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30 de agosto de 2018
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19:09

Mesmo com decisão do STF, pessoas trans enfrentam dificuldades para registrar seus filhos

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Sul 21
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Possibilidade de alterar nome no registro foi considerada vitória do movimento de travestis e transexuais | Foto: Ramiro Furquim/Arquivo Sul21

Débora Fogliatto

Desde março, pessoas transexuais maiores de 18 anos podem requerer a alteração de seu nome em qualquer cartório no Brasil, segundo determinação do Supremo Tribunal Federal (STF), que foi regulamentada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em junho. De acordo com o Provimento Nº 73 de 28/06/2018, a alteração independe de autorização judicial prévia, comprovação de cirurgia ou de tratamento hormonal. Também não é necessário apresentar um laudo médico ou psicológico.

Conforme a medida do STF, basta ser maior de 18 anos e levar ao cartório de registro civil RG, CPF, título de eleitor, certidão de casamento e de nascimento dos filhos (caso tenha) e comprovante de residência. A partir daí, os trâmites para mudar o nome na certidão de filhos também foram teoricamente facilitados. Isso porque, ao mesmo tempo em que se realiza a alteração do registro, é possível levar a certidão de nascimento da criança, que será alterada junto com o restante dos documentos.

A determinação judicial, no entanto, não significa que todos os cartórios já estejam preparados para tratar dos casos concretos, conforme Bruna Benevides, Secretária de Articulação Política da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). “Vemos algumas pessoas conseguindo buscar seu direito, porém começam a acontecer entraves jurídicos porque a forma como está constituída a sociedade como um todo, o Judiciário, o Legislativo, não está pensada a questão trans. Então, é um direito novo”, avalia.

A entidade lançou, em parceria com o Instituto PRIOS de Políticas Públicas e Direitos Humanos, o projeto “Eu Existo!”, a fim de contabilizar denúncias de pessoas que não estejam conseguindo acessar o direito de retificação civil. “A Antra monitora através de denúncias os casos de pessoas que não estão conseguindo retificar, e a partir disso vamos lançar um dossiê que vai balizar a necessidade de ser revisto o próprio provimento do CNJ, porque há itens que não facilitam e não desburocratizam”, relata Bruna.

Mães e pais

A partir das determinações do STF e do CNJ, aparecem novas situações com as quais os cartórios ainda não estão acostumados e, muitas vezes, não sabem como lidar. Uma dessas é o caso de pessoas trans que já têm o nome retificado quando seus filhos nascem e vão registrá-los, esperando incluir seu nome na certidão de nascimento e nos livros da cartório como pai ou mãe, de acordo com o gênero com o qual se identificam.

Para Bruna, essa questão precisa ser tratada pelo Estado, que, ao facilitar os trâmites do registro civil, deve prever que circunstâncias como essa aconteçam. “Se o próprio Estado reconhece que é legítima a identidade dessa pessoa, vai ter que dar conta das demais demandas, como a possibilidade de gestar e ter filhos. Cabe ao Estado rever as regras e adaptá-las às necessidades da sua própria população”, defende.

Decisões judiciais não preveem situações de casais trans com filhos |Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Com a intenção de abranger casais homossexuais, desde novembro de 2017, também por determinação do CNJ, pode constar nas certidões de nascimento, na categoria “filiação”, os nomes de duas mães e/ou dois pais. Já para os livros de Registro Civil, foi criada a categoria de pai/mãe “socioafetivo/a”, ou seja, que não é biologicamente relacionado ao filho, embora tenha os mesmos direitos e deveres do ponto de vista jurídico. Segundo a medida, ficam assegurados os direitos de ambas as partes no contexto da relação, como heranças e pensões.

Quando se trata de pessoas trans, no entanto, a questão não é tão simples. Isso porque a presunção de que duas pessoas do mesmo gênero não teriam gerado um filho é apenas verdade quando ambas são cissexuais, ou seja, pessoas não-trans, cuja identidade de gênero corresponde ao sexo designado ao nascer. Nenhuma das determinações recentes do STF e do CNJ prevê como lidar com casos em que haja duas mães ou dois pais biológicos.

Este é o caso de Ágata Mostardeiro, que desde o nascimento de seu filho Bento tenta conseguir o registro como mãe do menino, juntamente com sua namorada, Chaiane Cunha, que foi quem engravidou. Isso porque a gravidez de Chaiane ocorreu antes da transição de gênero de Ágata, o que significa que, biologicamente, Bento é filho das duas. Foi quando já estavam esperando o menino que Ágata conseguiu retificar seus documentos e oficializar seu nome. Mas a conquista do direito em seu próprio registro não garantiu facilidade na hora de registrar Bento.

Não existe atualmente uma forma de registro em que conste a possibilidade de duas mães biológicas, o que significa que o seu nome teria que constar nos livros do cartório como mãe socioafetiva. Embora não seja considerado o ideal pelo casal, esta foi a alternativa encontrada na tentativa de que o filho, que enfrenta problemas de saúde desde o nascimento, pudesse ter acesso ao plano de saúde de Ágata. “[Queremos] conseguir os direitos dele. O biológica é o certo, mas coloquei socioafetivo para tentar garantir o acesso dele ao meu plano de saúde”, relata Ágata.

A Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Rio Grande do Sul (Arpen/RS), por sua vez, afirmou tratar-se de um caso “extremamente peculiar”, por “envolver o registro de nascimento de um recém-nascido em que o pai biológico fez alteração de prenome e gênero para o feminino durante a gestação da criança”. Assim, após consulta ao Fórum da Comarca de Canoas, o Cartório de Registro Civil da 1ª Zona de Canoas aceitou que o registro de Bento fosse feito no nome do casal mediante apresentação de documentação médica que comprovasse o vínculo biológico de Ágata com a criança, além do comparecimento da mãe biológica. As mães, no entanto, optaram por ir ao Registro Civil da 4ª Zona de Porto Alegre, onde Chaiane declarou a “não indicação do suposto pai” e Ágata foi incluída como mãe socioafetiva, “sendo averbada a maternidade socioafetiva e figurando na certidão de nascimento filho de Chaiane e Ágata”, segundo a Arpen.

De forma semelhante, o casal trans Helena Freitas e Anderson Cunha, que em 2015 tornaram-se pais de Gregório, ainda batalha para conseguir mudar seus nomes na certidão da criança. Na época em que o menino nasceu, Helena já tinha carteira de nome social, enquanto Anderson ainda não tinha documentos que o identificassem como sendo do gênero masculino.

Em 2015, Helena e Anderson comemoraram a chegada de Gregório | Foto: Caroline Ferraz/Arquivo Sul21

Na ocasião, caso o nome social de Helena tivesse sido aceito para o registro, o casal se encontraria no mesmo impasse em que estão Ágata e Chaiane, visto que seriam consideradas duas mães. A única solução foi ambos registrarem com seus nomes anteriores, que não utilizam mais no dia a dia, para que pudessem ser considerados pais biológicos da criança. “Isso vai acontecer muito, visto que todas as pessoas trans podem mudar o nome desde que seja seu desejo. Ao passo que conseguimos essa primeira conquista, vai começar a ter mais pais e mães biológicas”, destaca Bruna.

“Passabilidade”

Ainda que essas situações causem estranhamento aos cartórios, a questão da transexualidade deixa de ser um empecilho para o registro quando a pessoa tem o que se chama de “passabilidade”, ou seja, quando aqueles que desconhecem a história da pessoa LGBT a leem socialmente como cis e/ou heterossexual. Eduardo*, de 29 anos, registrou a filha no final de maio sem encontrar nenhum problema ou resistência, quatro dias após receber sua própria certidão de nascimento retificada.

Ele conta que, caso não tivesse conseguido a retificação dos documentos a tempo, teria sido diferente. “Eu teria que registrar com o meu nome antigo, mas fiz de tudo para isso não acontecer porque não queria registrar como mãe, e sim como pai. Como minha esposa era quem ia ganhar o nenê, ela seria a mãe biológica e eu entraria como socioafetiva”, relata.

Quando foi registrar, Eduardo apenas se apresentou como pai da criança e deu seu nome à funcionária do cartório que foi ao hospital fazer o registro. Ele acredita, porém, que a facilidade tenha se dado pelo fato de que sua transexualidade não foi percebida pelo cartório. “Foi fácil porque não viram que sou trans. Se eles vissem, não teria sido tão fácil, ia ter toda uma burocracia”, afirma.

*O nome foi alterado a pedido da fonte

A matéria foi alterada às 13:48 do dia 31/08 para incluir a posição da Arpen.


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