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26 de junho de 2018
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19:06

Sem prédio e sem verba estadual, universitários moradores da antiga Ceuaca temem despejo

Por
Luís Gomes
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Abandonado há quatro anos, prédio onde existia a Ceuaca mostra sinais de degradação | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Débora Fogliatto

Universitários vindos do interior do Rio Grande do Sul, de diversos estados brasileiros e de outros países para estudar em Porto Alegre precisam lidar, além de com os trâmites das instituições de ensino, com as dificuldades de se sustentar na capital gaúcha. Para jovens de baixa renda, uma das soluções é morar em casas do estudante, locais de moradia gratuita geralmente subsidiadas pelas próprias universidades ou governos. Desde 1934, uma alternativa é a Casa do Estudante Universitário Aparício Cora de Almeida (Ceuaca), que até 2014 ficava localizada na Rua Riachuelo, no Centro da capital.

Segundo os moradores, sua história começa antes ainda da doação do imóvel, com um grupo de estudantes da Faculdade de Direito de Porto Alegre que queriam fundar a Casa do Estudante, embora sem possuir um imóvel que pudesse abrigá-la. Uma das figuras centrais do movimento estudantil da época era Aparício Cora, que atuou como líder estudantil antes de se formar, em 1931, mas continuou atuando em prol da assistência de universitários carentes, além de fazer parte da Aliança Nacional Libertadora (ANL) no Rio Grande do Sul, que se opunha à Getúlio Vergas na época. Em 1935, foi encontrado morto com um tiro na cabeça em um bar de Porto Alegre. Após a morte do filho, o casal Israel Almeida e Maria Antônia Cora decidiu doar o prédio do antigo Edifício Almeida ao Estado para que ali fosse sediada a então chamada Casa do Estudante do Rio Grande do Sul.

Nos anos 1960, a Casa recebeu o nome de Aparício Cora de Almeida, para homenagear o universitário morto três décadas antes e sua família, doadora do imóvel. A Ceuaca foi reconhecida, também na época, como Entidade Pública Estadual e, em seguida, Federal. Durante a ditadura militar, foi um dos focos de resistência ao regime autoritário e, a partir dos anos 1990, passou a ser administrada pelos próprios estudantes por meio de deliberações internas, com a construção de um Estatuto Geral.

Casa vazia

Há quatro anos, porém, a Ceuaca enfrenta um dos períodos mais complicados de sua história, ao deixar de ser um local físico para tornar-se apenas uma entidade organizacional, dividida em 10 imóveis. A casa em si, devido a necessidades de reformas estruturais, foi esvaziada em 2014 e encontra-se abandonada, embora teoricamente os estudantes aguardem a conclusão das restaurações para poder retornar ao prédio. No entanto, segundo recente processo judicial, o Estado afirma não ter mais interesse em destinar o imóvel à moradia universitária.

O abandono é visível no interior da antiga sede da Ceuaca, atualmente vazia | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Com a necessidade de sair do imóvel em 2014, cerca de 40 alunos passaram a morar divididos, em duas casas e oito apartamentos espalhados pelo Centro Histórico. Agora, porém, eles relatam terem recebido ordens de despejo de alguns dos imóveis, ao mesmo tempo em que foi determinado judicialmente que o Estado não seria mais responsável por fornecer moradia aos universitários após o final do mês de junho. “O governo meio que lavou as mãos, tentamos passar para um competência federal, envolver o Ministério Público Federal, mas eles não viram competência da União nisso. Então as portas estão todas fechadas para nós”, lamenta a moradora Letícia Salvi, graduanda em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

A estudante, que é vice-presidente do Conselho Deliberativo da Ceuaca, explica que a organização dos moradores foi dificultada quando precisaram sair da Casa, mas que eles buscam manter uma unidade mesmo vivendo separadamente. “A Casa é auto-gerida, tem tudo que precisa pra funcionar. Mesmo estando espalhados, ainda nos organizamos juntos. Como o Estado separou a gente, a articulação ficou um pouco difícil, é difícil marcar reunião, todo mundo trabalha e estuda. Se a gente tivesse em um único imóvel seria bem mais fácil, mas estamos fazendo o que podemos”, relata. A própria seleção de novos moradores é feita diretamente pelo Conselho Deliberativo, sem interferência por parte do governo estadual. Há ainda um Conselho Fiscal e departamentos cultural, financeiro e de infra-estrutura.

A responsabilidade pública, na realidade, deve-se ao fato do prédio ter sido doado para o próprio Estado na época, nos anos 1930. Nos anos 2000, conforme a estrutura foi se degradando, a situação se complicou. A Casa foi interditada oficialmente em 2009, mas os universitários conseguiram ficar no local até 2014, quando a falta de Plano de Prevenção Contra Incêndio (PPCI) foi “a gota d’água”, segundo Letícia, que forçou a saída dos moradores da época.

Movimentos sociais, digitais e artísticos buscam defender e revitalizar a Ceuaca | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Dentre os moradores que agora estão espalhados por 10 imóveis, a grande maioria estuda na UFRGS, mas há também estudantes de outras universidades, provenientes do interior e de outros estados brasileiros, como São Paulo e Ceará, além de estudantes internacionais vindos de países da América Latina e África. O último edital para entrada na Casa foi realizado no segundo semestre de 2017, o que significa que há moradores que ainda estão no início da graduação. A própria Letícia entrou em 2015, quando a Ceuaca já estava dividida, e deve passar mais dois anos na universidade. “Eu, assim como todos os outros, não tenho para onde ir se formos despejados. Tememos ser colocados para a rua”, afirma a jovem, que veio do pequeno município de Coqueiro Baixo, no Vale do Taquari.

Desde 2014, os universitários têm se mobilizado para tentar garantir o retorno ao prédio, a partir de movimentos sociais, artísticos e digitais, intitulados “Ceuaca Viva”, mas por enquanto, o imóvel segue fechado e abandonado. Em 2015, como forma de apoiar a Ocupação Lanceiros Negros, que era localizada a poucas quadras da Riachuelo, um grupo ocupou a Casa, pedindo também que o Estado se comprometesse com a revitalização do local. No interior do prédio ainda era possível ver móveis e pertences diversos, tomados por poeira e descaso. Os estudantes levaram a demanda para diversos órgãos, como a Defensoria Pública do Rio Grande do Sul e a Assembleia Legislativa, que por sua vez dialogou com a Casa Civil,  a qual se comprometeu a conversar com a Procuradoria Geral do Estado e a Secretaria de Estado da Educação. No entanto, uma decisão judicial prejudica o pleito estudantil.

Decisão Judicial

No início de 2018, após ação ajuizada pelo Ministério Público Estadual, o governo, a partir da Secretaria de Estado da Educação (Seduc) comprometeu-se a continuar pagando os aluguéis dos oito apartamentos e duas casas até o final de junho. “O pagamento a universitários não faz parte de qualquer projeto do governo estadual, responsável pelos ensinos Médio e Fundamental. Não há verba específica. Porém, o Governo do Estado, desde 2015, vem mantendo os pagamentos, um investimento de R$ 300 mil por ano. O montante corresponde ao pagamento de alugueis de 10 imóveis em Porto Alegre”, afirma a Secretaria, por nota.

A Seduc frisa que, embora tenha havido atraso nos pagamentos no ano passado, atualmente os valores estão quitados e “rigorosamente em dia”. Após os pedidos de despejo, a Secretaria afirma ter tentado conversar com os proprietários.  “Em reuniões para tentativa de acordo, esses proprietários afirmaram que o maior problema era a depredação dos imóveis e o mal-estar com os vizinhos – de acordo com os proprietários, havia reclamação constante por barulho até altas horas da madrugada”, menciona. Segundo os estudantes, no entanto, os proprietários teriam dito a eles que o motivo do pedido de despejo era a falta dos repasses. “Inclusive um dos imóveis estava passando por uma reforma, mesmo com gente morando, e proprietário falou que não estava recebendo o pagamento”, garante Letícia. O Estatuto Geral da Casa determina, inclusive, horário de silêncio relativo após as 22h e absoluto após a meia-noite.

Desde 2013, quando o MP pediu que o prédio fosse esvaziado para que pudesse ser adequado ao PPCI, houve muitas negociações, conforme afirma a Defensora Pública Isabel Rodrigues, do Núcleo da Defesa Agrária e Moradia. “O prédio foi esvaziado com a promessa de reforma, mas no apagar das luzes, houve um acordo entre a Procuradoria Geral do Estado e o MP de que eles não têm mais interesse de manter esse tipo de auxílio aos estudantes e nem condições de fazer a reforma, e que esse prédio teria outra destinação social”, explica.

CEUACA
Em 2014, prédio foi interditado sob o pretexto de que passaria por reformas | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Essa informação é confirmada pelo governo estadual e respaldada pelo despacho emitido no final de abril, no qual o juiz Murilo Magalhães Castro Filho, da 5ª Vara da Fazenda Pública do Foro Central de Porto Alegre, estabelece que, como o Estado afirmou ter interesse em destinar o imóvel para outro uso, o poder público deixaria de ter obrigação de fornecer moradia aos estudantes. “Existe fato novo ocorrido na referida ação civil pública, qual seja, ajuste entabulado entre o MP e o Estado estabelecendo que o imóvel terá nova destinação pública e que a obrigação de custeio das despesas de moradia dos estudantes vai somente até o final de junho de 2018.”, afirma. Segundo o governo, atualmente tramita um processo de cessão de uso do imóvel para a Prefeitura de Porto Alegre, que pretende utilizar o local para fins culturais.

Para Isabel, a preocupação no momento é com o futuro dos cerca de 40 estudantes que vivem nos dez imóveis locados pelo Estado, cujo destino é incerto a partir da próxima semana. “Agora estou articulando a melhor solução, porque senão no dia 30 de junho eles não tem para onde ir. São 40 estudantes, muitos deles internacionais, olha o problema diplomático, para onde esses estudantes vão? Eles vieram [ao país] para estudar, por programas sociais”, reflete a defensora.

Ela agora pretende tentar agendar uma reunião com a Procuradoria Geral do Estado (PGE) e o Ministério Público Estadual, tendo em vista que em setembro de 2017 o governo havia oferecido doar o prédio aos moradores, mas na época eles acharam a proposta inviável. “Hoje eu já acho que seria possível, eu quero que doem para eles, e a partir daí  podem tentar através de uma empresa privada fazer uma reforma. Estou em busca da chave do prédio para que possa ingressar alguém para fazer a reforma”, relata a defensora, que acompanha o caso desde abril deste ano. Judicialmente, não é possível recorrer devido ao acordo feito previamente, mas ela espera conseguir dialogar, destacando que, por decreto, o prédio pertence à Ceuaca e, portanto, essa deve ser a sua destinação por parte do governo. “A luta é muito bonita, mas estou muito preocupada porque não temos, nesse momento, uma solução”, lamenta.


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