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20 de julho de 2018
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21:03

Em parceria com a Bayer, MP ofertará a jovens abrigadas contraceptivo reprovado por Comissão do SUS

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Sul 21
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Bayer não conseguiu aprovar o SIU-LNG na Conitec. Foto: Divulgação

Giovana Fleck

No dia 27 de junho de 2018, adolescentes acolhidas em Porto Alegre por instituições vinculadas ao município participaram de uma palestra sobre gravidez na adolescência e métodos contraceptivos. “Em especial, aprofundou as explicação sobre o Mirena”, afirma notícia publicada no site do Abrigo João Paulo II. Mirena é um dos diversos métodos contraceptivos disponíveis para evitar a gravidez. No formato de um pequeno ‘T’, o dispositivo também é conhecido como SIU (Sistema Intra-Uterino) e libera, gradualmente, o hormônio levonorgestrel no organismo.

Cerca de 20 dias antes da palestra, o Ministério Público, o Município de Porto Alegre, o Hospital de Clínicas de Porto Alegre, o Hospital Materno Infantil Presidente Vargas e a Bayer S/A assinaram um Termo de Cooperação para acesso das adolescentes inseridas em programa de acolhimento institucional às políticas de saúde da mulher e de planejamento reprodutivo introduzidas pela Lei 13.527/16.

Na ocasião, a promotora de Justiça da Infância e da Juventude e responsável pela fiscalização dos acolhidos em Porto Alegre, Cinara Vianna Dutra Braga, afirmou que a medida simboliza um avanço. “Tenho visto meninas de 12 e 13 anos gestantes ou já mães e sabemos das dificuldades dessas situações. Para as acolhidas é ainda pior, pois elas já enfrentam uma situação de vulnerabilidade extrema. Essa parceria vai garantir o atendimento a 100 dessas jovens que, por sete anos, estarão protegidas e poderão planejar o futuro sem o risco de uma gravidez precoce. O papel de cada um nesse termo é de fundamental importância”, disse, se referindo às entidades signatárias.

No entanto, a ação tem sido contestada por grupos formados pelo Conselho Estadual dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes (CEDICA), pelo Conselho Estadual de Assistência Social (CEAS), por professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e por outros coletivos. No dia 18 de julho, eles lançaram um abaixo-assinado para mobilizar a sociedade em torno do tema.

Eles argumentam que o MP/RS estaria alinhado aos interesses da indústria farmacêutica, já que a Bayer não conseguiu aprovar o SIU-LNG na Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia para o SUS​ (Conitec), em 2016. De acordo com relatório mais recente da Conitec, a recomendação é a “não incorporação do sistema intrauterino liberador de levonorgestrel 52 mg para anticoncepção em mulheres de 15 a 19 anos de idade”. “Consideramos que as evidências científicas apresentadas não foram suficientes para comprovar superioridade da tecnologia proposta comparada às tecnologias disponibilizadas no SUS”, resume o estudo.


“Em resumo, o que está acontecendo é mais uma das estratégias das redes criadas pela indústria farmacêutica e sua pressão para vender seu SIU/DIU hormonal ao SUS. Só que agora com a benção do Ministério Público”, diz a médica e professora do Bacharelado de Saúde Coletiva da UFRGS, Gabriela Godoy.

‘Se é Bayer, é bom’

O relatório da Conitec também mostra que a demandante para incorporar o SIU-LNG no Sistema Único de Saúde foi a Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo). Há, no entanto, certa contradição envolvendo a Federação. Em 2018, a Febrasgo lançou uma cartilha sobre o uso de DIU em nulíparas (mulheres que nunca tiveram filhos). Ao final das mais de 15 páginas contendo explicações baseadas em pesquisadores da saúde e estudos recentes encontra-se uma propaganda do Mirena, produzido pela Bayer. Na contracapa, o logotipo da marca é colocado em destaque, com a indicação de patrocinador e o slogam: “Se é Bayer, é bom”.

“Vale dizer também que, embora essa cartilha tenha um autor específico, o presidente da comissão de anticoncepção na adolescência da Febrasgo, a mesma é chancelada por todos os seus membros, dentre os quais uma das médicas que está envolvida no Termo de Cooperação pelo HCPA”, aponta Gabriela. Procurado pela reportagem, o consultório da médica informou que ela estava fora do país, não tendo retornado o contato.

“Desde 2013 a Bayer tenta aprovar o Mirena. Da forma como o Termo de Cooperação foi redigido, a Bayer é colocada como ‘boa’ de forma unilateral”, defende Gabriela.

No documento, a empresa é citada por prezar “pela saúde e segurança da população” e por ter como missão “ampliar o aconselhamento a respeito de métodos mais eficazes, bem como sobre a importância do planejamento familiar”. “De maneira alguma sou contra o uso de anticoncepcionais na adolescência, mas eles não podem ser induzidos”, diz Gabriela.

Ela questiona os motivos para outras opções não terem sido levadas em conta durante a elaboração do projeto. “O DIU de cobre custa R$ 18 no SUS. É uma outra alternativa, por não ser um método hormonal e foi aprovado pelo Conitec”, afirma a médica.

DIU de cobre, que hoje é disponibilizado também pelo SUS | Foto: Ministério da Saúde

Quebra de protocolo

Outro ponto contestado é a ausência de participação do Conselho Municipal de Saúde (CMS/POA) no processo. Segundo Neusa Heinzelmann, presidente do Conselho Municipal de Direitos das Mulheres de Porto Alegre, há uma determinação do Tribunal Federal da 4ª Região (TRF4) que requer a aprovação do CMS em todas as deliberações sobre novos contratos, convênios e projetos no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).

O MP admite que não houve intermédio da Secretaria da Saúde ou do SUS no contato inicial com a Bayer. Uma das justificativas seria o fato de não ter havido transferência de valores para nenhuma das instituições participantes. “Mas, então, porque a Fundação de Assistência Social (Fasc) não estava presente na assinatura do Termo de Cooperação?”, questiona Neusa.

Para Carmen Oliveira, representante do Fórum de Saúde Mental, uma das entidades denunciantes, isso também estaria ligado a uma política de institucionalização. Segundo dados do Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas (CNCA), o Rio Grande do Sul é o 2º estado com maior número de jovens abrigados, atrás apenas de São Paulo. São 4.862 abrigados no estado, até o momento, em 2018.

“Cada criança acolhida significa um repasse de R$ 3.500 para uma rede 100% terceirizada em Porto Alegre”, aponta Carmen. “Questionamos a promotora Cinara Vianna Dutra Braga (signatária do Termo de Cooperação) para tentar entender os motivos para não colocar esses recursos nas famílias dessas crianças, que muitas vezes são abrigadas ainda bebês. Mas a resposta foi vaga.”

O que diz o MP

Segundo o Ministério Público, a demanda surgiu das unidades de acolhimento institucional vinculadas à Fundação Pão dos Pobres. Após algumas adolescentes retornaram aos espaços de proteção grávidas, o Pão dos Pobres teria registrado expediente para o auxílio. Segundo as diretrizes do Termo de Cooperação, pelo menos 60 unidades serão disponibilizadas para as adolescentes. “Feito o levantamento junto às casas de acolhimento institucional, foi informado que, atualmente, aproximadamente 100 adolescentes possuem vida sexual ativa, necessitando de orientação sexual e do uso de contraceptivo”, afirma o Ministério Público.

Assim, o MP afirma ter consultado diversos ginecologistas e obstetras. Então, foi “convencida da qualidade dos contraceptivos de longa duração e da sua melhor adequação em detrimento aos demais, notadamente às adolescentes inseridas em acolhimento institucional, grupo de extrema vulnerabilidade, procurou a Bayer S/A, única empresa que produz e comercializa o SIU no Brasil, noticiando a realidade das meninas institucionalizadas e solicitando parceria para a sua proteção”. A Bayer, então, se prontificou de forma espontânea e gratuita.

“Importante salientar que as adolescentes e seus técnicos responsáveis foram orientados sobre todos os métodos contraceptivos, inclusive a necessidade do uso conjunto da camisinha, quando da relação sexual, para a proteção contra as doenças sexualmente transmissíveis”, completa.

Eles reforçam ainda que o DIU de cobre também será ofertado à adolescente encaminhada aos hospitais parceiros que, na consulta médica, avaliarão qual o melhor dispositivo a ser utilizado. “Oferta-se o DIU Mirena porque, segundo pesquisas médicas recentes, é o dispositivo que menos contraindicações oferece à adolescente uma vez que a liberação de hormônio se dá dentro do útero na menor quantidade necessária, tendo indicação para adolescentes com histórico de anemia e que não tem regularidade no uso de contraceptivos orais ou injetáveis”, afirma o MP.

Procurado pela reportagem, o responsável pelas abrigadas na Fundação Pão dos Pobres não retornou os contatos.

 

 


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