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14 de abril de 2018
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13:18

‘Não é mais problema do morro’: Documentário dá voz aos protagonistas do tráfico em Porto Alegre

Por
Sul 21
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Wagner Abreu, diretor do documentário ‘De boca em boca’. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Giovana Fleck

Sessão lotada. Alguns grupos de amigos se separam para encontrar cadeiras vazias na sala de exibição da Cinemateca Capitólio. A medida que a luz baixa, as vozes param. “A gente, em vez de ter medo dos traficantes, têm medo da violência policial”, relata, na tela, uma menina moradora da periferia de Porto Alegre.

O documentário ‘De boca em boca’ reúne depoimentos sobre uma realidade que pode chocar – mas que, sob outro olhar, está nos noticiários todos os dias. Com um celular, uma câmera DSLR, dois tripés e um microfone, Wagner Abreu percorreu mais de 20 bocas de fumo para contar as histórias de quem trafica na cidade. Produzido, filmado e editado de forma independente, ‘De boca em boca’ é uma resposta ao argumento do senso comum de que “bandido bom é bandido morto”. “Algumas pessoas me procuraram querendo saber porque eu decidi dar ‘voz para vagabundo’. Mas isso é problema pra todo mundo, nós não podemos ser hipócritas e achar que também não participamos desse processo.”

O documentário mostra os anseios das comunidades em torno das bocas. Das denúncias de corrupção e violência policial aos relatos de abandono, evasão escolar e esquecimento do poder público. Um dos entrevistados, no sofá de sua casa, reflete sobre o que quer para o futuro. “Traficante é quem mais mata e traficante é quem mais morre. Se eu puder, vou partir pro roubo que dá mais dinheiro. Daí posso dar condições melhores pra minha família”, diz.

“Eu me perguntava quem era essa gurizada, porque acabaram fazendo isso. Ninguém dá voz a eles. Não tem como saber sem ir falar com eles”, defende Wagner. Além de atuar como repórter, ele dirigiu o longa. “Se a gente fala em aumento da violência no Centro, na periferia é onde se entra em um carro com um fuzil e atira sem olhar onde a bala vai pegar.” Por isso, Wagner explica ter insistido no tema. “São três ou quatro facções de Porto Alegre que são os bichos ferozes. E um ataca o outro de formas cada vez mais brutais. E hoje não é mais problema do morro. Por quê?”, questiona o diretor.

Guerra pra ver no jornal

Apenas alguns personagens são identificados no documentário. Com uma camiseta amarrada no rosto, um jovem de 16 anos é questionado sobre o tempo que está no tráfico. “Há quatro anos”, responde. Ele começou aos 12, como ‘vapor’, quando a pessoa vende menores quantidades. “E aonde tu quer chegar com o tráfico?”, pergunta Wagner. Não há resposta.

“Ali tu vê a realidade, não é o que a TV mostra”. Antes de dirigir o documentário, Wagner – que é estudante de Jornalismo – estagiava em uma emissora local. Chegava na redação às 11h e fazia a chamada ‘ronda policial’, em que ligava de batalhão em batalhão atrás de informações sobre as ações da polícia. “Toda hora, a mesma coisa. Apreensão de drogas, operação com tantos presos.” De lá, foi trabalhar como assessor redigindo textos na Seção de Comunicação Social da Brigada Militar (EMBM-PM5). “Ali, eu percebi que o tráfico é um clã fechado. E me deu a curiosidade de saber como esses caras viviam.”

Em 2016, Wagner decidiu pegar a câmera e conversar com ‘os frentes’ de uma boca perto de onde morava. Por viver próximo há muito tempo, tinha uma noção de quem poderia encontrar por ali. Chegou perguntando pelos nomes. Ouviu como resposta um: “Quem é tu?”. “Expliquei que morava na rua de baixo, e me perguntaram o que eu queria com os caras. Disse que eu queria entrevistar. E me disseram que a boca agora era deles, que ‘correram os caras’.” Nervoso, Wagner explicou a ideia, disse que precisava de apoio.

“Eu fui bem claro, não era denúncia. Não era ‘Tim Lopes’. Não queria saber quem ele era, queria saber o que ele tem pra dizer.” Wagner conseguiu entrevistas em três zonas de Porto Alegre: Norte, Sul e Leste. Sozinho. “Meu medo era que passassem os ‘atirantes’. Daí não interessa quem tu é, vai junto”, diz, se referindo aos assassinatos em massa, geralmente provocados por disputas de território entre facções.

Wagner se fez conhecido entre eles. Chegava nos vendedores, conversava. Falava de si e do projeto. Até que, em determinado momento, chegava no dono da boca. “Eu tinha que chegar no ‘homem’. O tráfico é uma empresa, não adianta.” Segundo ele, o que mais chocou no processo de captação foi justamente essa noção de normalidade. “Se teu pai ou tua mãe trabalham numa empresa, tu cresce achando isso natural. No tráfico é assim. E tem muita criança muito perto”, explica.

Um queimado, outro decapitado

Entre as principais críticas do documentário está a falta de políticas públicas. Cenas mostrando o Palácio Piratini ilustram falas e questões colocadas pelos próprios traficantes. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Joaquim Lima foi o editor do documentário. “A essência do que a gente quer é promover esse debate sobre segurança pública de uma maneira transparente e sem hipocrisia. É justo, né”, afirma. Fora ele, outras três pessoas participaram da sonorização, distribuição, assessoria e direção de arte. Joca começou a editar em 2016, concluindo o projeto em 2017. “De lá pra cá, só os personagens trocaram. O jogo não muda, mudam os jogadores”, diz.

Wagner complementa contado de sua experiência na polícia. “A Brigada prendia, prendia, prendia. Mas que efeito tinha isso?” Para Joca, a solução está no debate que inclua todos. “Não é só pra uma camada, uma classe. Temos que ser honestos porque o bandido não é só negro, pobre. O branco que vende em bairro nobre já não é traficante. Quando é pego, é pra consumo próprio. E se continuar assim, nada muda.”

Além de editor, Joca é rapper. Ele acredita em transformação pela cultura; afirma ter visto muitas pessoas mudarem de rumo por esse caminho. “Costumo dizer que o hip hop faz muito mais que muito político por aí. A gente acredita que as pessoas merecem uma segunda, até uma terceira chance. E se a gente tiver políticas públicas, mais fácil ainda.”

Final do filme. Alguns sons de espanto baixinhos são ouvidos no fundo do cinema. Um dos entrevistados é questionado sobre o fim do tráfico. “Morre vagabundo. Morre policial. E o crime não vai parar”, responde.

Depois dos últimos depoimentos, tela preta. Quatro entrevistados morreram até o início das exibições. Suas cenas, censuradas, aparecem com data de nascimento e falecimento. Apenas um morreu por questões de saúde. “Um morreu queimado, outro, decapitado. Fiquei sabendo quando fui levar o documentário pronto pra eles, e as mães me contaram. Dois tinham menos de 22 anos.”

A próxima exibição de ‘De boca em boca’ ocorrerá na Sala Redenção, no dia 16 de maio. Mais informações podem ser acessadas no evento.

 

 


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