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1 de abril de 2018
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11:23

Marcos Tiaraju: 1º bebê nascido em um acampamento do MST e médico formado em Cuba

Por
Luís Gomes
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Marcos Tiaraju conversou com a reportagem durante a parada da Caravana de Lula em Pontão, terra da Fazenda Annoni, onde sua mãe foi morta | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Luís Eduardo Gomes

Em 31 de outubro de 1985 nascia na Fazenda Annoni, um latifúndio de 9 mil hectares ocupado dois dias antes por pelo menos 1,5 mil famílias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o primeiro bebê a vir ao mundo em um assentamento do MST no Brasil. Diante de todo simbolismo que aquela ocupação e aquele nascimento significavam para o movimento, o nome dele não seria definido por pai e mãe, mas pelo voto das famílias daquela comunidade que se formava. A escolha foi homenagear um guerreiro que havia lutado contra impérios pela preservação de seu território em um Rio Grande do Sul ancestral e cujo nome significava “raio de luz” em guarani: Marcos Tiaraju.

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Hoje, aos 32 anos, o filho de Roseli Seleste Nunes da Silva e José Correa da Silva é um dos 10 médicos que atuam pelo MST no Estado. Nas últimas semanas, percorreu milhares de quilômetros e visitou mais de 20 cidades acompanhando a caravana do ex-presidente Lula pela região Sul.

Ocupação da Fazenda Annoni é um marco na luta pela reforma agrária no Brasil | Foto: Arquivo

O filho de Rose

A ocupação da Fazenda Annoni, à época pertencente ao município de Ronda Alta – hoje, Pontão -, no noroeste do Estado, era algo que jamais tinha se visto. Logo em seus primeiros dias, chegou a abrigar 7,5 mil pessoas. Era uma demonstração de força de um movimento que havia conseguido organizar, nacionalmente, a luta pela terra, que, historicamente no Brasil, ocorria de forma isolada.

O cenário chamou a atenção da documentarista carioca Tetê Moraes, que resolveu contar essa história, costurando-a pela narrativa de uma mulher, uma liderança sem terra, que chegara ao local no dia da ocupação com o marido e os dois filhos, uma menina de quatro anos e um menino de quase dois, grávida e prestes a dar à luz. Roseli Nunes daria nome ao documentário “Terra para Rose”, lançado em 1987.

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Rose, mesmo com três filhos pequenos, cumpriria o papel de organizar a luta, o que a levou a estar, no dia 31 de março de 1987 – 31 anos completados ontem -, em um trevo de acesso à cidade de Sarandi, na BR-386, junto com outros integrantes do movimento e um grupo de pequenos agricultores que compartilhava o anseio por melhores condições para plantar. Ali, ela e outros 13 pessoas seriam atropeladas por um caminhão de uma empresa agrícola carregado com barras de ferros. Aos 33 anos, morreria, juntamente com Vitalino Antonio Mori, 32, e Iari Grosseli, 23. Em junho de 1988, a CPI da Violência da Assembleia Legislativa, presidida pelo então deputado estadual Adão Pretto (PT), que ajudara a fundar o MST no Estado, concluiria que não se tratava de um acidente, mas de um crime acidental. A perícia apontou que, a 400m de distância de onde ocorria a manifestação, o motorista já tinha visibilidade e, portando, tempo hábil para frear e parar o caminhão. Ninguém seria preso, mas a empresa proprietária do caminhão seria condenada a indenizar as famílias das vítimas.

Coube a José criar Marcos, então com 1 ano e meio, e os irmãos, com 6 e 3 anos. Um homem que junto com a esposa havia tentado trabalhar no campo em Ronda Alta e Rondinha, mas sem nunca ter tido casa própria. Com três filhos pequenos, decidiu tomar o ruma da cidade. Em Sarandi, começou a trabalhar como pintor. Pintava casas para sustentar a família. Mas essa era uma lida difícil. No verão, havia emprego. Quando as chuvas e o frio tomavam conta do noroeste do Estado, o emprego minguava. Faltava dinheiro e alimento na mesa. Vendo os filhos revirarem o lixo em busca de comida, foi obrigado a migrar pela região.

Rose e Marcos ainda bebê em imagem do filme de Tetê Moraes | Foto: Reprodução ‘Terra para Rose’

Foi nesse contexto que Tetê Moraes voltaria a encontrar a família para continuar a contar a história do movimento, mais uma vez pelos olhos de Rose, dando origem a um novo documentário que viria a se chamar “O Sonho de Rose”. “Ela nos encontra nessa realidade no município de Rondinha. Em condições bastante precárias do ponto de vista social, econômico”, conta Marcos, que na época tinha entre 10 e 11 anos. “O nome da minha mãe acabou sintetizando aquela luta que era de várias mulheres, de várias famílias, várias Roses e vários Josés. E, quando ela nos encontra, naquela realidade, o documentário ajuda a estimular um debate dentro do movimento sem terra de que era necessário que a família da Roseli Nunes, que iniciou o processo de luta pela terra, que morreu, que deu a vida por essa causa e que não conseguiu acesso à terra, também cumprisse o sonho de Rose.”

E assim José e os filhos voltariam a conviver com o movimento. Em 1998, ele e o filho mais velho haviam migrada para Porto Alegre em busca de melhores condições de trabalho, ainda atuando como pintor. Marcos ficara em Rondinha, junto com a madrasta, para terminar a 7ª série e à espera de uma notícia de que a vida do pai melhorara. O que veio, em 1999, foi um pequeno pedaço de terra em um assentamento do MST em Viamão. Adolescente e ainda no colégio, Marcos não teria um local propício para ficar. “Então, uma família me convidou para morar no assentamento de Nova Santa Rita. É o primeiro contato que eu venho a ter com um assentamento, com 14 anos. Eu nasci num acampamento, minha mãe perdeu a vida na luta pela terra, porém até os meus 14 anos era uma história que em casa não se comentava. Talvez pelo trauma, pela dor da lembrança, meu pai também não comentava sobre isso. Então eu venho a conhecer as minhas origens aos 14 anos.”

Por outro lado, todos os conheciam. Era o Marquinhos, o Tiarajuzinho, o filho de Rose, sem ainda entender direito o que aquilo significava. Ao mesmo tempo em que começava a tomar parte da luta pela reforma agrária, Marcos também passou a buscar informações sobre a sua história e sua mãe, sobre a qual aquelas pessoas sabiam mais do que ele. Foi assim que passou a entender que Rose não tinha sido acometida por uma fatalidade. “A minha mãe não havia simplesmente falecido, ela havia sido morta, assassinada”. Marcos conta que sentiu uma mistura de raiva, tristeza e revolta quando finalmente conheceu a história de sua mãe. Sentimentos que transformou em vontade de saber mais, conhecer mais da realidade que poderia ter sido a sua desde criança.

Placa homenageia à memória de Roseli Celeste Nunes da Silva, no cemitério onde está enterrada, na Fazenda Annoni | Foto: Gerson Costa Lopes/Especial para o Sul21

“Ao chegar em Nova Santa Rita, ver como era a vida de quem morava nesse assentamento e comparar com a minha, que morava na vila, ao escutar as pessoas falando de como a minha mãe era, que era uma liderança, que era uma mulher à frente do tempo dela, que puxava as outras mulheres, que era respeitada, que lutava, que foi morta, aí eu comecei a fazer a ligação e entender que a morte dela não era simplesmente um falecimento, era um assassinato decorrente de um processo de luta de classes. Então, aquela raiva, aquela tristeza, aquela revolta foram se convertendo em combustível para a minha decisão de que aquele era o caminho que eu queria seguir para mim e para minha família mudar de vida. E, me veio a compreensão que, se essas famílias hoje conseguem estender a mão para eu vir morar no assentamento, é porque elas fizeram um processo de luta e não esqueceram dos que ainda não conquistaram a terra. Aí vem a segunda compreensão, eu não posso lutar só por mim, só pela minha família, mas eu tenho que entrar nesse processo de luta pela transformação da sociedade”, relata Marcos.

E foi assim que o primeiro bebê nascido em um assentamento do MST, aos 14 anos, passava a militar no movimento, participando de acampamentos, ocupações de terra, marchas, protestos.

Tornando-se médico em Cuba

A chegada de Marcos Tiaraju à militância ocorre num momento em que o MST começa a se transformar – mudança que se acentuaria a partir do governo Lula. Se no princípio o movimento era uma coalizão de pessoas que não tinham propriedade alguma e lutavam pela reforma agrária, agora já possuíam acampamentos, se organizavam em assentamentos. A luta passava a ser a de conquistar melhores condições de vida para as famílias assentadas – acesso à moradia, saúde, escola, sementes, crédito, estradas, formas de escoamento da produção, etc. – e construir um modelo novo de sociedade. “O MST com o tempo vai aprendendo, vai crescendo em consciência social, em consciência política, em consciência organizativa e vai surgindo esse terceiro elemento, que é o da transformação da sociedade. A conquista pela terra não era mais o capítulo final da história”, diz Marcos, ressalvando, porém, que a luta pela reforma agrária ainda está longe de terminar.

Foi nesse contexto que Marcos partiu, em 2 de maio de 2005, junto com milhares de outros membros do MST, em uma marcha de Goiânia (GO) a Brasília (DF) para cobrar do governo Lula maior celeridade na distribuição de terras e melhorias nos assentamentos que duraria 17 dias. Quando a marcha já batia às portas da Capital Federal, em uma data que não recorda com exatidão, um companheiro do movimento visita a sua barraca à meia-noite para lhe avisar que Cuba estava oferecendo uma vaga ao movimento no curso de Medicina criado para abrigar jovens de países pobres no mundo e que, por decisão da coordenação do movimento, a vaga era dele, se assim quisesse. Marcos, que nunca tinha pensado em ser médico na vida, tinha até as 7h da manhã seguinte para decidir se tomaria o rumo da ilha caribenha dali a seis dias.

“Eu nunca sonhei em ser médico, porque não fazia parte da minha realidade. A minha cabeça, e a de todos os jovens, pensava de acordo com o local onde os pés estavam pisando. A minha realidade era assentamento, acampamento, luta pela terra”, conta. “Eu pensei: ‘Como é que o médico se encaixa nesse negócio? Eu não sabia de Medicina, era um jovem de 19 anos. Mas sabia que o médico cura, não deixa a pessoa morrer. Se ele não deixa a pessoa morrer, então ele também defende a vida. Então, se como ser humano eu quero me dedicar a salvar vidas, lutando por melhorias materiais na vida dessas pessoas e está surgindo a oportunidade de estudar, me qualificar, para salvar vidas também de outra forma e eu entendo que buscar o conhecimento é importante, eu digo: ‘Eu vou estudar Medicina'”.

Marcos durante o período em que viveu em Cuba | Foto: Arquivo Pessoal

Em Cuba, Marcos conheceu uma sociedade que, por um lado, havia alcançado educação e saúde públicas universais e de qualidade – uma realidade ainda distante no Brasil de hoje. Por outro, vivenciou as dificuldades materiais de um país que, há décadas, está mergulhado em um regime sob embargo econômico dos Estados Unidos e uma democracia com liberdades restritas.

Percebeu que as pessoas mais velhas, que haviam vivido sob a ditadura de Fulgêncio Batista, eram defensoras do regime castrista porque haviam vivenciado uma profunda transformação material de qualidade de vida. Já os jovens, queriam ter direito a outras coisas. Se no princípio via esses críticos do regime como contrarrevolucionários, como ‘gusanos’ (vermes, na tradução do espanhol), a partir da metade de sua estadia passou a compreender que eles não queriam destruir as conquistas da revolução cubana, mas sim avançar. “Eu entendi que, por mais que as melhorias sociais venham, por mais que as conquistas venham, a geração que nasce com aquilo conquistado em algum momento não vai se contentar com aquilo, vai querer chegar mais longe”.

O mesmo que ele acabaria vendo dentro do próprio movimento sem terra. Afinal, se tinha sido o primeiro a nascer em um assentamento, fora seguido por milhares. “Meu pai trabalhou como pintor uma época da vida, foi sem terra, agricultor, assentado e hoje o filho dele é médico. Você vê que aquilo que no início bastava para os meus pais, para minha geração já não é suficiente, nós queremos e podemos chegar mais longe, e temos direito a isso, então eu compreendo os jovens cubanos nessa lógica, de que eles querem chegar mais longe porque é natural do ser humano querer progredir”.

No entanto, entende que é preciso fazer uma separação entre querer ter acesso a mais coisas e progredir como resultado de um processo de luta coletiva, em que há um direito a ser conquistado. “A maioria das pessoas quer ser alguém na vida, ter acesso a coisas materiais, quer estudar. Nós também queremos, mas não é só isso, queremos avançar em conjunto, queremos debater com a sociedade, queremos melhoria para todos”.

Marcos se formou em 2012, mesmo ano em que foi aprovado no Revalida. Em 2013, se apresentou ao MST com o diploma e apto para exercer medicina no Brasil. Por decisão do movimento, retorna à Nova Santa Rita e se soma a outros nove médicos do movimento, colocando-se à disposição para atuar em acampamentos, assentamentos e nas demais atividades do movimento, como o acompanhamento médico de marchas, protestos, etc. E é assim a sua trajetória se cruza com a do ex-presidente Lula. Neste março de 2018, foi escalado para participar como auxílio médico da caravana pelo Sul do País.

Para Marcos, atuar na Caravana de Lula foi uma tarefa política e uma obrigação moral | Foto: Guilherme Santos/Sul21

A caravana e a luta política

Militante em diversas atividades do MST e supervisor acadêmico do programa Mais Médicos ligado à Universidade Federal da Fronteira Sul, Marcos já havia participado de eventos com os ex-presidentes Lula e Dilma. Mas desta vez coube a ele cumprir uma tarefa política, que entende como a defesa do direito de o ex-presidente concorrer novamente ao cargo.

“É uma obrigação moral com o governo que mais fez a defesa da vida, que mais deu moradia, que mais permitiu que jovens pobres como eu pudessem acessar a universidade, que permitiu às pessoas comerem três vezes ao dia, que permitiu que as pessoas pudessem sonhar com uma vida melhor e, portanto, ter vida de verdade. Não tem como eu não me comprometer a ajudar. Então, vim para a atividade assumir a tarefa delegada a mim pelo MST e pela Frente Brasil Popular”.

Marcos vê no processo jurídico contra Lula um mesmo movimento que acostumou-se a ver contra o MST, isto é, um processo acompanhado de uma campanha midiática de criminalização, de disseminação de histórias negativas. “Criaram uma história, inventaram fatos para desmoralizar, que é o que fizeram a vida inteira com o nosso movimento. Baderneiros, vagabundos, pegam as terras para vender, um bando de bêbados, só querem roubar, uma série de coisas negativas. Mas não se fala que a maior produção de arroz orgânico da América Latina é no assentamento de Viamão, do MST; que as áreas de proteção ambiental de maior envergadura são nas áreas de assentamento; que as áreas onde se faz um debate para não usar veneno, para não usar agrotóxicos para não agredir o meio ambiente, para ter um desenvolvimento sustentável, estão nos assentamentos”.

Morando em Sério, um pequeno município no Vale do Taquari, interior do RS, com a mulher Karen, costarriquenha também formada em Medicina em Cuba, e a filha de 1 ano e 3 meses do casal, Bianca Seleste – uma homenagem à Rose -,Marcos segue à disposição do movimento.

“Se hoje eu tenho essa história, não é graças a mim, não é porque eu sou mais inteligente, porque eu sou mais bonito. Eu não queria ter perdido minha mãe, eu preferia que ela estivesse viva. Eu não pedi para ser médico, a história me delegou isso. Nós não determinamos o surgimento da revolução cubana, mas ela surgiu e pensou em formar médicos pobres. Então, a história foi evoluindo de uma maneira que me colocou nesse caminho. Há alguns meses, essa tarefa da caravana não existia. Mais uma vez a história cobra uma atitude e me coloca nessa situação. O que vem depois? Não será decisão minha, estou à disposição do grupo social ao qual pertenço, que é o grupo dos pobres, apesar de ser médico, dos sem terra, apesar de já ser assentado, por uma consciência social e não por uma condição social”.


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