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22 de julho de 2018
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11:50

Debate aponta violência estrutural contra mulheres na construção das cidades

Por
Luís Gomes
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Clarice, Daiana e Denise debateram a relação das mulheres e a cidade em evento da Minha Porto Alegre e do IAB-RS | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Luís Eduardo Gomes

Na última quarta-feira (18), a Rede Minha Porto Alegre, em parceria com o Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-RS), realizou o debate “Mulheres e a Cidade”, com a participação de Denize Vàsquez, Daiana Santos e Clarice Oliveira. Na pauta, a crítica de que as cidades não foram pensadas para as mulheres, a quem deveria ser reservado o espaço privado, com o espaço público sendo o território dos homens, o que produz violências e ameaças constantes a elas. E, além disso, não foram pensadas para integrar as mulheres que estão nas margens, aquelas que sequer têm o conhecimento de que possuem direitos a acessar.

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Educadora social no projeto Ação Rua, que busca estabelecer uma rede de assistência a jovens e adultos em situação de rua, Daiana Santos destaca que, ao falarmos de cidades, precisamos lembrar que elas não são feitas para todos os seus habitantes. Para Daiana, as mulheres negras em situação de rua, por exemplo, são intencionalmente retiradas de políticas públicas ao ponto de sequer ssserem capazes de compreender que possuem direitos. “Eu falo de uma cidade para mulheres, mas a maioria delas mora em lugares que nem existem, são irregulares. Mulheres que, às vezes, têm três ou quatro empregos para sobreviver. A sociedade as criminaliza e as distancia, em termos de oportunidades. Como eu garanto o direito de pessoas que nem sabem que têm direitos?”

Daiana (centro) apontou que não basta pensar a cidade de uma perspectiva feminista, mas é preciso pensar a partir de seus recortes | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Para Daiana, o primeiro processo de marginalização é em relação ao acesso a direitos. “Quando falo acesso, não falo somente a saúde, educação, habitação, eu falo a políticas públicas que garantam direitos a todos. Esses todos não nos contemplam. Porque o todo muitas vezes não considera que, mesmo diante de uma vulnerabilidade, essa vulnerabilidade precisa ser pensada com recortes. E esse recorte, quando a gente fala de mulheres negras, traz, para além de um pertencimento a uma cidade que não existe, coisas que são especificidades. Quando a gente fala dos dados, do Mapa da Violência, da evasão escolar, os negros são a maioria. Mas trago um dado que começa a contemplar e a contextualizar o que é ser mulher negra numa sociedade. Falo da gravidez na adolescência. Mulheres negras são o maior número de mulheres grávidas na adolescência, e tem toda uma estrutura que já vai sendo retirada delas. Essa estrutura fala sim do acesso à educação, que essa educação vai trazer informação, que essa informação, sendo anulada, faz com que ela, na vida adulta, tenha uma série de outras complicações relacionadas ao pertencimento a uma cidade. Uma cidade que já exclui pela margem”, diz.

Diante dessa lógica de exclusão, não seria possível pensar uma cidade da mesma forma para todos os seus habitantes, uma vez que as reclamações de alguns sequer passariam pela cabeça de quem está em outra posição. “Aqui a gente falava, eu enquanto mulher negra, com duas mulheres brancas, que falam de acesso, de ciclovia, de parque, de cultura. Tudo isso não tem na periferia. Pensar nessa relação de uma cidade para todas, é pensar na especificidade do que é ser negro e o que é ser mulher negra”, diz.

Para começar a construir essa cidade que seja de fato para todos, ela defende que não basta realizar discussões e produzir informação nas regiões centrais, mas levar isso para a periferia. “A gente precisa descentralizar a informação. Esse espaço mesmo, um espaço que foi extremamente potente, mas essa informação vai chegar lá? E, se chegar, de que forma ela chega? Porque a mídia não consegue chegar. O que é vendido é o que já vem pronto e o que vem pronto não traz a crítica. E o que não traz a crítica não vai beneficiar as pessoas que estão lá na ponta. Então, pensar numa descentralização é pensar numa unidade de base. Quando a gente fala de base, a gente fala de oportunidades iguais, porque aqui, nesse país, a gente vive um período em que as pessoas são criminalizadas, são apontadas, elas são marginalizadas, mas, principalmente, elas são culpadas pelo não fazer, pelo não ter, porque a meritocracia diz que, se ele não tem, é porque ele não quis. E a gente sabe que não é isso”.

Denise pondera que a cidade não foi feita para mulheres ciclistas | Foto: Guilherme Santos/Sul21

A administradora Denize Vásquez abordou a questão da mobilidade urbana a partir de uma perspectiva feminista, apontando que vê a cidade como um espaço de “constante ameaça para a mulher”. Ela reconhece que falar de um feminismo de ciclista já significa partir de uma posição de privilégio. O privilégio de quem mora e trabalha em uma área central da cidade e que pode ter na bicicleta um meio de transporte. Ela destaca que o Mobicidade, coletivo do qual faz parte, tenta fazer essa discussão, que produz pautas como a defesa de um transporte intermodal, que interligue ônibus, bicicleta e outros meios de transporte. “Mas ser mulher na cidade também não é fácil”, diz. “A maioria das mulheres não enxerga a bicicleta como meio de transporte”.

Falando de uma perspectiva do urbanismo, a arquiteta Clarice Oliveira ponderou que a cidade, originalmente, era tida como a base onde ocorria a produção econômica. Com o passar do tempo, o desenvolvimento da indústria e das tecnologias desvinculando a produção do solo, as cidades passaram a ser mercadorias, matérias-primas a serem comercializadas. Ela avalia que, nesse cenário, são reproduzidas as relações sociais de produção, relação entre os meios de produção e do trabalho. “A cidade é uma mercadoria que exclui a mulher, o preto e o pobre”, diz. “Mas não se pode pensar apenas nas relações de classe, também numa perspectiva de gênero e raça”.

Para Clarice, pensar na divisão sexual do trabalho é o que permite compreender que, na origem das cidades, à mulher foi destinado o espaço privado, enquanto o espaço público foi destinado ao homem. “A mulher deveria ficar cuidando da casa, do marido e da família para que o homem possa exercer a sua capacidade produtiva”, diz. “Mas as mulheres estão nessa condição por construção histórica, não pela sua biologia. Fomos colocadas nesse lugar, não precisamos permanecer lá”.

Como resultado dessa construção histórica, a mulher acabou tendo a sua liberdade de ir e vir suprimida. É o que, para ela, permite que a mulher, ao estar na rua, possa ser assediada, possa ser violentada apenas por estar desacompanhada.

Clarice destaca ainda que, mesmo algumas evoluções que possam ter sido verificadas nessa questão, não necessariamente são vitórias do feminismo. Como exemplo, o fato de que muitas das medidas consideradas liberais em relação às mulheres são resultado da necessidade de que as mulheres também sejam empregadas como forças produtivas, não de uma superação da cultura machista.

A arquiteta diz que percebeu isso mais claramente, esse machismo estrutural, quando engravidou. “Quando a mulher engravida, de novo ela é colocada no espaço privado, porque a paternidade não é exercida da mesma forma que a maternidade. Exceto em alguns países, a gente não tem o mesmo tempo de licença para pais e mães”, destaca.

Debate foi realizado no Solar do IAB-RS, no Centro de Porto Alegre | Foto: Guilherme Santos/Sul21

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