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27 de abril de 2018
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10:20

Um mês depois de ter filho morto por policiais militares em Porto Alegre, mãe busca respostas

Por
Sul 21
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Cíntia Soares esteve na Assembleia Legislativa para falar sobre a morte do filho, Lucas, ocorrida no final de março | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Fernanda Canofre

O último dia 24 de março caiu em um sábado. Por volta das 21h, Cíntia Soares estava jantando em casa, quando o celular acendeu com a mensagem de um vizinho. Ele queria avisar que estava a caminho e precisava falar com ela. Assim que chegou à porta dela, veio a notícia: “O Lucas tomou um tiro, está no HPS”.

Lucas, 21 anos, o mais velho de três filhos, era o único que não estava em casa. Poucos minutos depois, a mãe começou a procurar por mais informações. Não demorou para encontrar fotos dele, com três tiros no tórax, camisa pólo verde e azul erguida até o pescoço, estirado em uma maca de hospital, postadas em uma página sobre notícias de Porto Alegre. “Eu quase tive um troço. Só não caí, porque não acreditava que ele estava morto, entendeu? Eu acreditava que ia chegar ao HPS e ia ver ele vivo”, conta ela.

O luto ficou para depois. Há um mês, a vida de Cíntia passou a ser correr atrás de respostas sobre as circunstâncias da morte do filho, durante uma ação envolvendo policiais da Brigada Militar, no Condomínio Princesa Isabel, no bairro Santana. Os últimos 30 dias, ela diz, têm sido de buscar informações no Fórum, na delegacia responsável por apurar o crime, à procura de testemunhas e da camiseta que o jovem usava no dia em que morreu.

Para a mãe, uma das incógnitas é o que aconteceu com a camiseta que Lucas usava naquela noite, e que poderia ajudar a esclarecer o que ocorreu. A peça de roupa sumiu. O HPS não soube localizá-la, a funerária disse que o corpo chegou “pronto” do DML (Departamento Médico Legal). Um enfermeiro, que trabalha há 10 anos no local, falou para Cíntia que nunca viu isso acontecer. A enfermeira que atendeu Lucas na chegada relatou que cortou a camiseta e a deixou ao lado da maca, com o tênis e a bermuda, que ele usava no dia.

Mais um ponto de interrogação na lista de perguntas de Cíntia. A cena do crime não chegou a passar por perícia, porque o corpo foi movido. Ao invés de chamar uma equipe de resgate após os tiros, os policiais militares decidiram levar, eles mesmos, o jovem até o HPS, a 10 minutos de distância, no porta-malas da viatura. “Eles relatam no boletim de ocorrência que ele estava vivo ainda, a enfermeira que o atendeu diz que ele já chegou morto. Por que não deixaram ali, para a perícia ser feita, já que eles alegaram que teve tiroteio, que teve confronto?”, pergunta Cíntia.

Nesta quarta-feira (25), Cíntia contou sua história em uma audiência da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. Do deputado Pedro Ruas (PSOL), ouviu: “Essa ação [com violência policial] não é incomum. O que é incomum é o homicídio”.

A deputada Manuela D’Ávila (PC do B) lembrou que recebeu vídeos dos policiais no pátio do Princesa Isabel, na noite do crime, de uma moradora da região que costuma denunciar violência policial. Ela conta que acompanhou toda a narrativa se formando nas redes, colocando a vítima sob suspeita. “A Brigada Militar não pode executar pena de morte. Isso faz parte de um pacto que a gente fez como sociedade”, disse à mãe de Lucas.

Os deputadosJeferson Fernantes (PT, à direita) Pedro Ruas (PSol) e a deputada Manuela D’Avila (PCdoB) participaram da audiência | Foto: Joana Berwanger/Sul21

O que teria acontecido

Na Assembleia, Cíntia repetiu que o filho era um jovem “bom” e que não tinha nenhum antecedente criminal. Ela diz que “ele não era santo”, gostava de namorar e de ir à festas e estava planejando a matrícula numa faculdade.

Segundo relatos que ela ouviu de testemunhas, na noite do assassinato, Lucas foi ao Princesa Isabel para encontrar uma amiga. Ele estava esperando pela menina, quando viu pessoas correndo e ouviu barulho de tiros. Assustado, teria descido do Uber e corrido também. Foi aí que levou o primeiro tiro, que passou de raspão pelo braço esquerdo e entrou no tórax.

A versão dos policiais é de que teria havia roubo de um celular em um supermercado próximo ao Condomínio. Eles alegam que o rastreador do aparelho indicava que ele teria sido levado para dentro do complexo de apartamentos e teriam perseguido o suspeito até lá.

Em vídeos gravados por moradores, dentro do Condomínio, se pode ouvir um homem gritando. Testemunhas afirmam que seria um dos policiais. Em seguida, a pessoa que registra as imagens diz: “mãe, eles mataram o guri”. Cíntia contratou o perito Joel Ribeiro Fernandes, por conta própria, para analisar as imagens. O Sul21 entrou em contato com Fernandes, mas ele preferiu não se pronunciar sobre a análise no momento, aguardando instruções do advogado da família.

Polícia Civil: resta esclarecer circunstâncias que levaram à morte 

À reportagem, o delegado Gabriel Bicca, diretor da divisão de homicídios da Polícia Civil, disse que um dos policiais procurou a delegacia para ser ouvido. Ele foi orientado a aguardar o andamento da investigação, que seria chamado em outro momento para oitiva. Segundo o delegado, não há dúvidas sobre quem teria atirado, resta esclarecer as circunstâncias.

Ele também confirmou que não foi realizada perícia no local do crime. Além do corpo da vítima ter sido removido, o delegado explica que o “calor dos fatos” também teria atrapalhado o trabalho dos agentes. Ele se refere ao protesto de moradores que fechou as ruas de acesso ao Condomínio, na mesma noite, para denunciar o crime.

Ainda de acordo com o delegado, a delegacia responsável pelo caso abriu diligência para buscar onde pode estar a camiseta de Lucas.

O Sul21 também entrou em contato com a Corregedoria da Brigada Militar. Segundo o Major Dias de Castro, subcorregedor da BM, o caso está sob investigação do Comando de Policiamento da Capital (CPC), já que a morte ocorreu enquanto os policiais estavam em serviço.

Procurado pela reportagem, o CPC indicou o batalhão ao qual pertencem os policiais envolvidos na ocorrência, o 1º Batalhão de Policiamento Militar, para mais esclarecimentos. O Comandante do Batalhão, coronel Mário Augusto, diz que eles seguem trabalhando.

“São bons policiais e não tem nada contra eles que faça com que fiquem afastados do policiamento. Essa ação está sendo investigada através de um inquérito policial militar que vai ser encaminhado para a Justiça. Como acontece todos os dias com vários policiais e que, infelizmente, a imprensa só foca no lado policial. Isso é muito ruim para nós, é muito ruim para a sociedade como um todo”, diz o coronel.

Cíntia diz que vai buscar participação do Ministério Público | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Mãe quer MP no caso

Cíntia diz que os últimos dias ficam voltando à sua cabeça como um filme. O marido nervoso, o carro que parecia andar devagar e ela querendo correr pelas próprias pernas para ir mais rápido, a chegada ao HPS, onde ninguém sabia de Lucas, a ida ao necrotério para reconhecer o corpo, a negação. “Isso é inexplicável”, diz emocionada.

“Ao invés de a gente ser protegido por brigadianos, eles estão só executando. Eles não sabem quem é, quem deixa de ser, acham que dentro do prédio [do Princesa Isabel] só mora vagabundo, mas não! Eu conversei com pessoas que são pobres, não têm onde morar, moram ali porque necessitam. Como eles entram atirando, executam uma pessoa que não sabem nem quem é?”, questiona ela. “Eu quero que o Ministério Público entre no caso, porque acho que é a única solução”.

Ainda na quarta-feira, o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia, deputado Jeferson Fernandes (PT), teve um encontro com o chefe da Polícia Civil para discutir o encaminhamento do caso. A Comissão também está acompanhando as investigações sobre a execução de um homem morto por três policiais militares, em Alvorada, no início de abril. O crime ocorreu quando eles estavam fora do horário de serviço. Identificados em câmeras de segurança, os três homens estão presos.

“Vamos comunicar também o Comando da Brigada, o Ministério Público e a Justiça Militar, já que a Corregedoria da BM não tem, a nosso ver, cumprido com seu papel. Nós temos convidado a Corregedoria para conversar conosco sobre violência que acontece nos estádios, casos de tortura relatados no ano passado, para conversar sobre qual é a política de orientação para os policiais. Porque se trata de ter uma política preventiva”, diz Jeferson.

A preocupação também é com a segurança da família. “Eu não tenho medo. Eu estou atrás disso, dessas respostas, porque eu amava meu filho, ele era tudo pra mim. Muitas pessoas chegam para mim e dizem que eu corro risco, mas se me acontecer alguma coisa, eu estou ciente de que lutei por aquilo que era meu, meu filho”.


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