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1 de maio de 2018
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11:41

Documentário navega entre momento político atual e ditadura militar através de conversas entre pai e filha

Por
Sul 21
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Heloísa Passos e o pai, Álvaro, em cena de “Construindo Pontes” | Foto: Divulgação

Fernanda Canofre

Há alguns anos, um amigo de seu pai presenteou a cineasta Heloísa Passos com uma caixa de filmes Super-8 antigos. Entre as imagens de família, ela encontrou um registro raro, as Sete Quedas do Iguaçu antes da Usina de Itaipu mudar pra sempre a rota do rio Paraná. Foi ali que nasceu a ideia de seu novo filme, com roteiro e direção assinados por ela: Construindo Pontes. Nele, Heloísa conversa com o pai, um engenheiro aposentado que viveu o ápice da carreira na era desenvolvimentista da ditadura militar sobre suas duas visões de Brasil.

Heloísa, que tem no currículo o trabalho em “Citizen Four” (2014), documentário vencedor do Oscar sobre Edward Snowden, largou o curso de Agronomia depois de ouvir do reitor da universidade que, se tentasse criar um Centro Acadêmico, teria de sair da instituição. Foi para Londres estudar e descobriu nas salas de cinema de lá um Brasil que sua vida de classe média, no Paraná, não deixava tão claro para ela. Ela lembra, por exemplo, do “frio na barriga” quando viu pela primeira vez, na Inglaterra, “A Hora da Estrela”. O momento que decidiu que era hora de voltar e fazer cinema por aqui.

No filme que estreou no dia 26 de abril, em Porto Alegre, Heloísa explora a hierarquia da relação de pai e filha, de duas pessoas que pensam diametralmente diferente, colocando o diálogo como única forma possível de seguir na atual conjuntura.

De um lado, está ela, cineasta e fotógrafa, que trabalhou em documentários sobre a vala do Cemitério de Perus e as vítimas da ditadura militar e que defende que o impeachment de Dilma Rousseff (PT) foi um golpe. Do outro, o pai, um engenheiro civil aposentado, que trabalhou na construção de algumas das obras mais simbólicas do governo militar, como a Rio-Santos, e que ainda chama a ditadura de revolução e que diz que só naquele tempo houve um projeto de país.

Entre as discussões e uma viagem pela estrada, a relação familiar dos dois vira um pequeno retrato de duas visões diferentes sobre um mesmo Brasil. Heloísa participou da sessão de estreia de seu filme na capital gaúcha e falou com o Sul21 sobre o debate e as lições que encontrou no processo dele:

Sul21: Como veio a ideia de tu te colocar como personagem no filme, das conversas entre pai e filha?



Heloísa Passos: Esse casamento dos dois personagens demorou um bocado, foi um processo. O que me disparou para fazer o filme foi um presente que ganhei de um amigo do meu pai, um coleção de rolinhos Super-8, que além de imagens de família e [momentos] de lazer, tinham imagens das Sete Quedas do Iguaçu. Eu não conhecia essas cachoeiras, mas tenho uma memória afetiva de um tio-avô meu que esteve lá, alguns dias antes de um acidente na ponte que ficava lá, que inundou pela lotação de pessoas que queriam visitar porque aquilo ia desaparecer. O filme me conectou com algo que eu não sabia traduzir. Eu abri uma pesquisa, fui até Guaíra, na beira do rio Paraná, e encontrei uma cidade desolada, porque vivia do turismo, um rio caudaloso que virou reservatório da Usina de Itaipu e a paisagem de um deserto d’água. Fiquei pensando no momento em que a Usina foi construída, durante a ditadura civil-militar, mesmo momento em que meu pai havia construído algumas estradas. Eu comecei a gravar conversas com ele, usando um gravadorzinho e sempre iam para um lugar de um homem desenvolvimentista que acredita que nada pode parar o progresso. Eu escrevi o projeto “Construindo Pontes”, onde eu me coloco como personagem junto com ele. O desejo de fazer o filme se realizou quando ganhei um edital por isso. Em 2016, foi o ano que eu decidi colocar as câmeras na casa do meu pai. Minha primeira decisão foi não levar uma equipe. Decidi que eu ia começar a conversar com ele mostrando memórias da nossa família, da nossa infância, mas também de obras que ele construiu. Principalmente a Central do Paraná, uma obra ferroviária muito grande, com mais de 300 km, e que está lá há mais de 40 anos. Eu nunca deixei de falar com meu pai, a gente se desentende, mas se entende. A gente se aceita. Eu uso o tempo do cinema, onde você observa mais profundamente, para mergulhar em memórias afetivas que eu achava que fossem mexer com ele e nos aproximar.

“As coisas que estão em volta da gente não são só subterfúgio, mas acabam parte dele” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21: Qual a história profissional do teu pai?



Heloísa: Ele é engenheiro civil, que muito moço foi trabalhar em uma empreiteira muito grande do Paraná. O auge da carreira dele foi entre os anos 1960 e 1970, quando ele construiu parte da Belém-Brasília, da Rio-Santos. Isso não está no filme, porque o filme é sobre a aceitação de duas pessoas que pensam diferente. No filme, a gente é golpeado pelo golpe, porque eu filmo no ano em que a presidente Dilma [Rousseff, PT] é impedida. As coisas que estão em volta da gente não são só subterfúgio, mas acabam parte dele. Teve um dia que eu ia mostrar fotos que eu tinha separado da Rio-Santos, ele disse que queria ligar a televisão e ver o Jornal Nacional. Nesse dia, eles mostraram a prisão coercitiva do Lula. O filme se constrói em cima do que a gente vai vivendo. É olhar para as memórias e o presente eclodir com elas.



Sul21: Em uma das críticas do filme, publicada na Folha de S. Paulo, diz que enquanto o país vivia o AI-5, tu estava fazendo aula de equitação e esqui. O que tu lembra dessa infância sob um governo militar?



Heloísa: A presença do meu pai não era constante, ele trabalhava muito. Então, a presença das minhas irmãs é muito forte. Tenho uma imagem do meu pai com a máquina fotográfica, registrando não só a família, mas lugares. E eu tenho essa memória das projeções de lugares que ele desbravou pelo Brasil. No filme tinha um off que eu retirei, que eu dizia: “meu pai desbravou o Brasil construindo estrada, eu conheci fazendo filmes”.



Sul21: Mas vocês falavam de política em casa?



Heloísa: Eu nasci em 1967, um ano antes do AI-5, em plena ditadura militar ,e não aprendi a dialogar na escola. Muito menos em casa. As coisas eram muito não-ditas. A sessão de pré-estreia em São Paulo eu dediquei à nossa frágil democracia. Além de ser frágil, ela é muito nova e a gente está fazendo um exercício recente de aprender a dialogar.

Sul21: Tu lembra do momento que percebeu que o governo que o país tinha era uma ditadura?



Heloísa: As coisas não eram ditas, mas dentro da escola tinha “Educação Moral e Cívica”, “OSPB – Organização Social e Política Brasileira”, a História era contada de uma visão que fazia desconfiar do que estava sendo colocado pra gente. Eu estudava numa escola católica, onde tinha missa toda semana, hasteava a bandeira e cantava o Hino Nacional. Acho que tinha desconfiança das coisas que eram impostas e que a gente era obrigado a estudar. Na prática mesmo, onde eu levei um chacoalho foi quando eu entrei para a faculdade, no curso de Agronomia, na Universidade Estadual de Ponta Grossa. Fui para um Congresso nacional e estadual e voltei decidida a montar um Centro Acadêmico. O reitor nos chamou e falou: “se você for montar um centro acadêmico, você está convidada a se retirar da universidade”. Ele disse que fomos gravados e que o que eu disse da universidade…No dia seguinte eu já não fui para a universidade, larguei. Quando tem ditadura, mesmo quando as coisas não são ditas, fica sempre alguma coisa que te faz pensar.

“O contraditório, o embate é fundamental. O grande trauma do ser humano é quando ele silencia e não enfrenta” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21: O que teus pais acharam disso?



Heloísa: Eles acharam que eu era muito exigente e estava desistindo para entrar na universidade federal. Aquilo não foi assunto da mesa, o assunto era que eu tinha voltado para casa.

Sul21: Teu pai ainda não vê a ditadura como ditadura?



Heloísa: Ele chama de revolução. Tem uma hora no filme que eu falo: “eu chamo de ditadura, ele de revolução. Eu chamo de golpe, ele de impedimento. Eu chamo presidenta, ele diz moça”.

Sul21: Tem algo mais do que uma questão de geração aí, tendo em vista que boa parte dos eleitores de Jair Bolsonaro (PSL) são jovens. O que tu achas?



Heloísa: É uma questão estrutural da História do Brasil. Uma História patriarcal, machista, escravocrata, onde a elite permanece conquistando as mesmas coisas, incomodada que estava perdendo espaço e aconteceu o que aconteceu.

Sul21: Nos últimos anos, a discussão política parece mais presente no espaço privado, da família do que costumava ser. Tu concordas?



Heloísa: A gente teve um presidente trabalhador eleito, isso gera uma discussão gigante no país. Ele foi reeleito, conseguiu eleger sua candidata, isso gera uma discussão muito grande em todas as famílias. Quando eu falo família, quero dizer em todos os núcleos de relações sociais. Tem gente que silencia ou se retira de grupos de WhatsApp pra não brigar.

Sul21: Tu escolheu o diálogo com teu pai, apesar da discordância. 



Heloísa: Mas eu acho saudável. Porque o contraditório, o embate é fundamental. O grande trauma do ser humano é quando ele silencia e não enfrenta. A questão não é o embate para gerar uma guerra, mas dentro de uma aceitação. Você pode achar que meu filme não tem história. Ele tem um disparador, um conflito, arco dramático, mas não estou te contando uma grande história. São duas pessoas anônimas, a Heloísa e o Álvaro, o que segura é o amor entre nós dois, que pensamos diferente e que nos aceitamos. Se a gente não se aceitasse, se ele não estivesse disponível, eu teria que achar outra saída.

Sul21: As questões do presente são parte importante do filme. Pode comentar?



Heloísa: Eu não comecei em 2016 porque a Dilma estava com problemas no governo, não tem nenhuma estratégia. Era um fluxo dentro da casa do meu pai, uma casa em que eu morei, mas que não era mais meu território. Fui contemplada com o edital em 2014, mas em 2015 eu não tinha como filmar porque estava fotografando dois filmes grandes. Nós, de esquerda, nem sabíamos o que ia acontecer. A direita sabia, porque desde que o Aécio [Neves, PSDB] perdeu, a pauta era Dilma ser impedida e prender o Lula.

Sul21: Mas como esse momento atual interfere na maneira que a gente olha hoje para o passado?



Heloísa: A História é muito mal contatada. Qual foi o tribunal que foi aberto para questionar os militares nesse país? Nem preciso te responder mais.

Sul21: Ou seja, que nosso presente está cheio de passado?



Heloísa: Ele está totalmente cheio de passado mal resolvido. É uma História mal contada, onde você não solidifica uma trajetória de democracia, por isso, estamos vivendo um desmonte. A Comissão da Verdade foi uma comissão de levantamento de dados, não foi uma instância de acerto [de contas]. O próximo passo dela parou.

“É uma História mal contada, onde você não solidifica uma trajetória de democracia, por isso, estamos vivendo um desmonte” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21: Essa política desenvolvimentista, de grandes obras, que é um dos temas do filme, sempre esteve ligada à violações no Brasil, do seu ponto de vista?



Heloísa: A Itaipu é uma história de violação de direitos. Acho que o capitalismo, muitas vezes, não tem limite e o que o move é a questão econômica. Em nome do petróleo, da estrada, do minério. Em Itaipu, fizeram um projeto para mostrar que há uma universidade lá dentro, pesquisa sobre meio-ambiente, isso é outro filme, mas as Sete Quedas foram questão de litígio entre Brasil e Paraguai. Tinha o projeto de um outro engenheiro que faria uma usina de 10 turbinas, não 20 como tem Itaipu hoje, daria 50 km e não 100km do rio Paraná e seria possível co-habitar. Qualquer barragem vai explodir um rio, vai desviar o curso e deixar de ser navegável aquela parte. Eles chamam energia hidrelétrica de energia limpa e o Brasil é a que mais usa. Imagina o trauma das pessoas que são afetadas por [esses projetos].

Sul21: Durante o impeachment da ex-presidente Dilma, pelo menos quatro diretores trabalharam em documentários acompanhando votações e movimentações populares. Acha que a importância do cinema cresce num momento como esse?

Heloísa: O cinema é fundamental, não só nesse lugar de registro, para contar a nossa história, mas também para olhar para esse cotidiano e humanizar. É fundamental ter um olhar além do fato, para conseguir esperança. Acho que a gente só vai conseguir [sair da crise] acreditando em projetos coletivos, como o The Intercept, Jornalistas Livres, Mídia Ninja, de fotógrafos incríveis, como aquele menino de 18 anos [Francisco Proner] que fotografou Lula em São Bernardo. Acho que a saída dentro da comunicação é a gente ficar muito atento e estar com a câmera no lugar certo.



Sul21: O que teu pai achou do filme?



Heloísa: Eu mostrei para ele numa sala de cinema, antes do filme estrear, para ele ver o que achava e autorizar passar em Curitiba. Estávamos eu, ele, minha mãe e um amigo muito próximo meu. Eu sentei na frente dele, mas levei uma câmera e fiquei filmando a reação deles. Minha mãe estava chorando, eu levantei para abraçá-la e depois sentei do lado do meu pai. O filme acaba com uma música do Belchior (Comentários a Respeito de John) e ele disse que achou que eu não iria conseguir, que o filme ia ficar chato monótono. ‘Mas você conseguiu, porque não tem vencedor, não tem perdedor, esse filme não deveria ser chamado de documentário, é uma história familiar. Você pode mostrar para quem você quiser’.

Sul21: Precisou coragem para seguir com esse projeto?



Heloísa: Eu chamei mulheres muito experientes para a equipe, que tinham um distanciamento e uma visão do cinema, que me diziam “isso aqui é um filme”. Sou muito grata a elas. Mas eu me sinto corajosa. Eu não sabia o que eu iria filmar, que em 2016 teria prisão coercitiva, que a Dilma seria impedida em agosto, eu não sabia que filme ia ter. No fundo tem uma admiração dele por mim, minha por ele, a gente não consegue ter uma relação corporal, mas consegue se aceitar. Acho que a maior declaração de amor do meu pai é a disponibilidade que ele teve comigo no filme.


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