulada, como acontece em outras regiões, para ganhar potência, fomentando a cooperação sul-sul, que atualmente não existe”. A ideia é que seja fomentada a cooperação acadêmica, particularmente a mobilidade de estudantes, e que cada país tenha conhecimento das atividades dos outros. É importante haver essa articulação entre os países da região porque os problemas locais não estão “na agenda dos outros continentes”, afirma. “A violência, a pobreza, falta de sustentabilidade, problemas de convivência por falta de respeito à diversidade cultural, a crise de governabilidade que ameaça a democracia na América Latina”, exemplifica.

O ex-reitor falou também do fenômeno de mercantilização da educação, que afirma ser uma constante no mundo inteiro. “Não é somente no Brasil, é no mundo todo, de algum tempo para cá, o ensino superior passou a ser visto como uma mercadoria, como um serviço pagável”, lamenta, colocando que a CRES se posiciona de forma contrária a esse pensamento. “Se é um direito e um bem, não pode ser o lucro quem faz a gestão do ensino superior”, aponta.

Confira a entrevista completa:

Sul21 – O senhor poderia fazer um balanço das principais conclusões tiradas no CRES 2018?

Francisco Tamarit – A principal conclusão foi reafirmar que, para América Latina e o Caribe, o Ensino Superior é um direito de cada indivíduo, um direito humano básico, mas também um bem social da comunidade, que tem um valor estratégico muito alto e portanto é uma responsabilidade de cada um dos estados. Isso foi aprovado por unanimidade. Outra conclusão é que temos que trabalhar muito na melhora da qualidade da cobertura do sistema, mas que essa concepção de qualidade tem que envolver as realidades da nossa região, em particular levar em conta o respeito à diversidade cultural, a necessidade de inclusão social e uma pertinência social muito forte. Porque entendemos que o conhecimento não é somente o processo de formação de profissionais, mas vai muito além, tem a ver com a solução para os problemas da nossa região, que são muitos. A gente reafirmou o desejo de que o sistema de ensino superior trabalhe de forma articulada, como acontece em outras regiões, para ganhar potência, fomentando a cooperação sul-sul, que atualmente não existe. E também uma mensagem pra chamar atenção para a necessidade e de que não é possível prescindir de um sistema de produção e transmissão do conhecimento num momento da humanidade no qual o conhecimento é o principal meio de mudar a qualidade de vida da sociedade.

“Nós achamos que a magnitude dos problemas da América Latina tem que incluir também uma solução científica, técnica, profissional” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21 – Aqui no Brasil temos debatido muito a questão da privatização e sucateamento das universidades públicas. Esse debate tem sido feito em todo o continente?

Francisco Tamarit – Não é somente no Brasil, é no mundo todo, de algum tempo para cá, o ensino superior passou a ser visto como uma mercadoria, como um serviço pagável. De fato, a organização mundial de comércio aceita que um dos serviços que o país possa comercializar seja o ensino superior. Isso vai contra a nossa ideia e contra a ideia que a CRES teve, de que temos que defender a ideia de um direito, de um bem. Se é um direito e um bem, não pode ser o lucro quem faz a gestão do ensino superior. É muito importante que o financiamento do sistema leve em conta que tem que ser considerado um bem público, um bem social.

Sul21 – Essas propostas, agora, serão levadas a Paris então?

Francisco Tamarit – Isso. A cada dez anos a Unesco organiza uma conferência mundial, e cada continente se prepara e apresenta a sua proposta. O que se fez em Córdoba foi a declaração de princípios, e aqui em Porto Alegre estamos trabalhando, também em outros lugares em paralelo, com um plano de ação para daqui a dez anos, que permita atingir as metas que temos traçado de forma conjunta. É um desafio muito grande porque a região não tem uma tradição de cooperação, nossas universidades têm uma tradição de cooperar mais com o primeiro mundo do que entre nós. Porque os nossos governos, sociedades não consideram importante ter um instrumento de transformação no mundo do conhecimento. Acham que a solução vai vir do lado do mercado, privatizando, terceirizando, e nós achamos que a magnitude dos problemas da América Latina tem que incluir também uma solução científica, técnica, profissional criada na região. Porque as nossas problemáticas não estão na agenda de outros continentes: a violência, a pobreza, falta de sustentabilidade, problemas de convivência por falta de respeito à diversidade cultural, a crise de governabilidade que ameaça a democracia na América Latina. Todos esses problemas nos afetam e de alguma forma permanecem ausentes da agenda do mundo do conhecimento. A América Latina tem boas pesquisas e trabalhos, mas temos que articular esse trabalho para que funcione como uma solução efetiva para os problemas da sociedade.

Sul21 – Como se daria essa maior cooperação entre os países da América Latina em termos da educação superior?

Francisco Tamarit – Estaria orientada para a cooperação internacional, abordar de forma conjunta problemas, especialmente os multidisciplinares, assim como a mobilidade de estudantes e acadêmicos. A ideia também é que o conhecimento das atividades que se faz em um país sejam transmitidas para os outros, e permitir que uma pessoa que estudou em uma região possa trabalhar em outra parte da América Latina. Hoje isso é uma barreira que está fechada para alguns cidadãos.

Sul21 – Como está a situação da educação na Argentina especificamente, com toda essa crise no governo do presidente Maurício Macri?

Francisco Tamarit – Estamos em uma etapa de muito debate, nesse momento se está discutindo o orçamento para o próximo ano e está havendo uma movimentação muito grande, tem tido grandes mobilizações. A Argentina está vivendo uma crise econômica que tem como fator fundamental o problema fiscal e o problema do endividamento. Tudo isso tem aquecido os debates sobre quem tem que pagar o ajuste, se é que tem que ter ajuste, e qual é o papel que o ensino superior tem que ter no momento de crise, se tem que ser parte do problema ou da solução. E nós estamos convencidos que o ensino superior é fundamental precisamente para dar um futuro de prosperidade e bem-viver para as comunidades.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora