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28 de junho de 2018
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18:13

“Não tem porta certa”: moradores do Condomínio Princesa Isabel relatam abusos da BM

Por
Sul 21
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Condomínio foi inaugurado em 2005 na avenida Princesa Isabel | Foto: Reprodução/ Google Earth

Débora Fogliatto

Quando Eleonora* chegou em sua casa, no Condomínio Princesa Isabel, na última sexta-feira (22), encontrou a porta do seu apartamento arrombada e o vidro da janela quebrada, com seus pertences todos revirados. Poucos dias antes, sua vizinha Lourdes* voltava do hospital quando deparou-se com seu neto sendo revistado pela Brigada Militar dentro do condomínio, que fica no bairro Santana. Ambas as mulheres afirmam que os policiais estariam entrando no local sistematicamente nos últimos 20 dias, sem mandado e sem justificativa aparente, revistando casas e pessoas, especialmente jovens homens, de forma truculenta.

O Princesa Isabel sempre foi um ponto de tensão com a BM, que afirma que o local é um ponto de tráfico, desde que foi inaugurado, em 2005. A maior parte dos moradores vieram das vilas Cabo Rocha, Terminal Azenha e Erico Veríssimo, e foram reassentados para o condomínio, localizado na esquina das avenidas Princesa Isabel e João Pessoa. Em 2015, a comunidade ganhou destaque midiático quando foi pintado em um muro interno um grafiti com o rosto de Alexandre Goulart Madeira, o Xandi, considerado um dos chefes do tráfico no Rio Grande do Sul, morto em um tiroteio no Litoral Norte.

Em março deste ano, um jovem que foi visitar uma amiga no condomínio foi morto a tiros pela Brigada Militar no local, o que causou revolta por parte dos moradores. A mãe do jovem, Cíntia Soares, levou o caso à Comissão de Cidadania e Direitos Humanos (CCDH) da Assembleia Legislativa cerca de um mês depois do ocorrido, buscando amparo e respostas. O caso segue tramitando na Justiça Militar, enquanto a situação do Princesa Isabel se torna cada vez mais crítica.

Nesta quarta-feira (27), um grupo de moradores foi à mesma CCDH denunciar constantes abusos por parte da Brigada, que afirmam ter entrado no condomínio “dia sim, dia não” nos últimos 20 dias. “A situação está piorando, agora eles tiraram um dos portões, primeiro arrombaram e daí levaram, falaram que vão abrir o condomínio. Dizem que é uma vila, mas não é, a gente morava numa vila, mas lutamos bastante e conseguimos o condomínio e agora querem arrancar os portões”, lamenta uma das representantes da Associação de Moradores.

Segundo a denúncia realizada aos deputados Jeferson Fernandes (PT) e Pedro Ruas (PSOL), os policiais chegam na comunidade e entram nos apartamentos sem critérios, o que significa que qualquer morador pode ser alvo da operação. “Eles entram em qualquer casa, e dizem que não tem porta certa, que qualquer uma é porta pra eles”, relata Eleonora.

Os brigadianos também estariam confiscando dinheiro dos moradores, de acordo com os relatos, alegando que as quantias encontradas pertenceriam ao tráfico. “Eu recebo a minha pensão, sou aposentada, e a do meu marido. Ontem mesmo eu recebi, tirei de uma conta e botei na outra, porque não posso ter dinheiro em casa. Eles dizem que é do tráfico e levam”, afirma Lourdes. Segundo elas, não há um horário determinado em que os policiais realizam as operações, variando entre todos os turnos e podendo ser até no meio da madrugada.

Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa recebeu as denúncias das moradoras. Deputados estaduais Jeferson Fernandes (PT) e Pedro Ruas (Psol, ao fundo). Foto: Joana Berwanger/Sul21

Os moradores ainda afirmam que alguns BMs cobririam o rosto ou usariam toucas para não serem facilmente identificados, e que tratariam a comunidade de forma violenta, inclusive mulheres e crianças. “Eles não deixam a gente falar, não pode nem chegar na sacada. Eles mandam a gente entrar, dizem ‘sai daqui vagabunda, que que vocês querem? Não tem uma louça pra lavar?’. Quarta-feira uma BM puxou a arma e mandou as pessoas se afastarem, tava cheio de criança no pátio”, contou uma das representantes.

A Associação acredita que os policiais, em geral, sejam os mesmos nesses últimos 20 dias, e relatam que chegam em quatro ou cinco caminhonetes e mais cerca de 10 motos. Esse é um dos fatores que colabora para que a maioria dos moradores tenha medo de denunciar o que acontece, temendo represálias ainda mais fortes por parte da Brigada Militar. “Eu entendo o pessoal ter medo, mas eu não posso deixar essas coisas acontecerem, tem que acabar essa história”, indigna-se Lourdes. Ela lembra que, no dia que em seu neto estava sendo revistado, ela tentou dialogar com um policial. “Eu cheguei e disse ‘com licença meu senhor, por que meu neto está na parede? Há quanto tempo ele está ali?’ ele disse que é uma averiguação, o outro disse ‘a senhora não tem nada que fazer dentro de casa?’. Depois que eu virei as costas começaram a socar meu neto, e eu não tinha o que fazer”, relata.

Os deputados que ouviram as denúncias estão fazendo o possível para preservar a identidade das pessoas que foram até a Assembleia, ao mesmo tempo em que buscam um diálogo com a BM. “Esses relatos todos nos chocam bastante, porque o papel do Estado não é esse, as comunidades não têm que temer sem motivo as forças policiais que representam o Estado. Então algo está muito errado nessa relação”, destaca Pedro Ruas, mencionando que existe, em geral, uma “criminalização das comunidades mais pobres” em todo o país.

Nesta quinta-feira (28), os deputados e duas moradoras levaram o caso ao Tribunal de Justiça Militar (TJM), onde também tramita o processo relacionado ao assassinato do jovem morto no condomínio em março. O juiz Amilcar Fagundes Freitas Macedo, Corregedor-Geral do TJM, recebeu as denúncias e afirma que o caso será averiguado, embora ainda esteja em uma fase “muito embrionária”. “As moradoras relataram uma possível ocorrência de violência policial por parte de integrantes da BM, supostas atitudes imoderadas por parte dos policiais, mas não souberam informar a identidade ou o Batalhão envolvido”, disse Macedo.

Essa falta de identificação atrasa um pouco as investigações, segundo ele, que pretende ir visitar pessoalmente o condomínio ainda esta semana. “Elas relataram a retirada de uma grade que daria uma certa segurança para as crianças, então vou ir averiguar isso. E depois serão encaminhados os relatos à corregedoria da BM para que se possa instaurar um procedimento investigativo e ver que medidas correcionais se possa adotar a fim de que o problema, se realmente existiu, não volte a ocorrer”, explica.  Para o deputado Jeferson Fernandes, porém, “o problema é que muitas dessas situações envolvendo a Brigada não chegam a lugar nenhum”. “Então muita gente fala em impunidade, mas as impunidades começam pelo próprio Estado. Quem sai impune são os ‘grandões’, e não os jovens negros pobres”, destaca.

  • Os nomes das moradoras foram alterados para preservar suas identidades

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