Geral
|
8 de abril de 2018
|
11:07

‘Quem demoniza o funk nunca prestou atenção aos clássicos’: projeto provoca reflexão sobre músicas machistas

Por
Sul 21
[email protected]
No site, o usuário é convidado a “dar um shuffle” e interagir com uma das mais de 100 músicas catalogadas. Imagem: Reprodução

Giovana Fleck

“Há sempre uma mulher a sua espera com os olhos cheios de carinho e as mãos cheias de perdão.” Você provavelmente já ouviu esse  trecho de ‘Samba da benção’, clássico de Vinícius de Moraes. Mas você, mulher, concorda que “uma mulher tem que ser […] feita apenas para amar, para sofrer pelo seu amor e para ser só perdão”? Quatro publicitárias de São Paulo começaram a repensar o machismo na cultura brasileira. Disso, surgiu o projeto MMPB – Música Machista Popular Brasileira. “Quem demoniza o funk nunca prestou atenção aos clássicos”, diz a redatora do projeto, Lilian Oliveira.

Lilian e outras quatro amigas – Rossiane Antunez, Carolina Tod e Nathália Ehl – trabalham em agências de publicidade em São Paulo. Ligadas ao desenvolvimento de marcas, Lilian conta que queriam a possibilidade de trabalhar com algo próprio e autoral. “Faltava vida, sabe?” De alguns encontros, começaram a surgir algumas ideias. No entanto, foi quando estourou a polêmica em torno da música “Só surubinha de leve”, de MC Diguinho, que elas decidiram reunir um banco de dados com músicas de todas as datas, ritmos e movimentos para provar que o machismo não se prende a uma única vertente.

Da esquerda para a direita: Rossiane, Nathalia, Lilian e Carolina. Fotos: Arquivo Pessoal
Da esquerda para a direita: Rossiane, Nathalia, Lilian e Carolina. Fotos: Arquivo Pessoal

Chico Buarque, Noel Rosa, Racionais, Cartola, Bezerra da Silva, Claudinho e Bochecha: são só alguns entre os intérpretes das mais de 100 músicas que integram a lista levantada pelo MMPB. “Nelas, a mulher é sexualizada ou idealizada ao extremo. Tá tudo errado”, afirma Lilian. Como redatora, ela é responsável pela análise dos trechos problemáticos. Sobre ‘Samba da benção’, ela comenta: “Ai, Vinícius. Cansa demais ser mulher e já cansava muito ser mulher na sua época. Não adiantava ser linda, tinha que ter toda a ~sensibilidade frágil, sofrida, triste, melancólica, romântica, imaculada~ que vocês esperavam. E a música tem seu mérito, claro, mas olhem o retrato de uma mulher de porcelana, sem personalidade”.

No site, o usuário é convidado a “dar um shuffle”, ou seja, achar uma das músicas no modo aleatório. A partir do contato com a música, o usuário vê sua transcrição com trechos destacados, além do clipe e do comentário do projeto explicando a letra com link de um artigo ou trabalho acadêmico que sustenta o argumento. “Queríamos que fosse uma plataforma interativa, que as pessoas não se prendessem a buscar seu artista preferido e parar por aí”, explica Lilian. O site ainda está em sua primeira versão, lançada na terça-feira (02). “Num segundo momento, queremos criar um catálogo que vá de A a Z.”

“A nossa música reflete uma realidade”

Página com a música ‘Samba da benção’. Imagem: reprodução

De acordo com documento publicado pela OMS (Organização Mundial da Saúde), o Brasil é 5º país em taxas de feminicídio. Além disso, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 135 mulheres foram estupradas por dia em 2017 – 49.497 casos no total, 4,3% a mais que no ano anterior. “A nossa música reflete uma história real, do relacionamento abusivo, do feminicídio”, defende Lilian. “Eu tive um relacionamento abusivo. Sabe “Faixa amarela”? Do Zeca Pagodinho? Ela é cantada com um sorriso no rosto. Mas ele encerra dizendo que se ela vacilar vai quebrar a costela.”

A publicitária lembra da agressão sofrida pela cantora MC Carol, poucos dias antes da publicação do MMPB. A funkeira é conhecida por suas letras fortes, especialmente sobre o combate ao machismo. “Ela foi atacada pelo ex-namorado. Quase morreu. E o crime foi registrado como lesão corporal. Mas não precisa ser especialista para entender que foi tentativa de feminicídio.”

Lilian explicita que as pessoas precisam atentar para esses casos. Com o projeto, as criadoras esperam criar consciência sobre uma realidade que se reflete em todas as instâncias da vida da mulher. “Nas agências de publicidade, por exemplo, poucas fogem à regra do machismo. Mas, hoje, eu vejo um movimento muito forte que luta contra isso”, diz. “Por muito tempo, eu fui a única menina na criação de empresas em que eu trabalhei.”

Ela afirma que a ideia não é monetizar a inciativa e que tudo foi feito “à mão”, sem que elas ou o programador que desenvolveu a plataforma ganhassem algo. “A nossa recompensa tem sido ver os comentários e e-mails das mulheres. Muitas dizem que se sentiram representadas.”

 


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora