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21 de julho de 2018
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11:27

O Observatório que monitora os casos de racismo e discriminação no futebol brasileiro

Por
Sul 21
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Marcelo Carvalho, criador do Observatório de Discriminação Racial no Futebol | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Fernanda Canofre

O início de 2014 foi marcado por uma sucessão de casos de racismo no futebol brasileiro. Começou em fevereiro, quando torcedores do time peruano Real Garcilasso imitaram macacos para provocar o volante Tinga, então jogador do Atlético-MG, numa partida da Libertadores da América. Em março, depois de uma partida do campeonato gaúcho entre Esportivo e Veranópolis, o árbitro Márcio Chagas encontrou o carro com as portas amassadas e bananas colocadas no para-brisa e no cano de descarga. Desde a sua chegada ao estádio Montanha dos Vinhedos, em Bento Gonçalves, ele já vinha escutando insultos pela cor da pele. Na mesma semana, no campeonato estadual paulista, o volante Arouca, destaque da goleada do Santos em cima do Mogi Mirim, também teve que ouvir os gritos da torcida rival: “macaco”.

Os casos chamaram a atenção de Marcelo Carvalho, 44 anos. Na época, ele fazia um MBA em gestão empresarial, mas já tinha contato com o mundo do futebol, cuidando das redes sociais de alguns jogadores. “Uma das inquietações que surgiram no curso era isso: existe racismo, não existe racismo? Comecei a apontar casos de racismo, mas [a lista] era muito grande. Comecei a acompanhar o que acontecia com eles, qual era a punição aos envolvidos, ao clube e não achei. Decidi então fazer um canal onde poderia colocar isso, não só os casos, mas o desdobramento deles”.

Casos ocorridos de 2014 foram inspiração para início de monitoramento | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Foi assim que surgiu o Observatório da Discriminação Racial no Futebol. Desde então, Marcelo e uma colega se dedicam a listar e monitorar o desenvolvimento de denúncias de racismo no futebol do Brasil. Recentemente, eles firmaram uma parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) para expandir os trabalhos. Em quatro anos, ele conta que já conseguiu traçar alguns padrões sobre os casos.

A imprensa, por exemplo, apesar de reportar muito sobre os episódios, fala pouco dos desdobramentos. Uma das dificuldades de produção do relatório de monitoramento, diz Marcelo, é encontrar as punições. A maior parte dos casos são ofensas de torcedores a atletas, há menos denúncias de casos dentro de campo. E, na maioria das vezes, elas partem de terceiros que testemunharam o episódio. Raramente a denúncia vem da vítima.

“Um atleta quando se torna famoso, ele não tem cor. O Neymar é o Neymar. Essa até é uma frase que o OJ Simpson dizia: não sou negro, sou OJ Simpson. Só que ele esquece que a família está na periferia, a mãe está lá, os primos estão lá e estão sofrendo com o racismo e tem cor. O que precisa dos jogadores é essa consciência”, diz Marcelo.

Ele lembra de uma vez que participou de um debate com o zagueiro Valmir Louruz, que afirmou nunca ter sofrido racismo durante a carreira. Louruz, falecido em 2015, jogou em times do interior do RS como Pelotas e Juventude, ganhou títulos no Inter e treinou a seleção do Kuwait nos anos 1990, na Olimpíada de Barcelona. Depois de uma hora e meia ouvindo os relatos do Observatório, porém, ele pediu a palavra. Queria pedir desculpas à plateia e dizer que tinha sim sofrido racismo. Ele só não havia se dado conta disso.

Marcelo, porém, acredita que há uma mudança nos últimos quatro anos. Ele cita, por exemplo, o caso de Paulão, ex-jogador do Inter, que foi vítima de gritos racistas da torcida do Grêmio, durante um clássico, também em 2014. Quase um ano depois, em uma entrevista, o próprio jogador declarou que o trabalho do Observatório o ajudou a entender que a denúncia poderia ajudar a mudar a ideia de “nunca dá em nada”.

Há uma mudança no comportamento dos próprios jogadores. No ano passado, o zagueiro do São José de Porto Alegre, Wagner Fogolari, denunciou nas redes sociais o racismo que sofreu por parte da torcida do Novo Hamburgo.

Com atenção da mídia, no primeiro julgamento, o time acabou sendo punido com multa. Depois que o caso esfriou, já no julgamento do recurso do clube, acabou absolvido.

Punições

Um dos casos emblemáticos a mostrar que denúncia pode dar resultado foi o episódio envolvendo o goleiro Aranha, então jogador do Santos, em uma partida contra o Grêmio, disputada em Porto Alegre. Fora de campo, o atleta fez questão de afirmar que os gritos de “macaco” não eram algo “normal”. Patricia Moreira, identificada pelas câmeras de TV como uma das torcedoras que gritava insultos contra ele, foi demitida e processada por injúria racial. A punição ao time gaúcho foi a expulsão da Copa do Brasil.

No mesmo ano do caso Aranha, 2014, ano de Copa do Mundo no Brasil, outros oito casos de racismo tiveram punição. Em 2015, o Observatório registrou apenas um. Em 2016, foram quatro. Na avaliação de Marcelo, é como se a justiça desportiva agisse quando percebe que os olhares estão sobre ela. “Existe também essa coisa do ‘vamos punir, porque está todo mundo olhando’, mas quando entra com recurso, geralmente, a punição diminui ou o clube é absolvido”, afirma ele.

Para Marcelo, é como se a justiça desportiva agisse quando percebe que os olhares estão sobre ela | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Marcelo também critica o fato de que as punições costumam ser irrisórias para os montantes que os clubes de futebol tendem a movimentar. Elas giram em torno de R$ 2o mil, segundo ele. Para ter uma ideia, só em 2018, o Grêmio já arrecadou R$ 17 milhões em bilheteria, com a venda de 412.187 ingressos. O número corresponde a uma média de 38% de ocupação do estádio.

“A gente teve um caso em 2016, quando o Atlético Paranaense foi punido, que depois o tribunal aumentou a multa. Essa é uma das exceções. E para onde foi o dinheiro? No caso deles, disseram que o dinheiro seria aplicado em uma campanha do próprio clube contra o racismo. Eu nunca vi. A gente já entrou em contato com o STJD para que fosse revertido para o Observatório, porque não temos entrada de recurso. Mas, sempre que um clube é punido, a gente encontra alguém na nossa frente”, conta.

Enquanto as punições aos clubes costumam ser mais leves, com chance de diminuir no recurso, para os indivíduos elas são ainda mais raras. Mesmo que a justiça desportiva aplique 720 dias sem poder entrar em um estádio, por exemplo, não há nenhuma fiscalização que garanta que a determinação seja cumprida. Para Marcelo, além de faltar uma integração entre o trabalho das polícias e Ministério Público com a justiça especializada, os próprios clubes não mostram interesse em buscar a punição.

“Nesse momento, tem que ser o clube punido. Para que eles façam campanhas e ações de prevenção. Se fizer um paralelo, com as primeiras vezes que objetos foram atirados no gramado, primeiro não se punia ninguém, depois puniram os clubes e indivíduos. O que acontece hoje? Toda vez que um objeto é atirado no gramado, imediatamente alguém já sabe quem fez, já identifica aquela pessoa, tem placas avisando sobre isso no estádio”.

Outros casos de discriminação

Relatório reunindo casos monitorados por Observatório é publicado anualmente pelo grupo | Foto: Joana Berwanger/Sul21

O Observatório também ampliou o escopo de monitoramento. Embora os casos de racismo sejam os únicos que conseguem trabalhar em dados, por serem os únicos punidos, o relatório anual passou a incluir citações a casos de LGBTfobia, machismo e assédio, xenofobia e – o mais novo na lista – intolerância religiosa.

No último relatório, houve registro de dois casos do tipo, um na Bahia e outro na Paraíba. Na Bahia, um atleta postou agradecendo aos orixás e foi atacado por ser “coisa do demônio”. Na Paraíba, o presidente da Federação, tinha uma imagem de Nossa Senhora Aparecida. Quando outro grupo assumiu a Federação, a primeira coisa que fizeram foi quebrar a imagem, também dizendo que eram “coisas do demônio”. A princípio, os dois casos haviam sido registrados como racismo.

Nos últimos quatro anos, enquanto reunia os casos para o Observatório, Marcelo conta que também viu novos movimentos se desenharem dentro do futebol que têm ajudado na conscientização contra a discriminação. Movimentos de torcidas como as antifascistas da dupla Gre-Nal, a Tribuna 77 do Grêmio ou mesmo o núcleo de ações afirmativas criado no Bahia. Infelizmente, porém, a maioria deles seguem sendo iniciativas de fora e não dos próprios clubes.

“É como diz Angela Davis: não basta dizer que eu não sou racista, tem que ser antirracista. É a mesma coisa para os clubes de futebol. Não basta dizer que no meu clube não acontece racismo, é preciso fazer algo. Pelo apelo que os clubes têm, de ser popular, de trabalhar com a sociedade”, explica Marcelo, antes de emendar: “Temos um problema na sociedade brasileira que é difícil para conversar. A questão do racismo mesmo, temos 54% da população brasileira que é negra, mas essa mobilização para discuti-lo não envolve 54%. Se fosse, já teria mudado. O sistema conseguiu colocar na cabeça dos negros que isso não era verdade”.

Marcelo cresceu na Vila do IAPI, em Porto Alegre, estudando em uma escola de freiras de Teresópolis. Era o único menino negro da escola e se sentia deslocado. Jogar futebol era a maneira de se integrar e esquecer que era “diferente” dos outros ali. Ele diz que espera que o trabalho do Observatório também consiga atrair mais atletas para trabalhos de conscientização sobre discriminação. Ao invés de ações muito pontuais, em datas específicas ou episódios de grande repercussão, que mais jogadores conversem com as crianças da periferia sobre o que precisa mudar.

“Eu costumo dizer que o futebol é um importante instrumento de inclusão social, de luta contra violência e discriminação. O futebol tem esse poder, basta querer usar. Essa história que futebol e política não se misturam é uma grande mentira, eles sempre se misturaram”.

Conheça alguns dos casos destacados pelo Observatório:

Foto: Joana Berwanger/Sul21

INTOLERÂNCIA RELIGIOSA

Quando o futebol brasileiro foi medalha de ouro nas Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016, o atacante Neymar Jr. puxou rapidamente uma faixa branca para colocar na cabeça: 100% Jesus. Enquanto jogadores evangélicos têm se manifestado cada vez mais publicamente sobre sua fé, outras religiões não só sumiram dos campos, mas passaram a ser reprimidas.

Depois de dois episódios de discriminação a jogadores seguidores de religiões de matriz afro, o Observatório resolveu incluir a intolerância religiosa em sua lista.

“Isso vem muito de uma mudança que estamos vivendo no Brasil atual. Antigamente, os jogadores sempre foram mais ligados às religiões afro, usavam guia, acendiam vela, os pais-de-santo eram levados aos estádios. Paulo Paixão, quando o Inter foi campeão da Libertadores, em 2006, jogou bala de mel e colocou imagens atrás do gol. É uma mudança nova, pelo crescimento das religiões evangélicas. Não posso dizer que a maioria dos jogadores, hoje, são evangélicos, mas a maioria que se manifesta são evangélicos”.

CASO ARANHA

O episódio de racismo sofrido pelo goleiro Mário Lúcio Duarte Costa, conhecido como Aranha, então no Santos, em 2014, durante uma partida contra o Grêmio em Porto Alegre, se tornou emblemático. Torcedores do clube gaúcho foram filmados por câmeras de uma emissora de televisão gritando “macaco” para o jogador. A torcedora Patrícia Moreira acabou sendo a única identificada, na época, se tornando alvo de inquérito policial e perdendo o emprego. Uma página racista, em “apoio” a ela, chegou a ser criada na época.

Para Marcelo, o caso cresceu em significado graças a todo um debate em torno de episódios anteriores que marcaram aquele ano. “A gente debate todo caso de racismo como se fosse o primeiro. Que punição tem que ter, como se fosse o primeiro caso”, diz ele.

Aranha se manteve firme quanto ao pedido de punição aos autores dos gritos racistas e viu sua carreira pagar caro. Depois do Santos, acabou jogando na Ponte Preta e, em fevereiro deste ano, depois de ter o contrato rescindido, assinou com o Avaí, time catarinense que disputa a série B do campeonato brasileiro.

O ATAQUE À ALMA CELESTE

Em 1º de julho de 2017, o Paysandu jogava contra o Luverdense mais uma partida da série B do Brasileiro. A torcida organizada conhecida como Banda Alma Celeste resolveu puxar um protesto diferente naquele dia: estenderam em uma parte do estádio uma bandeira do movimento LGBT. Três dias antes, havia sido o dia internacional do orgulho LGBT, marcado pelo aniversário do massacre ocorrido no bairro de Stonewall, em Nova York, em 28 de junho de 1969.

Outros torcedores do clube, porém, se irritaram com a demonstração. O caso se tornou o primeiro de homofobia que foi julgado no Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD). Para Marcelo, ele é bem emblemático porque, apesar de ter punido o clube por violência, absolveu a acusação de homofobia. A briga não foi registrada na súmula do árbitro da partida.

XENOFOBIA

Um dos novos atos de discriminação que passaram a ser incluídos no relatório deste ano são os casos de xenofobia. O Brasil não possui um número expressivo de atletas estrangeiros jogando nos clubes nacionais, graças à cota que determina um limite de quantos jogadores de fora podem ser contratados. Em 2013, ela passou de três para cinco atletas. A CBF também anunciou recentemente que refugiados não seriam incluídos nela.

“Começou a nos chamar a atenção, porque a imprensa citava isso em alguns casos. Mas, não existe um caso específico, só algum jornalista falando de algum caso, mas de forma muito leve. Se percebe muito isso em jogos entre Brasil e Argentina ou quando um atleta do exterior comete algum erro, a primeira coisa que citam é que não é brasileiro”, explica Marcelo.

Segundo ele, assim como ajuda a denunciar os episódios, é a própria imprensa que colabora para reforçar a xenofobia no esporte.

MACHISMO

Em 2017, o Observatório registrou cerca de seis casos de machismo em seu relatório anual. Marcelo diz que 2018 já teria superado a marca e deve entrar como um recordista em denúncias. “Porque a gente percebe que alguém reclama, ganha apoio e outras pessoas que sofreram aquela violência vão se manifestar”, salienta.

Além dos casos de assédios a mulheres frequentando os estádios de futebol, especialmente aquelas que trabalham cobrindo o esporte, ele conta que o machismo também se expressou em torno da LGBTfobia, especialmente com atletas transgênero. O caso mais conhecido é o da jogadora de vôlei, Tiffany Abreu, a primeira mulher trans a disputar a Superliga. Ela se tornou alvo de grupos conservadores, questionando se poderia ser autorizada no torneio.

“Não é um crescimento das violências, mas da consciência das pessoas [em torno dessas questões]”, diz ele.


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