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30 de agosto de 2018
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13:56

Ocupação que abriga famílias de haitianos em Porto Alegre tem despejo marcado para o dia 4

Por
Luís Gomes
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Ocupação que abriga famílias de haitianos em Porto Alegre tem despejo marcado para o dia 4
Ocupação que abriga famílias de haitianos em Porto Alegre tem despejo marcado para o dia 4
Ocupação Progresso, localizada na zona norte de Porto Alegre | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Luís Eduardo Gomes

É a história que não cansa de se repetir. A Ocupação Progresso, localizada no bairro Sarandi, em Porto Alegre, está com data marcada para sua reintegração de posse: a próxima terça-feira (4), a partir das 6h. Pelos contas dos moradores, serão 105 famílias, a maioria delas de imigrantes haitianos, que terão seus casebres demolidos e não terão mais um teto para passarem suas noites. Na terça-feira, a juíza Patrícia Hochheim Thomé confirmou a autorização para o despejo, já determinado no dia 14 de agosto, alegando que não cabe ao Poder Judiciário, nem ao proprietário da área que estava abandonada, promover uma política de moradia.

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Ilisiane Vida, representante da ocupação, explica que a Progresso surgiu há quatro anos e hoje conta com 105 famílias, das quais 65% seriam de haitianos. As famílias brasileiras seriam de antigos moradores de vilas do bairro Sarandi, como a Nossa Senhora Aparecida.

Em abril de 2015, uma ação de despejo já havia sido marcada, mas acabou sendo suspensa mediante uma liminar conquistada no Tribunal de Justiça. Posteriormente, o caso da Progresso foi enviado, junto com o de outras ocupações da Capital, para o Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc), órgão criado pelo Tribunal de Justiça para fazer a mediação de disputas por moradia.

Um acordo chegou a ser firmado nas negociações no Cejusc, explica Ilisiane. Em troca da possibilidade de permaneceram no local mais um período, as famílias deveriam pagar um valor mensal para os proprietários do terreno e se estabeleceria um processo de negociação para que eventualmente pudessem comprar a área. Ela diz que os proprietários chegaram a demonstrar interesse na venda, cuja área, composta por dois terrenos, estaria avaliada em 530 reais o m² em 2015, o que daria um valor total, na época, de aproximadamente 5 milhões.

No entanto, as famílias não conseguiram honrar com os pagamentos mensais depois do segundo mês e, na época, não tinham condições para pagar o valor. Ilisiane diz que, desde então, os moradores passaram a se organizar em uma cooperativa para tentarem acessar recursos do Minha Casa Minha Vida Entidades ou de outros programas de financiamento. O Departamento Municipal de Habitação (Demhab), oficialmente, defende que a organização em cooperativas é o caminho que ocupações devem seguir para conseguir a regularização fundiária. A ideia seria construir 100 casas por meio de um plano de construção popular e sem a necessidade de compra de toda a área dos terrenos hoje ocupados, o que poderia diminuir os custos e permitir que a compra da área, que parece inacessível quando apenas olhado o valor total, possa se tornar realizável com condições de pagamento a longo prazo.

Juliano Fripp, coordenador do Conselho Regional por Moradia Popular, entidade que representa cerca de 15 ocupações de Porto Alegre, inclusive a Progresso, diz que os representantes jurídicos da ocupação solicitaram à juíza Patrícia o reenvio do caso para Cejusc na última terça-feira (28). O suporte para o pedido era de que havia um fato novo, que é a aprovação da lei federal 13.465, de julho de 2017, que regulamenta os processos de regulação fundiária, passando essa responsabilidade para os municípios.

Com a recusa da magistrada, os advogados devem entrar com um pedido de liminar junto ao Tribunal de Justiça para barrar a ação marcada para o dia 4 de setembro. Os moradores pedem mais prazo para tentarem terminar de organizarem a cooperativa, o que traria a possibilidade de comprar a área em que moram atualmente ou outra.

O promotor Cláudio Ari Mello, da Promotoria de Ordem Urbanística do Ministério Público do RS, órgão que busca encontrar soluções para os conflitos urbanos fundiários, destaca, porém, que não vislumbra uma solução positiva para a ocupação, especialmente porque já houve negociação no Cejusc e que a tentativa de acordo não surgiu efeitos. “Quando se trata de uma ocupação em que não existe a perspectiva de acordo com o proprietário, seja público ou privado, não há muito o que fazer para evitar a desocupação”, diz.

Uma das alegações nesse recurso ao TJ é de que o despejo da Progresso irá deixar dezenas de famílias de haitianos sem ter onde dormir, o que feriria acordos internacionais assinados pelo Brasil de proteção a refugiados. “É uma situação de violência contra os imigrantes e os brasileiros também. A gente fez o que pode dentro das nossas possibilidades”, diz Ilisiane, que é presidente da Cooperativa de Habitação e de Trabalho Progresso. “Aconteceu com os venezuelanos em Roraima, agora vai acontecer aqui. A gente abre as portas das fronteiras para receber imigrantes e não dá condições nenhuma”, afirma.

Além do impasse financeiro, Juliano e Ilisiane dizem que, durante as negociações do Cejusc, o Ministério Público havia reforçado o pedido de remoção das famílias da área com a alegação de que tratava-se de terrenos contaminados por substâncias químicas, pois, quando da construção de um empreendimento de mais de mil apartamentos do Minha Casa Minha Vida no terreno ao lado por uma grande construtora, foi exigida a descontaminação do solo.

Os moradores então conseguiram, por meio do Grupo de Assessoria a Imigrantes e a Refugiados (Gaire), que a análise do solo fosse feita por estudantes e professores da UFRGS. Este trabalho começou a ser feito em 2016 e foi concluído apenas este ano, com os resultados sendo entregues à ocupação em 9 de agosto, cinco dias antes da nova decisão de reintegração de posse.

Outra luta da comunidade é para que a área seja de fato reconhecida como uma Área Especial de Interesse Social (AEIS), como havia sido por uma lei aprovada na Câmara de Vereadores de Porto Alegre em 2015. Pela legislação, 14 áreas demarcadas como AEIS na Capital deveriam ser destinadas para habitação popular. A matéria, porém, que já havia sido vetada pelo então prefeito José Fortunati – que teve o veto derrubado pelos vereadores -, acabou tendo sua validade suspensa quando a Prefeitura ingressou na Justiça com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), que ainda aguarda para ser apreciada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Ocupação Progresso está localizada ao lado de um conjunto habitacional do programa Minha Casa, Minha Vida | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Análise do solo

A professora Cláudia Luísa Zeferino Pires, professora de Geografia da UFRGS, explica que o processo de análise do solo começou como uma atividade de extensão desenvolvida por alunos da disciplina Organização e Gestão Territorial, no segundo semestre de 2016. “Chegou como uma demanda de pensar um diagnóstico da ocupação a partir da cartografia social, que é uma técnica de mapeamento que trabalha junto com a comunidade demandas relacionadas aos diversos temas, educação, saúde, trabalho, resolução de conflitos, etc” diz a professora.

Quando foram levantadas as suspeitas de que a área estaria contaminada por rejeitos industriais, cinco amostras foram coletadas no local em que a comunidade está instalado e encaminhadas para a análise, processo realizado sob o comando da professora Maria Lidia Vignol-Lelarge, do Departamento de Geologia da UFRGS.

“O que deu como resultado? O enquadramento apresentou contaminação. Mas as contaminações tem que estar relacionadas com os valores que as resoluções do Conama e da Fepam orientam. Alguns metais que foram encontrados – níquel, cobalto e cobre – não apresentaram valores de referência superiores aos limites estabelecidos em lei. Outros metais mais pesados, como chumbo e o cromo, foram encontrados num percentual que são superior aos valores de referência, mas inferiores aos que a resolução 420/2009 do Conoma diz que são valores de prevenção”, explica Cláudia Pires.

Ela destaca que, para os valores de contaminação encontrados, a recomendação é que seja feita uma ação preventiva e de correção do solo, que consistiria na retirada da camada superficial. Isso feito, não haveria impedimento para que o terreno pudesse ser utilizado para fins de habitação.

Decisão judicial

O acordo no Cejusc foi firmado em 1º de setembro de 2015. Pelos autos do processo, o pacto consistiria em conceder às famílias o direito de permanecer no terreno até 31 de dezembro de 2016 mediante o pagamento, a partir de abril daquele ano, de R$ 6 mil, sendo R$ 3 mil destinados para a empresa BWS Industrial Ltda e R$ 3 mil para as pessoas físicas de Manoel Cláudio e Rosa Zanon. O acordo previa ainda que, se não houvesse avanços na negociação para a compra da área, haveria a desocupação voluntária.

Em sua decisão, a juíza Patrícia Hochheim Thomé destaca que apenas duas parcelas foram pagas a BWS e que nenhuma foi paga às pessoas físicas. Ela pondera que, desde que o acordo foi firmado, “transcorreu amplo tempo para a devida regularização da situação dos ocupantes”, não restando dúvidas de que a ocupação descumpriu o acordo. A magistrada também ressalta que a legislação da AEIS está suspensa e que, mesmo que estivesse em vigor, não significaria que a ocupação deveria ter a posse automática do terreno. Salienta ainda que há outro projeto de AEIS em tramitação na Câmara, mas que não como prever prazo, nem o resultado dessa tramitação. Por fim, também desconsidera o resultado do estudo de solo, alegando que foi entregue apenas em 16 de agosto à Justiça e que não estaria dentro das normas técnicas exigidas.

Diante disso, a juíza diz em sua decisão de que não cabe ao Poder Judiciário e nem aos proprietários fazer a promoção do direito à moradia e ao bem-estar social, mas sim ao Poder Executivo. “Importante frisar que não se está a negar a vigência dos princípios e normas constitucionais acerca do direito à moradia. Para tanto, há instrumentos de inclusão social promovidos pelo governo, inclusive com a facilitação de aquisição de moradia por aqueles que dispõem de parcos recursos financeiros, como, por exemplo, através do conhecido programa Minha Casa Minha Vida, do governo federal”, diz a decisão. “O proprietário do imóvel em comento não pode suportar sozinho as mazelas proporcionadas pela grave crise financeira e social que assola os Estados e que acarretam situações como a do presente feito. Certo é que os órgãos municipais são os responsáveis pela realocação dos moradores da referida invasão (e que deve ser feita), não podendo tal fardo ser suportado apenas pelo proprietário do local. Por todo o exposto, indefiro o pedido dos réus e mantenho o prosseguimento do feito com a desocupação compulsória do bem objeto da presente lide, cujo cumprimento está agendado para o dia 04/09/2018, às 6 horas”.


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