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5 de maio de 2018
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22:46

Família de menina que se trata com canabidiol cria ‘Bloco da Maconha Medicinal’ dentro da Marcha

Por
Sul 21
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Carol e a mãe Liane | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Fernanda Canofre

Carol tinha apenas 25 dias de vida quando teve a primeira crise de epilepsia. Durante anos, nenhum médico soube dar um diagnóstico para o que acontecia com a menina. As crises chegavam a 60 por dia. A rotina se reverteu há cerca de dois anos, quando Carol começou a usar regularmente um óleo de canabidiol – uma das 113 substâncias químicas canabinoides encontradas na Cannabis sativa, a maconha, que chega a compor 40% da planta.

Neste sábado (5), Carol completou uma milha histórica: em 120 dias, teve apenas uma crise. No meio de mais uma edição da Marcha da Maconha de Porto Alegre, evento tradicional no mundo todo pedindo a legalização do consumo da droga, a família dela liderava o primeiro Bloco da Maconha Terapêutica. Na cadeira de rodas enfeitada de balões roxos e verdes, cores em referência à epilepsia e à maconha, ela lutava com o sono e sorria.

“Pedindo a legalização para a recreação também estamos unindo forças. Todos os países que estão legalizando, estão liberando total. Nós temos tanta bebida, cigarro, por que essa luta? Na parte medicinal, existe toda uma indústria farmacêutica que não quer a liberação, porque está ganhando dinheiro”, diz a mãe Liane Maria Pereira, professora.

A história da família de Carol é um resumo da luta de quem tenta usar tratamento a base de cannabis no Brasil.um pouco Uma página no Facebook  ajuda a contar um pouco do cotidiano da menina. A primeira vez em que Liane tentou conseguir o canabidiol para a filha foi em 2014, logo após assistir uma reportagem na televisão sobre a história do pai que conseguiu o medicamento para a filha. O primeiro caso no Brasil. Mesmo depois de arrumar toda a documentação, porém, a tentativa de Liane morreu na mesa de um médico que ficou reticente em seguir em frente com o pedido de autorização do uso.

“Ainda hoje são poucos os médicos que aceitam. Nós temos apoio total da nossa médica, mas é uma corrida no Brasil todo de pessoas que precisam para encontrar médicos que aceitem [fazer a solicitação para uso]”, conta ela.

A avó, Maria Alice | Foto: Guilherme Santos/Sul21

A médica atual da família foi a primeira pessoa que conseguiu explicar as crises de Carol. Em 2015, foi ela quem identificou que a menina sofria de Síndrome de Dravet, uma doença rara que se manifesta com crises de epilepsia graves, que não são facilmente controladas com os fármacos disponíveis tradicionalmente. Segundo Liane, a doença gera ainda atraso cognitivo, escoliose na coluna e é degenerativa. A recomendação da médica foi que não perdessem mais tempo e começassem imediatamente o tratamento com canabidiol.

O medicamento usado por Carol é uma espécie de óleo, que pode ser administrado por via oral ou por sonda. Carol precisa de três gotas por dia. Em um mês, ela consome R$ 3 mil em medicação. Assim, mesmo depois de conseguir a autorização do Estado, a família só contou com apoio público para custear o tratamento por seis meses. O restante do tempo o dinheiro veio de vaquinhas virtuais, ajuda de amigos, rifas, empréstimos bancários. Até que Liane viu que não poderia mais continuar se mantendo assim.

No ano passado, ela buscou o bloco terapêutico da Marcha da Maconha de São Paulo, para tentar encontrar uma solução. Descobriu que o medicamento comprado clandestinamente sairia muito mais barato, com efeito melhor. “A gente teve as duas visões, do medicamento importado e do clandestino. A Carol fez um boom cognitivo, ela melhorou muito, muito”.

Há alguns meses, a família também passou a cultivar maconha em casa, para conseguir produzir o próprio medicamento. Agora, Liane aguarda a decisão de um habeas corpus para ter autorização para plantio e regularizar a situação. Até este ano, o Brasil concedeu apenas 12 autorizações do tipo. Se a família de Carol conseguir, seria a primeira do Rio Grande do Sul. Segundo Liane, a forma invertida, sendo “melhor pedir perdão antes de permissão”, é a única de conseguir legalizar a plantação de maconha por aqui.

Antes de se juntar à luta pela legalização da maconha, Liane conta que tinha preconceitos com a droga como a grande maioria das pessoas. Hoje, porém, até a avó de Carol, Maria Alice Pereira, 72 anos, frequenta as Marchas. Ela reconhece que mudou sua visão graças a mudança que percebeu na neta. Carol passou da rotina de passar dias a fio dentro de hospitais para ver uma criança que gosta de brincar, cantar, se divertir com os programas na televisão e que leva uma vida feliz. Antes, ela diz, “considerava maconheiro como a ralé da sociedade”.

“Quando surgiu a oportunidade de experimentar a maconha, a gente se desconstrói. Se desconstrói e vai a fundo, porque a gente dava remédios, rezava para que ela não tivesse mais crises e não tinha mais o que fazer. Tu só tem que te desconstruir e aprovar. Ela tem muita coisa agora que ela não tinha”, conta a avó.

Foto: Guilherme Santos/Sul21

Para a ex-deputada Luciana Genro (Psol), os danos à saúde causados pela maconha são próximos de outras drogas legalizadas, como o álcool e o cigarro. Ela defende ainda que as experiências internacionais de legalização mostram que, mesmo em casos que há adição à droga, ela ainda precisa ser tratada como caso de saúde, não de segurança pública.

“Não existe nenhuma razão para a maconha ser parte do comércio ilegal de drogas. Acho que essa pauta vai avançar institucionalmente a medida que houver maior conscientização da população. Os partidos tradicionais respondem à uma lógica eleitoral, não à lógica real das necessidades da população. A discussão sobre legalização é uma necessidade que ainda não está incorporada pela população, por uma ideologia que associa droga à doença, à violência, sem compreender que é o tráfico e a ilegalidade que provocam todos esses males”, diz ela.

Nos cartazes da Marcha de 2018, os manifestantes defendiam que a proibição serve para alimentar a narrativa de “guerra às drogas” e as políticas de Estado que vem com ela. Em uma das faixas, com o perfil da vereadora Marielle Franco, assassinada no Rio de Janeiro, no dia 14 de março, perguntavam: “Quantos mais tem que morrer pra essa guerra acabar?”.

Enquanto não há resposta institucional, Liane segue pela filha. “É uma luta, porque a gente cresce sabendo que é uma droga, que não pode chegar perto, mas tu vê o outro lado. Hoje não vejo outro caminho, é qualidade de vida para a minha filha”.

Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21

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