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1 de abril de 2018
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17:00

A história do Coronel assassinado três dias depois do golpe de 1964

Por
Sul 21
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Expulso da Aeronáutica na época do golpe de 1964, aos 92 anos, Avelino Iost viu o assassinato do amigo ter motivação política reconhecida | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Fernanda Canofre

Passava das 21h do dia 4 de abril de 1964 quando uma rajada de tiros rompeu o silêncio e ecoou nas paredes do prédio principal do V Comando Aéreo Regional (Comar), na cidade de Canoas, região metropolitana de Porto Alegre. Em seguida, se ouviu um disparo sozinho. Parecido com o estouro de uma espoleta. Vinha de uma arma de calibre pequeno, um revólver calibre .32, bem diferente da primeira arma a disparar. Poucos minutos depois, da sala do comando, onde ficava o gabinete do Brigadeiro responsável, o Coronel Alfeu de Alcântara Monteiro saiu carregado e deixando um rastro de sangue pelo caminho.

Havia passado três dias desde que o governo de João Goulart tinha sido derrubado por um golpe militar. Num momento de polarização ideológica, o presidente representava “o perigo comunista” que precisava ser detido. Com a informação de que uma armada dos Estados Unidos já estava mobilizada para apoiar os golpistas, no dia 2 de abril, Jango decidiu deixar o país e evitar uma guerra civil. Naquela noite do dia 4, o Marechal Humberto Castelo Branco já ocupava oficialmente a Presidência.

Antes que pudesse entender o que estava acontecendo, logo depois da rajada de tiros, o Tenente Coronel Avelino Iost, 39 anos, amigo próximo do Coronel Alfeu, se viu cercado. De memória, ele conta que cinco oficiais, segurando armas mais modernas que as normalmente usadas pelas Forças brasileiras, apontavam para ele. Quando ergueu os olhos, viu Alfeu sendo carregado, descendo pelas escadas.

Cinquenta e quatro anos depois daquela noite, Seu Avelino não lembra quantos foram os tiros que mataram Alfeu. Lembra apenas que todos foram na região do tronco. “Eles atiraram pra matar mesmo. Quando ele desceu a escada, a quantidade de sangue era tão grande… Não tinha como. Vi descer até um trecho, mas eu não sabia ainda que o ferimento era mortal”.

Naquele momento, ninguém tinha ideia do alcance do golpe recém-instalado. Hoje, olhando para trás, Seu Avelino diz ter certeza que o grupo de oficiais enviado do Rio de Janeiro para fazer a transmissão do cargo de comando, na Base Aérea de Canoas, já veio com ordem de eliminar o Coronel. “Queriam era matar ele. Era sempre uma pedra no sapato, porque ele não era de dobrar opinião”, diz.

Conhecendo o temperamento do amigo, ele acredita “seguramente, que Alfeu disse alguma coisa” pouco antes de morrer, e tem certeza que não foi ele quem sacou a arma primeiro. Uma versão criada pelo regime que imperou até dezembro do ano passado. 

Mais de meio século depois, uma decisão do juiz Fabio Hassen Ismael, da Justiça Federal no Rio Grande do Sul, sobre uma ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal (MPF) contra a União, confirmou o que Seu Avelino repetiu a vida inteira. A morte do Coronel Alfeu teve motivação político-ideológica, “em contexto de violação a direitos humanos”, por não concordar com o novo regime.

A versão apresentada pelo inquérito da época alegava que o Major que matou Alfeu havia disparado por legítima defesa, depois que ele puxou a arma. O oficial foi absolvido pelo crime. Depoimentos de testemunhas e análise das armas usadas, porém, levaram à conclusão de que “a vítima só teria empunhado sua arma após receber os primeiros tiros disparados pelo oficial, que estaria fora de seu campo de visão”.

O juiz determinou ainda que a União retifique os dados de registros civis, militares e da Rede de Integração Nacional de Informações de Segurança Pública, Justiça e Fiscalização (Infoseg) sobre o caso. 

A decisão pode ter recurso no Tribunal Regional Federal da 4ª Região.

Para Seu Avelino, porém, que ainda vive no centro de Canoas, é apenas um capítulo de justiça na longa história de resistência que ele viveu junto ao amigo.


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Depois do assassinato do Cel Alfeu, ele passou meses em um navio prisão no Rio de Janeiro | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Seu Avelino conta que conheceu Alfeu dentro da Força Aérea. O Coronel era um pouco mais velho que ele e estava um ou dois anos a sua frente. A amizade se estreitou quando ele, que era doador de sangue, ficou sabendo que o pai do Coronel precisava de doações frequentes para tratar uma doença. Avelino se ofereceu e passou a visitar a família de Alfeu todos os meses para fazer as transfusões.

Certa vez, quando passava um tempo em Curitiba, estudando para entrar na escola de oficiais, Alfeu aterrissou na cidade pilotando o avião de João Goulart. O Coronel e o presidente eram próximos. Como o tempo estava ruim, decidiram esperar um pouco no Paraná antes de seguir viagem ao Sul. “Ele me chamou, me apresentou pro Jango. Se davam muito bem os dois”, lembra sorrindo.

Avelino também se tornou uma das últimas pessoas com quem o Coronel Alfeu conversou antes de ser assassinado. A notícia de que um grupo de oficiais do Rio de Janeiro estava chegando ao Rio Grande do Sul, para transmitir o comando da Base para um Brigadeiro apontado pelo novo governo já havia se espalhado. Com o comandante indicado de Jango tendo renunciado, caberia ao Coronel Alfeu, subcomandante, receber os golpistas.

Era sobre isso que os dois conversavam enquanto tomavam uma xícara de café. 

Avelino conta que estava “tomando pulso da situação”, preocupado com o que poderia acontecer a quem se opunha ao novo governo. Alfeu o tranquilizou. “Ele disse: não te preocupa, oficiais que não são a favor, quando um golpe assume, eles transferem e tu vai servir no Pará. É bom, tu nunca serviu lá”. A região Norte era conhecida como um dos postos mais complicados dentro da Aeronáutica. “Belém não era um lugar agradável naquela época. Ele achava que eu ia pra lá e ia ter um aprendizado a mais”.

Depois da Campanha da Legalidade, comandada por Leonel Brizola em 1961, com apoio do movimento de sargentos, que garantiu que Jango tomasse posse depois da renúncia de Jânio Quadros, Canoas ficou marcada no mapa como foco de insurgência. Por isso, o novo governo deu atenção especial à Base logo nos primeiros dias. “Eu comentei com [o Alfeu], porque as ameaças dos oficiais golpistas eram visíveis. Eu era contra o golpe, porque foi um absurdo o que aconteceu”.

Depois do café, Coronel Alfeu se despediu rapidamente e seguiu para o gabinete. Avelino terminou sua xícara poucos minutos depois. Quando caminhava em direção ao prédio principal, ele lembra de estranhar ter visto um número considerável de oficiais, cerca de dez homens, caminhando poucos passos atrás dele. Os mesmos homens que poucos minutos depois o cercariam com armas no saguão.


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Na noite que o Coronel Alfeu foi assassinado, o Tenente Avelino foi preso. Primeiro, o levaram para uma sala dentro do prédio do Comando, onde ficou sozinho por algumas horas, com a porta entreaberta. Um dos únicos móveis do cômodo era uma escrivaninha de madeira simples, com uma gaveta. Avelino a abriu e encontrou um revólver comum. “Eu desconfio que colocaram ali para eu agredir eles e terem um argumento para me matar”. Logo que a ideia cruzou a cabeça, ele correu fechar a gaveta.

No dia seguinte, logo ao amanhecer, ele foi avisado de que seria levado ao Rio de Janeiro. “Quando o avião estava pronto para me conduzir, eles mandaram chamar a minha esposa e meus filhos para me despedir. Por que eu tinha que me despedir? Ali demonstraram a intenção deles”.

Depois de dois dias em um hotel de passagem, na capital carioca, no dia 7 de abril, dia do seu aniversário, Avelino foi levado ao Navio Princesa Leopoldina, uma embarcação de passageiros, com cerca de 2,8 toneladas, que o Brasil havia comprado da Espanha, dois anos antes. Atracado na Baía de Guanabara, o Leopoldina seria um dos três navios usados como centro de tortura durante a ditadura. A história foi revelada pela Comissão Nacional da Verdade há quatro anos.

Avelino conta que encontrou dentro do navio sargentos, oficiais, civis, um grupo de cerca de 100 pessoas, “gente de toda parte do Brasil”, que estava ali por ser contra o regime de alguma maneira. Ele perdeu as contas de quanto tempo permaneceu lá. O filho Roberto calcula que tenha sido entre dois e três meses.

O pior, ele diz, era aguentar a tortura psicológica de todos os dias. Nenhum contato com a família, a perda da noção de tempo, até o dia em que avisaram que ele seria solto. Sem cerimônias, do mesmo jeito que foi levado, Avelino foi jogado de volta em Canoas, sem emprego, depois de 21 anos de serviço.


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A perseguição política dentro da Aeronáutica não era novidade para o Tenente Iost. Em 1959, ele foi reprovado em uma prova porque assinou uma ata que elegeu como paraninfo da turma Juscelino Kubitscheck, o presidente eleito, que não pode tomar posse. Depois de 1961, quando fez parte da turma de sargentos que se levantou na Legalidade em apoio a Jango, foi barrado na carreira pela segunda vez.

Em um livro curto de memórias em que relembra esses episódios, Seu Avelino conta que a ficha do Serviço Nacional de Inteligência (SNI) com seu nome apontava que ele estava “politizado” e “exercia atividade político partidária no interior da Base Aérea de Canoas, em discussão dentro da Base Aérea revelou ideias comunistas”.

Em 21 anos na Força Aérea, o Tenente tinha um currículo experiente de piloto e instrutor no Aeroclube de Santa Maria, onde ajudou a formar centenas de alunos. Alguns logo se tornaram pilotos da Varig, a primeira companhia aérea criada no Brasil. Ainda assim, pouco antes do golpe, ele foi transferido do posto na Base Aérea para perto da administração do Comando, onde ficaria debaixo do olhar de oficiais.

Parte das Forças Armadas brasileiras trabalhou em uma articulação por todo o país para garantir o fim do governo de Jango, muito antes do dia 1º de abril de 1964. Tudo para impedir que 1961 se repetisse. A ideia de que o presidente era comunista estava sendo incutida há tempos nos quartéis. Qualquer movimento legalista era imediatamente ligado ao comunismo. 

Um desses articuladores era justamente o homem que matou o Coronel Alfeu. Próximo do General Olímpio Mourão Filho, que desencadeou o golpe, o Major era conhecido por um temperamento violento e grosseiro. Seu Avelino conta que, na época do movimento dos sargentos em defesa do petróleo, ele agrediu vários dos homens que foram presos. Um sargento que estava fumando, teve o cigarro arrancado da boca, com um só golpe da arma do Major.


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“Quando o avião estava pronto para me conduzir, eles mandaram chamar a minha esposa e meus filhos para me despedir. Por que eu tinha que me despedir?” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Seu Avelino não lembra direito quando ficou sabendo que Alfeu estava morto. Anos depois, ouviu de um oficial que o Major que o matou estava a postos, na porta da sala do ajudante de ordens do comandante, pronto para atirar, sem oferecer chance de defesa a ele. De outro colega, ouviu que o Coronel morreu a caminho do hospital, quando a ambulância passava perto do Aeroporto Salgado Filho, e que ele teve tempo de falar algo. “Ele disse que ele morria, mas que a alma dele era branca, não como a desses caras sujos”.

A morte do Coronel Alfeu foi uma das primeiras da ditadura e uma das únicas do primeiro ano do golpe. A ala golpista das Forças Armadas tinha aprendido a se articular e calculou cada passo até 1964. Quase não houve resistência ao regime militar, porque os oficiais abriram mão dela. Os subordinados apenas os seguiram.

Mas o Tenente Avelino, já marcado dentro da corporação como opositor e legalista, foi dos primeiros a sair. Fora do quartel, ele andava marcado. Ninguém queria empregar alguém mal visto pelo governo. Passou a vender sapatos de porta em porta, depois, enciclopédias, qualquer coisa que ajudasse a manter a família. E, volta e meia, caia outra vez preso nas mãos da repressão.

Um dos episódios aconteceu quando o filho Roberto tinha cerca de 7 anos. “Eu lembro uma vez que estávamos numa festa da igreja, na Vila Fernandes, em Canoas. A qualquer agitação política, [os militares] vinham e prendiam todo o pessoal que era vigiado. Parecia filme de espionagem. A gente estava na festa, chegou um pessoal com jipe e o levou. A gente não esquece. Numa festa, entra um bando de milico com metralhadora, armados e levam uma pessoa da família, sem dar satisfação. A festa acabou”, lembra ele.

Só em 1979, aos 54 anos, Seu Avelino Iost conseguiu reaver os direitos políticos graças, com a assinatura da Lei de Anistia. Uma lei feita para perdoar torturadores, quando a transição entre os governos fosse terminada. O regime já sabia que tinha os dias contados e preparou todo o terreno para a volta dos civis.

A uma semana de completar 93 anos, o ex-Tenente coça a cabeça tentando lembrar as expressões exatas que ouvia o amigo Alfeu usando. Ele garante que eram parte “tão importante” de quem ele foi. Embora a memória às vezes falhe, Seu Avelino continua seguindo todas as movimentações da política brasileira com os olhos de quem vê a História sempre se repetir.

“Esse [presidente] atual [Michel Temer, MDB], não devia nem ocupar aquele lugar. Mas ele é um indivíduo muito inteligente e soube conduzir a força política para assumir”, avalia. Para Jango, ele diz, faltou darem um pouco mais de tempo. Essa coisa por vezes demorada que, no Brasil, precisou de 30 anos de democracia para reconhecer o assassinato de um de seus melhores amigos.


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