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19 de abril de 2018
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11:48

‘Criamos um movimento de transmissão dos saberes indígenas’, diz escritor Daniel Munduruku

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Sul 21
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‘Criamos um movimento de transmissão dos saberes indígenas’, diz escritor Daniel Munduruku
‘Criamos um movimento de transmissão dos saberes indígenas’, diz escritor Daniel Munduruku
Escritor infanto-juvenil Daniel Munduruku vencedor do prêmio Jabuti em 2017 e diretor do UKA. Foto: Divulgação

Júlia Dolce
Do Brasil de Fato

Na semana em que o calendário brasileiro comemora o Dia do Índio (19 de abril) e o Dia Nacional do Livro Infantil (18 de abril), a Caravana Mekukradjá, projeto que traz visibilidade à literatura indígena, chega a São Paulo. Entre os dias 21 e 22 de abril, na Caixa Cultural São Paulo, o evento é caracterizado como uma vivência cultural que envolve contação de histórias, apresentações de dança, cantos, pinturas corporais, e conversas com autores indígenas.

Entre os escritores que estarão presentes está Daniel Munduruku, vencedor do Prêmio Jabuti em 2017 e diretor do Instituto UKA – Casa dos Saberes Ancestrais. Daniel tem dezenas de publicações infanto-juvenis, e idealizou o projeto da Caravana Mekukradjá com o objetivo de transmitir as vivências dos povos indígenas para a sociedade ocidental.

Graduado em filosofia, história e psicologia, e doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP), Daniel viveu na Aldeia Maracanã, do povo Munduruku, no Pará, até os 15 anos, quando mudou-se para a capital Belém. Em entrevista ao Brasil de Fato, ele contou que considera sua literatura engajada com mudanças sociais.

“Com isso, muda um pouco a realidade e relação das pessoas com os saberes indígenas. Nossa ideia, efetivamente, é aproximar as experiências de humanidade”, afirmou.

A Caravana Mekukradjá já passou por outras cidades brasileiras, como Manaus (AM), Rio e Janeiro (RJ), Naque (MG), Lorena e Valinhos (SP). Além de Daniel, esta edição do evento contará com a presença de Auriele Tabajara, poetisa e cordelista pertencente à etnia Tabajara e Kalabaça; Cristine Takuá, professora na Escola Estadual Indígena Txeru Ba’e e Kuai’; e Cristino Wapichana, contador de histórias e membro do povo Wapichana, de Roraima.

Confira a entrevista completa:

Brasil de Fato: Como surgiu o projeto da Caravana Mekukradjá e como tem sido a recepção do público?

Daniel Munduruku: Esse projeto da Caravana Mekukradjá nasceu com o objetivo primeiro de difusão da literatura indígena, fazer com que as pessoas a entendessem de maneira diferenciada, da maneira como entendemos. Para nós a literatura não é apenas o texto escrito, mas um grande movimento que vai para além. Então fazemos essa Caravana não apenas para mostrar uma produção literária, mas para mostrar uma cultura literária dos povos indígenas, que envolve muitas outras manifestações, como a dança, o grafismo, os cantos, as rezas, os rituais, a cultura material.O nome ‘Mekukradjá’, uma palavra da língua Kayapó que significa ‘transmissão de saberes’. Entendemos esse movimento como uma transmissão de todos os saberes indígenas, inclusive da literatura tradicional como o ocidente entende. Ela tem sido naturalmente muito bem recebida por onde tem passado, porque não se prende à uma retórica literária, ela faz as pessoas se sentirem parte desse universo indígena, que é o universo de todos nós brasileiros. Por isso ela causa impacto e cumpre o papel dela de provocar esse pensamento ocidental e linear que temos, que olha para a realidade apenas como uma linha do tempo. As pessoas começam a perceber que existem outras possibilidades de circularmos nesse mundo, que não apenas a circulação de mercadoria, produção, mas também de existência, uma existência como forma de resistência.

Qual a importância dessa transmissão de saberes por meio da literatura?

Eu considero essa literatura seja comprometida com uma mudança de sociedade, uma literatura engajada, no sentido de que não queremos que as pessoas olhem para nós que produzimos a literatura como seres fora do eixo. Mas que estamos incluídos dentro de uma sociedade, indígena, mas dentro da sociedade brasileira como um todo. Com isso, muda um pouco a realidade e a relação das pessoas com os saberes indígenas, incluindo os saberes sobre a própria vida. Nossa ideia, efetivamente, é aproximar essas experiências de humanidade. As 305 formas de humanidade que existem no Brasil, e são alimentadas pelos povos indígenas, fazendo um encontro com a forma de humanidade que o próprio ocidente desenvolveu, que é questionada, como toda existência humana, mas que tem também seus aspectos positivos. É uma tentativa de unir diferentes saberes para construirmos, efetivamente, um mundo onde caiba todo mundo.

Você acha que essa importância se torna maior na atual conjuntura política? Que os indígenas estão mais ameaçados?

O mês de abril normalmente é um mês em que se dá mais visibilidade às questões indígenas por conta do tal Dia do Índio. Mas a resistência indígena vai completar, na semana que vem, 508 anos. Não tem sido fácil em nenhum momento desses séculos. Hoje existe uma violência que é institucional, alimentada pelo próprio estado brasileiro, pelos meios de comunicação e pelo sistema econômico que vivemos. Hoje em dia existem novas modalidades de agressão contra os indígenas, uma agressão favorecida por um discurso de ódio, também alimentado pelas redes sociais, em que as pessoas falam o que querem sem mostrar o rosto. Elas alimentam um ódio gratuito pelas culturas e tradições ancestrais no Brasil. E hoje o agronegócio é o grande inimigo da sociedade brasileira, mas a sociedade brasileira acha que são é amigo, por conta do discurso econômico que ele cria, e que gera nas pessoas uma falsa ideia de crescimento. Então, nós indígenas estamos atentos para isso. Para essas novas linguagens que nossos inimigos usam para tentar convencer a sociedade brasileira que somos os inimigos da sociedade. Mas o inimigo é o próprio sistema econômico, de destruição ambiental, da agricultura familiar, de todo um contingente social que não está dentro desse sistema maior. Então penso que temos que continuar nossa resistência, que é nossa forma política de sobreviver, e temos que nos atentar para essas novas linguagens e dominá-las. Nesse sentido, a literatura é em si uma nova linguagem da qual estamos tomando conhecimento e construindo um movimento que permite que as pessoas olhem para a gente não da forma como querem olhar, mas como somos de fato.

Como a literatura te ajudou, na sua trajetória, contra esse preconceito e violência?

Eu diria que a literatura foi uma descoberta para mim, eu descobri que sabia e podia escrever, e de forma com que as pessoas pudessem ler. Uma escrita livre de ranços e de discurso de enfrentamento, mas sim que me permite falar para as pessoas sem me colocar como vítima dessa sociedade. Não sou vítima dessa sociedade, ela está dentro de mim também, e ela nem sempre me trata como um cidadão verdadeiro. Então a literatura me permite compartilhar os conhecimentos da minha experiência de floresta, de aldeia, de comunidade, colocando outras maneiras de nos relacionarmos. A maneira que escolhemos, e pela qual lutamos para que seja mantida, é uma forma digna, honesta, ética, e queremos que as pessoas percebam. Então a literatura acaba sendo para mim uma forma de resistência também, uma forma de revisão daquilo que a minha cultura tradicional me deu. Quando eu escrevo, eu tenho que parar, olhar para a sociedade, para a minha sociedade e para as outras sociedades indígenas, para descobrir pontos que podem nos ajudar a sermos melhores humanos.


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