Geral
|
30 de abril de 2018
|
16:49

‘Hoje, os juízes são os carcereiros’: Ex-preso político uruguaio envia livro escrito no cárcere para Lula

Por
Sul 21
[email protected]
‘Hoje, os juízes são os carcereiros’: Ex-preso político uruguaio envia livro escrito no cárcere para Lula
‘Hoje, os juízes são os carcereiros’: Ex-preso político uruguaio envia livro escrito no cárcere para Lula
O autor, Guillermo Rallo, com uma das cópias de ‘Contos de amor y dolor’ | Foto: Reprodução

Da Redação

“Quando fui preso, antigamente, o preso tinha todo o tempo do mundo enquanto aguardava o julgamento – se é que fosse para um juiz. Hoje, os juízes são os carcereiros.” Guillermo Rallo era comerciante. Com o avanço da crise econômica que atingiu o Uruguai na década de 50, e o processo de declínio social e econômico dos anos seguintes – culminando em uma ditadura militar -, Guillermo decidiu entrar para a luta armada. Preso por 12 anos e uma semana, produziu dezenas de poemas que se transformaram em livro, cuja primeira edição foi feita à mão por outros três presos.

No entanto, quase 50 anos depois, após a publicação da obra, Guillermo vê que o mundo não avançou como esperava em seus anos de cárcere. Com a prisão do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT), o ex-preso político revela sentir vergonha e tristeza ao pensar na realidade política do Brasil. “É uma situação vexaminosa”, diz, em um espanhol carregado. “Lula não está sendo condenado por um muquifo de um triplex. Está sendo condenado pois ganharia a eleição.” Em solidariedade ao ex-presidente, uma cópia de ‘Contos de amor y dolor’ foi enviada para a sede da Polícia Federal em Curitiba, onde Lula está preso.

“É um livro de experiências, de memória. […] Precisamos ter muito cuidado com o que é esquecível”, pondera. Publicado apenas em 2014 – mais de 40 anos depois e ser escrito -, o livro se mantém como uma peça de resistência para Guillermo. Segundo ele, a introdução – que justifica a importância da publicação tardia – reflete o momento atual do ex-presidente.  “É um momento de decepção. Resistiremos solidários frente a essa onda conservadora que vem derrubando os governos democráticos da América Latina, como ocorreu nas décadas de 60 e 70.”

Um dia conta

Guillermo Rallo iniciou sua carreira como comerciante. Na década de 60, era uma das representações da classe no sindicato dos comerciários em Montevidéu. Após 10 anos de trabalho, foi demitido por causa da atuação sindical, sem indenização alguma. Sua esposa estava grávida. A repressão e a violência haviam aumentado. O estopim teria sido o assassinato de uma amiga pela polícia, durante um protesto na Universidade da República do Uruguai. “Cheguei à conclusão de que não poderia mais responder às balas apenas com palavras de ordem”, lembra.

Em 1969, Rallo entrou para o Movimento de Liberação Nacional – Tupamaros (MLN-T). Três anos mais tarde, foi preso. “Me prenderam por 12 anos e uma semana”, conta. “Quando enviei o livro ao Lula, escrevi uma carta onde apenas disse que ‘na prisão, um dia conta’. Por isso conto a semana, foi uma semana a mais de minha vida como preso político.”

Mesmo passando por sessões de tortura (a mais comum sendo por afogamento), Rallo se mantinha lúcido através das conversas com os companheiros e dos pequenos artesanatos que conseguia produzir e enviar à família, junto com poemas de Pablo Neruda. “Tinha um exemplar de ‘Os versos do capitão’, e sempre enviava para eles.”

Já contando mais de 300 dias no cárcere, Guillermo ficou amigo de um homem que nada tinha que ver com a revolução. O cunhado de Carlos era membro dos tupamaros. Quando seu sogro descobriu o esconderijo das armas, colocou-as em um saco e pediu para que Carlos jogasse no primeiro arroio que encontrasse. Assim, foi pego pela polícia. “Mas isso não vem ao caso”, retoma Guillermo. Já amigos, Carlos sugeriu que Guillermo começasse a escrever suas próprias poesias, já que gostava tanto das de Neruda. “Eu não sou poeta”, Guillermo afirma ter respondido. “Mas então pensei, e quem é poeta? Então comecei a juntar algumas palavras.”

Após ser transferido para outro presídio, recebeu de presente de outro companheiro um conjunto de tintas guaches, mosaicos e alguns outros utensílios. “Se crianças de creche podem fazer arte criando formas com manchas de batatas, eu também posso criar com isso. E deu certo.” Ele conta que começou a ilustrar seus poemas. Assim, o projeto artístico pessoal foi tomando forma.

Guillermo e outros presos se dividiam para adquirir na “cantina” folhas de desenho. Um dos amigos, com uma caligrafia melhor, transcrevia os poemas enquanto Guillermo e outro amigo, arquiteto, desenhavam. “Escuta, esse foi um trabalho de noite e dia. 100% artesanal”, reitera.

Assim que ficou pronto, enviou para sua esposa e seus filhos. “Tu sabes que, às vezes, na vida, acontecem milagres. E isso foi um milagre.” Uma semana depois, um decreto foi emitido proibindo que qualquer material escrito saísse das prisões – impossibilitando a comunicação dos presos.

Onze anos depois de enviar a primeira cópia, Guillermo foi liberado. “No presídio, tu abandona teu nome. Passei 12 anos me chamando 1915, até se lembrarem que eu era Guillermo.”

Casado com uma gaúcha, afirma que o movimento de vir morar no Brasil foi natural. “Na estante” por décadas, o livro ganhou uma sobrevida ao ser publicado pela Companhia Rio-Grandense de Artes Gráficas (Corag) em 2014.

Guilhermo diz que, desde o ano passado, tem saído pouco de casa. “Mas eu continuo a pensar. Cheguei a conclusão de que milico na rua, com cassetete, metralhadora, não faz sentido depois de uma Dilma no Brasil, de um Mujica no Uruguai. O ovo da serpente foi colocado em 2013, e qual o resultado? Estamos nas mãos dos militares.”

 


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora