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23 de junho de 2018
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12:20

Após duas décadas de discussão, casamento homoafetivo é autorizado na diocese anglicana de Porto Alegre

Por
Joana Berwanger
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Diocese Meridional, localizada no bairro Teresópolis, em Porto Alegre. Foto: Joana Berwanger/Sul21
Diocese Meridional, localizada no bairro Teresópolis, em Porto Alegre. Foto: Joana Berwanger/Sul21

“Eu pedia perdão”, relembra o bispo da Diocese Meridional, Humberto Maiztegui. “Eu dizia a eles: isso que eu vou fazer não devia ser feito. Vocês deveriam casar, como qualquer pessoa”. Até o dia 3 de junho de 2018, casamentos homoafetivos não eram autorizados em igrejas anglicanas brasileiras. Após a realização do 34º Sínodo Nacional da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB), realizado em São Paulo, o pedido de alteração da regra, solicitado pela Diocese Meridional porto-alegrense, foi aceito. O cânon que antes ditava que “o santo matrimônio é a união entre um homem e uma mulher” foi alterado e a concepção de casamento passou a ser “a união entre duas pessoas”.

As eleições nos Sínodos Gerais contam com a participação de bispos de todas dioceses brasileiras. Em 2018, a votação para alteração do cânon foi expressiva: 57 votaram a favor, enquanto três foram contrários e três se abstiveram. Com o resultado, as dioceses brasileiras receberam a oportunidade de discutir em suas comunidades a aceitação ou não da união entre pessoas do mesmo sexo – uma vez que, ainda que regidas pelos cânones da IEAB, são autônomas para fazer alterações em suas comunidades.

A diocese anglicana porto-alegrense foi, então, a primeira no Brasil a autorizar a união. Um concílio, realizado de 8 a 10 de julho – uma semana após o Sínodo Nacional –, aprovou a decisão com maioria esmagadora: 46 representantes de paróquias e reverendos votaram a favor, enquanto seis se manifestaram contra e seis se abstiveram. A autorização para a cerimônia, no entanto, ainda depende da autorização por escrito do bispo da diocese. Para Maiztegui, isso não deverá ser um problema, uma vez que a discussão tem crescido cada vez mais dentro do ambiente religioso.

 

Bispo Humberto Maiztegui. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Mayara Machado, de 33 anos, acredita que a decisão “é aquela pontinha de esperança na humanidade. Uma sensação de orgulho”. Trabalhando desde 2015 na igreja, se candidatou para vaga de auxiliar administrativa, após acompanhar um encontro que debatia famílias e diversidade, em que o bispo Maiztegui participou: “Ele comentou que tinha uma vaga na diocese. Eu mandei currículo e acabei vindo trabalhar. Entrei no meu emprego pela porta da frente, de mãos dadas com a minha namorada”.

Antes da mudança do cânon anglicano, quando era procurado por casais homoafetivos, Maiztegui só podia realizar bênçãos: “Não se registrava nada e as promessas eram feitas entre eles mesmos”. Mayara e a namorada, Fernanda, realizaram a cerimônia de bênção, mas precisaram registrar o casamento no civil. “A igreja não nega o batismo, não nega a eucaristia e nega o santo matrimônio por quê?”, questiona Maiztegui.

Os números expressivos das votações em São Paulo e em Porto Alegre são os primeiros frutos de um trabalho exaustivo de discussões nacionais, que se prolongaram por mais de duas décadas a respeito da temática. Segundo Maiztegui, o debate sobre LGBTs na igreja começou em 1997. Naquele ano, a primeira Carta Pastoral dos Bispos da IEAB sobre Sexualidade Humana foi lançada, defendendo a ideia de que “deve receber com amor pessoas de qualquer raça, cultura, classe social ou orientação sexual”.

Ao longo dos anos seguintes, a discussão acerca da união igualitária passou a ser cada vez mais pautada pela igreja. Dez anos após o lançamento da carta, em 2007, outra foi escrita, retificando os apontamentos da anterior e expondo a necessidade de um aprofundamento no debate dentro da igreja.

Em 2013, no Rio de Janeiro, o movimento Episcopaz – uma pastoral anglicana de direitos humanos – pressionou bispos a abordarem a discussão da temática durante o Sínodo Geral. A primeira votação que pautava a alteração do cânon, para abrir possibilidade de casamentos igualitários na igreja, ocorreu em 2016, proposta pela diocese porto-alegrense. Em votação, a proposta foi vetada por maioria esmagadora. Ainda que desanimador, o resultado gerou uma abertura ainda maior para discussão da pauta: no mesmo ano, o Serviço Anglicano de Diaconia e Desenvolvimento lançou uma revista chamada “Gênero, Sexualidades e Direitos”, usada como material didático para ampliar as discussões em regiões com mais resistência no Brasil.

Mayara começou a trabalhar na diocese em 2015. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Os resultados desse trabalho de discussão nas bases da igreja, então, apareceram no Sínodo Geral de 2018, com a aprovação do casamento igualitário. Para Maiztegui, “o ponto crucial para mudança foi a convivência com pessoas LGBT na comunidade anglicana”. Mayara relata que, durante a votação na diocese de Porto Alegre, o depoimento do reverendo Jerry Andrei do Santos – gay, integrante da igreja há 27 anos e dirigente responsável da Catedral da Santíssima Trindade há três –, a parcela de representantes de paróquias que estavam em dúvida, optaram por votar a favor:  “precisamos mostrar que a gente não está lidando só com regras, com leis, com palavras. A gente está lidando com vidas”.

Ainda assim, mesmo que a votação nacional tenha apresentado um resultado expressivo, a resistência em dioceses para autorização do matrimônio igualitário permanece: em Pelotas, por exemplo, a votação foi realizada e não foi aprovada. O fato não afasta o otimismo do bispo Maiztegui. Ele acredita que é uma questão de tempo até que outras dioceses alterem sua concepção.

Para Mayara, a discussão precisa ser delicada. Ela acredita que o depoimento de pessoas LGBT de dentro das comunidades é vital para que seguidores mais tradicionais compreendam a proposta de alteração: “as pessoas não devem escutar a questão do contra ou a favor. Elas precisam ver que, ali, existem vidas que são modificadas por essa decisão”. Mayara ainda acredita que, através dessa abertura, a igreja passará a receber um público que, anteriormente, não tinha vínculos com movimentos religiosos: “essas pessoas também vão encontrar um espaço, e vão se sentir acolhidas e bem recebidas”.

Com a votação na diocese gaúcha, o Brasil se torna o quarto país em que a Igreja Anglicana passa a autorizar o casamento homoafetivo. Isso já é realidade nos Estados Unidos, na Escócia e na Nova Zelândia, que foi o primeiro a autorizar, nos anos 2000. O Canadá ainda passa pelo processo de aprovação. Além disso, em 2017, a primeira bispa anglicana da América Latina foi eleita no Amazonas. Nascida em Pelotas e criada na Diocese Meridional de Porto Alegre, Marinez Bassotto conquistou o posto.

Em novembro de 2018, 21 anos depois da I Carta Pastoral dos Bispos, Humberto Maiztegui realizará o primeiro casamento homoafetivo da Diocese Meridional de Porto Alegre. Dois argentinos, membros da comunidade anglicana de Florianópolis, tiveram o quadro de sua bênção alterado para matrimônio, após a decisão. Os dois se tornarão o primeiro casal homossexual unido em matrimônio pela Igreja Anglicana no Brasil. Com a data marcada, Maiztegui já projeta outros futuros eventos: “temos uma ideia que está se cozinhando”, diz, “queremos reunir quem recebeu a bênção e fazer um encontro, para homologar todas as bênçãos como casamentos. Os casais receberão a certidão de matrimônio e serão registrados, possivelmente na catedral”.

 

A região da Diocese Meridional se estende até Guaíba, no Rio Grande do Sul, seguindo pelo litoral, até Joinville, no Paraná. Foto: Joana Berwanger/Sul21

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