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21 de maio de 2018
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20:56

‘Nenhum preto está salvo’: irmãos negros relatam agressão por motorista de aplicativo

Por
Sul 21
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“Pelo nosso histórico de periferia, sempre fomos negros. Isso bate na tua cara toda hora”, conta Thiago Nogueira. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Giovana Fleck

Thiago Nogueira e seu irmão são negros. Thiago e seu irmão têm cabelos crespos e pele escura. Thiago e seu irmão viveram a vida da periferia por muito tempo. Thiago e seu irmão relatam que precisam provar, constantemente, que não são ladrões, drogados ou delinquentes. Porque já foram tachados como ladrões, drogados ou delinquentes. Thiago e seu irmão convivem com o racismo e a opressão. Mas essa foi a primeira vez que foram perseguidos por isso.

Foi na madrugada de sexta (18) para sábado (19). Três e meia da manhã. Estavam em uma lanchonete da Lima e Silva. “Eu, meu irmão e uma amiga nossa. Chamamos o 99 [aplicativo de transporte] para ir embora. Entramos no carro e explicamos que íamos deixar nossa amiga em casa primeiro e, depois, seguir para a nossa”, conta Thiago.

“A primeira coisa que a gente notou é que a velocidade do carro não era normal. Ele arrancou e saiu correndo.” Thiago apontou o caminho mais prático para o motorista chegar até a casa da amiga. Por conta da velocidade, achou que ele não fosse entrar na rua que pediu. Eles pararam na casa da amiga. Ela desceu. Eles esperaram ela entrar em casa e seguiram o caminho. “Daí ficaram só dois caras negros dentro do carro.”

O motorista acelerou, Thiago apontou a rua em que deveria dobrar e ele dobrou em cima. “Tu não precisa me falar isso. Eu sou brigadiano. Eu conheço as ruas de Porto Alegre”, teria dito o motorista. “Tá, cara. Mas qual a relação entre tu ser brigadiano e conhecer as ruas de Porto Alegre?”, perguntou Thiago, sentindo um tom de ameaça.

“Eu manjo de tudo. Sabe, né. Brigadiano tá sempre por aí…”, o motorista teria respondido. “Isso é uma intimidação?”, Thiago questionou. O motorista ameaçou parar o carro na esquina se Thiago “continuasse complicando”. Thiago pediu para que ele parasse. Ele e seu irmão desceram.

No momento em que fecharam as portas, o motorista também saiu do carro. “E ele veio pra cima de mim. Ficamos em um empurra-empurra de leve. Até que ele entrou de novo e arrancou com o carro.” Os dois ficaram no mesmo lugar, tentando chamar outro motorista para levá-los para casa. Menos de dez minutos depois de ter indo embora, relatam ainda os irmãos, o motorista voltou, em alta velocidade. “Ele e mais seis ou sete carros atrás”, conta Thiago. Quando se deram conta, a rua estava tomada pelos carros. “Mão na cabeça e deita no chão!”, os motoristas gritavam.

Thiago e seu irmão começaram a correr. Tinham certeza de que, se deitassem no chão, seriam agredidos. Enquanto corria – sem destino, em fuga – Thiago diz ter se lembrado da cena final de ‘This is America’, clipe do artista estadunidense Childish Gambino que se encerra com o cantor correndo para o nada, com os olhos arregalados – em referência às fugas dos escravos no período colonial. “Foi a mesma cena”, reflete Thiago. “A gente vai ser linchado. A gente vai morrer”, pensou. “Eles queriam muito nos pegar.”

“Quando chegamos nos brigadianos que nos socorreram, não sabia se estaríamos salvos de verdade.” Foto: Joana Berwanger/Sul21

Dobraram em uma das travessas da Cidade Baixa. Nesse momento, o irmão de Thiago é atropelado. Ele cai. “Aí eu fui para o lado dele. Ele queria atravessar a rua para continuar correndo. Mas eles eram muitos e estavam muito agressivos.” Ele se levantou e os dois seguiram correndo. Quando dobraram na rua seguinte, um dos homens os esperava com um cassetete em mãos. Ele também era negro. “Mas é outra ideologia”, resume.

“Ele me bateu duas vezes nas costas. Meu irmão levou outras duas na cabeça.” Conseguiram se desvencilhar e continuaram correndo. “Nossa sorte é que vinha uma viatura da Brigada.”

Eles pararam a viatura e pediram socorro. “Tinha um cara grande, tão louco que mesmo com a viatura seguiu vindo pra cima de mim. […] Porque é óbvio que preto sempre vai ser o criminoso.” O motorista que conduziu os irmãos se aproximou, chamando os oficiais de ‘colegas’. Eles pediram a identidade funcional. Ele não tinha. “Ficava dizendo que nunca tinha dito que era brigadiano. Que teria dito que ia chamar a Brigada para nos pegar. Porque eram dois pretos dentro do carro.” Segundo a assessoria da Brigada Militar, o motorista nunca teve ligação nenhuma com a corporação. Além disso, segundo a BM, outros agressores também seriam motoristas de aplicativos.

Foram para o Palácio da Polícia. “A nossa sorte foi que o escrivão era negro. Fomos bem atendidos, ficaram do nosso lado. Coincidentemente, antes de entrar no carro, tínhamos passado pelos oficiais que nos atenderam. Eles viram que estávamos de boa – e ficaram bravos que o cara se disse policial.” Depois de registrarem o boletim de ocorrência, foram para casa. O dia já estava amanhecendo.

No sábado, o irmão de Thiago fez o exame de corpo e delito, que será anexado ao processo que já está em encaminhamento. Ainda no final de semana, Thiago publicou sua versão do ocorrido em seu perfil no Facebook. O post já tem mais de 1.500 interações. “E teve uma moça perguntando porque eu fiquei sugerindo a rota para ele. Me culpando. Claro, né. […] Isso justifica ele aparecer com sete caras pra nos bater.”

Thiago conta que se sente responsável pelo irmão. “Pelo nosso histórico de periferia, sempre fomos negros. Isso bate na tua cara toda hora.” Sua infância foi marcada pela migração entre vilas de Porto Alegre. Da Conceição para o Morro da Cruz, para Monte Alegre, para o Mathias Velho e assim por diante. “Isso é a vida do cara preto e pobre. Tu vive de aluguel, é inconstante. Nem sempre tu tem como pagar e vai se mudando, se mudando. Mas, depois de um tempo, eu consegui me estabilizar, estabilizar a minha mãe e o meu irmão”, conta.

Hoje, Thiago tem seu negócio e é estudante de História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Seu irmão estuda na mesma universidade, cursando Economia. “Eu sempre falo pra ele que a gente não pode naturalizar coisas. A gente não pode achar que isso é natural. Que todo mundo de onde a gente veio vai conseguir. Não. É vigilância permanente. Não é porque a gente está aqui que os outros acham que esse é o nosso lugar.” Ele diz se sentir mais tolerado do que aceito. “Quantas vezes eu já escutei da polícia: ‘Deita no chão e mão na cabeça’. Foi a minha adolescência inteira. Sempre sem motivo. Violência policial é muito presente. Quando chegamos nos brigadianos que nos socorreram, não sabia se estaríamos salvos de verdade.”

Segundo Thiago, várias pessoas viram o que aconteceu na rua. E ninguém fez nada. “Achei até que iam vir atrás da gente também.”

Para ele, outra parte do entendimento do que aconteceu veio após a divulgação do relato nas redes sociais. “Uma pessoa que eu não conheço veio perguntar o que eu faço da vida. Isso é complicado. Tu tem que estar sempre se justificando, se validando. O que vale é quanto dinheiro eu tenho e o que eu faço profissionalmente. O que me dá dignidade é carteira assinada. Mas dignidade veio muito antes disso. Mas é esse o sistema. Nós dois somos estudantes da UFRGS. Isso só mostra que nenhum preto está salvo.”

Em nota, a assessoria do 99 informa que “repudia qualquer espécie de violência, física ou racial” e  que “já está investigando o incidente”. Segundo a assessoria, o aplicativo possui uma equipe com mais de 30 funcionários dedicada à segurança dos passageiros.

Confira a nota na íntegra: 

A 99 informa que recebeu de um passageiro a denúncia de que um motorista da plataforma o agrediu e o discriminou no sábado, dia 19 de maio, em Porto Alegre (RS).

A empresa repudia qualquer espécie de violência, física ou racial, e já está investigando o incidente. Estamos em contato com o passageiro e nos encontramos abertos para colaborar com as autoridades.

A 99 possui uma equipe de segurança com mais de 30 pessoas que trabalha 24 horas por dia, sete dias por semana, dedicada exclusivamente à proteção dos usuários.

Entre as iniciativas desenvolvidas estão:

> A análise de perfil dos motoristas verifica o histórico público dos condutores, feito a partir de documentos como RG, CNH e licenciamento do veículo. Também possuímos uma parceria com Governo Federal, via Denatran, que permite acessar informações sobre se o carro é roubado ou se possui algum sinistro, por exemplo.

> Um canal de atendimento exclusivo para incidentes de segurança no 0800-888-8999, que oferece auxílio imediato e apoio emocional. A assistência pode incluir o envio de um carro em ocorrências em que o veículo tenha sido levado, por exemplo.

> O aplicativo realiza rodadas de treinamento para condutores, em que apresenta um curso especial com dicas práticas de proteção e orientações de combate ao assédio, desrespeito e discriminação. Em Porto Alegre, o evento foi realizado em 19 de abril.

> A 99 se orgulha muito de ser focada na diversidade. Entre nossos programas está o 99 Cores e o 99 Afro – grupos que, entre outras iniciativas, promovem a consciência à diversidade LGBT+ e étnico-racial na empresa.


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