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24 de março de 2018
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12:01

‘Uma boa parte dos policiais não se sente sujeito de direitos humanos’, diz policial civil de projeto social

Por
Sul 21
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“O desafio que a gente tem é sair de um modelo construído ao longo do anos – a gente está falando, no Rio, de uma instituição bicentenária – que está forjada num determinado espírito e que hoje exige uma outra constituição” | Foto: Annie Castro/Sul21

Fernanda Canofre

Com 15 anos de carreira dentro da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Beto Chaves se viu perto de morrer em duas operações. Ele viu matarem crianças, jovens e bandidos veteranos no crime, se despediu de colegas que caíram em ação. Achou que o caminho para ver tudo mudar estava em aproximar a Polícia – ou melhor, os policiais – de jovens que logo poderiam encontrá-la numa situação sem diálogo.

Foi assim que surgiu a ideia do projeto Papo de Responsa, que leva policiais para escolas, especialmente de ensino médio, para conversar com jovens sobre  prevenção às drogas, violência, o papel do policial na sociedade, bullying e o que mais o contexto no qual a comunidade está inserida quiser falar.

“A gente tem o caráter de associar as pessoas das pessoas. O desafio que a gente tem é de fazer as relações humanas acontecerem. Desse lugar que nós falamos, que é a instituição policial, fica mais difícil de fazer isso acontecer, por conta desse lugar que falamos que é a polícia, pelas resistências naturais que as pessoas têm a ela”, diz Chaves, que hoje tem dedicação integral ao projeto.

O Papo, que nasceu no Rio, já está sendo colocado em prática no Espírito Santo e no Rio Grande do Sul e tem planos de se expandir para Rio Grande do Norte e Sergipe. Aqui, desde 2016, quando ele chegou pela primeira vez, 34 mil pessoas de Porto Alegre e região metropolitana já participaram como ouvintes.

Esta semana, ele esteve no RS pela segunda vez para trabalhar com a formação de policiais civis que poderão trabalhar como multiplicadores do projeto pelo interior do Estado. Beto, que conheceu a vereadora assassinada no dia 14 de março, Marielle Franco (PSOL), falou com o Sul21 sobre a importância de construir pontes entre a segurança e a comunidade e o que o trabalho dela significava no contexto do Rio:

“D. João cria um embrião dessa instituição, para proteger o povo ou garantir direitos? Não, é para se proteger” | Foto: Annie Castro/Sul21

Sul21: Como surgiu o Papo de Responsa? Foi uma iniciativa de dentro da própria Polícia Civil?

Beto Chaves: Foi uma iniciativa de agentes de dentro da corporação. Muitos de nós, agentes públicos, fazemos concurso com o ideal de mudar o mundo. Eu, muito novo na Polícia, na minha segunda operação policial, vi morrerem três meninos. Eles atiraram muito na gente, a gente fez o mesmo. No final do dia, tinha três meninos mortos. Um tinha 16 anos, outro tinha acabado de fazer 18 e outro 19. Jovens negros, favelados, baixíssima escolaridade, família fragmentada, perfil de quem está preso hoje no país. Eu vi nos policiais orgulho, não porque tínhamos tirado a vida de alguém, mas porque, na cultura policialesca, a missão estava cumprida. “São menos três fuzis, são menos três bandidos, que bom que foram eles”. Eu vi alguma indiferença no rosto de outros policiais, porque tinham clareza que aqueles não eram os primeiros e não seriam os últimos. Na minha cabeça, de jovem policial, fiquei inquieto e comecei a pensar junto com um colega em formas de romper esse status quo. A instituição policial mais antiga do Brasil é a Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro. Se olharmos criticamente para nossa instituição ou para as polícias no resto do nosso país, a gente vai se ver um pouco como capitão-do-mato. E eu não sou um capitão-do-mato. Eu represento um grupo de policiais, bastante significativo, que não se considera capitão-do-mato. Mas a aparência que a gente tem é essa.

Sul21: Isso está na formação das polícias?

Beto: Não é na formação, é no dia a dia. Vamos olhar quem está preso, vamos olhar como funciona o Judiciário e o sistema criminal, pensar criticamente. Fomos o último país a abolir a escravidão, isso repercute até hoje. Não é à toa que as cotas, uma série de instrumentos chegaram para tentar equalizar, de certa forma, esse cenário. Nós, policiais, a despeito do que se pensa, somos garantidores de direitos.  O desafio que a gente tem é sair de um modelo construído ao longo do anos – a gente está falando, no Rio, de uma instituição bicentenária – que está forjada num determinado espírito e que hoje exige uma outra constituição. Pode não parecer, mas há um exercício gigantesco das polícias no Brasil para transformar essa atuação. Qual a identidade policial que a gente tem? Quando é com os bandidos eu quero que seja um pitbull, mas e quando é comigo? Eu quero um policial super educado, bom, etc. Qual a identidade que eu tenho no final do dia?

Sul21: Várias pesquisas recentes mostram que a sociedade brasileira, em sua essência, é punitivista. A gente usa muito linguajar de guerra para descrever os problemas da segurança pública interna. O que criou essa cultura?

Beto: Acho que são algumas coisas. Primeiro ponto é uma análise histórica de como a gente nasce. Tem a ver com a vinda da família real, que veio fugindo das tropas de Napoleão Bonaparte. Quando eles chegam aqui, se dão conta que não é Lisboa, que não é o Porto. Tem aí um choque de cultura e a polícia nasce nesse momento. D. João cria um embrião dessa instituição, para proteger o povo ou garantir direitos? Não, é para se proteger. Se a gente der um pulo na História, na época da ditadura militar, as polícias eram utilizadas para proteger a democracia e cidadania? Não, elas defendiam o poder constituído. Já a Polícia Militar nasce um ano depois da Civil, mas ela era aquartelada. Só na década de 1960 que ela começa a fazer uma atuação mais ostensiva. Se der mais um pulo em 2013, nas manifestações que não eram por 20 centavos: qual é o meu papel como policial ou da Brigada, do policiamento militar? A proteção do seu livre direito de se manifestar. Mas qual foi a instituição que foi mandada para controlar o espaço? E isso foi ontem.

Sul21: Na prática, como funciona o Papo de Responsa?

“As polícias nascem para dizer não, porque as pessoas agem incivilizadamente” | Foto: Annie Castro/Sul21

Beto: Por demanda das escolas, que carecem de atividades extracurriculares e de ajuda. A gente faz reunião com a direção, com orientação pedagógica, para entender o contexto em que aquela escola está inserida. Cada escola tem o seu jeito de ser. Temos um papo com os professores, para explicar a metodologia e ouvir os tipos de demandas que eles têm, que pode ser drogas, bullying, crimes na internet, prevenção.

Sul21: Tu disseste que cada escola tem a sua particularidade. Como é quando vocês vão para regiões em que a relação da comunidade com a polícia já tem um histórico mais complicado?

Beto: É mais difícil, sem dúvida. Até porque a gente escolheu assumir a representação. É fácil você ir assim, vestido à paisana, tentar gerar uma aproximação. Mas a gente escolheu mostrar a instituição que a gente representa, para mostrar que há inúmeras possibilidades de se fazer polícia. Há um desafio externo, quando você vai a esses lugares de mais vulnerabilidade, onde encontro com a polícia é mais tenso. Normalmente, eu brinco que vou começar no modo hard e pergunto o que acham da polícia. De repente, um jovem fala: tem que morrer. Tudo o que você quer é que ele responda, porque ele está te dando uma possibilidade de conversar. Ele fala: é tudo ladrão, safado, corrupto, arbitrário, truculento. A gente absorve aquilo porque já sabe que a visão de fora para dentro, sobretudo nesses ambientes mais delicados, mais fragilizados, é mais tensa. Daí a gente para e pede para eles pensarem: o que vem na cabeça da maioria das pessoas quando pensam em alunos de escola pública? Eles falam: pobre, preto, favelado, mal educado, burro. A gente tenta dar um contraponto para eles perceberem que não se pode generalizar, que em algum momento eles podem ter encontrado policiais que são assim, mas nem todos são. Você diminui aquela tensão e, no final, eles percebem que a gente não quer convencer de que a polícia é legal, que a gente quer dar mais informação para eles.

Sul21: Como se constrói confiança entre população e polícia?

Beto: Acho que tem vários caminhos e o principal é ser honesto. Falo de honestidade de assumir nossas mazelas. Se olhar a Polícia Civil do Rio Grande do Sul, temos pouco mais de 5 mil homens e mulheres, uma escassez de recursos humanos para atender 497 municípios. Somos uma instituição que trabalha 24 horas por dia, 7 dias por semana. (O Estado tem o mesmo efetivo desde 1984, enquanto a população quadruplicou). Assim dá para entender porque a gente não consegue elucidar diversos crimes. As polícias nascem para dizer não, porque as pessoas agem incivilizadamente. Você avança o sinal vermelho, o policial te aplica uma multa e eu me aborreço com ele. Essa relação de confiança a gente cria todos os dias, porque senão é impossível entregar uma boa mensagem.

Sul21: Como os próprios policiais acabam pagando pelas falhas do sistema?

Beto: Eu participei das operações de pacificação do Complexo do Alemão, gravei um documentário lá e uma semana depois estava morando na comunidade. Nas polícias há um processo, o problema é que a gente quer tudo agora. A Marielle [Franco, vereadora assassinada no dia 14 de março] era minha amiga, frequentou o Papo de Responsa, teve 46 mil votos, foi eleita. A Marielle merece nosso empenho sério, para que a gente possa fazer nosso melhor trabalho, sem pressão.

Sul21: Como era a relação dela com as polícias?

Beto: Por vezes o discurso ecoa como “a Polícia”, mas é o policial, os policiais. Cada vez que se coloca de outra maneira, se generaliza. Marielle não era contra a polícia, ela era contra ação de policiais que mereciam questionamentos. Por vezes, a ação até é legítima, mas merece ser questionada também. Nós somos servidores públicos, a gente deve transparência.

Sul21: Essa confusão muitas vezes se dá porque a pauta das polícias, no Brasil, é vista como oposta aos direitos humanos. Por que existe esse ideia?

Beto: Acho que tem um fato histórico. Você sai de uma ditadura militar e tem desejo de direitos humanos, civis, garantias individuais, que nós não tínhamos. Se você olhar a Constituição de 1988 vai ver que ela tem quase 400 artigos, é gigante, porque desejava-se garantir que não passaríamos mais pelo que passamos. Nessa brincadeira, os direitos humanos têm uma atuação que desequilibra o jogo. Quando você conversa com uma boa parte dos policiais, eles não se sentem sujeitos de direitos humanos.

Sul21: Por quê?

“Marielle faz parte de um grupo de direitos humanos que agora está equilibrando o jogo” | Foto: Annie Castro/Sul21

Beto: Se você vai numa regimento de polícia montada, analisar friamente o que acontece ali, os cavalos têm mais direitos do que os policiais. Eles trabalham menos do que os policiais, por vezes comem até melhor, tem veterinário, dieta. Quando o policial vê, ele pensa: porra, você deve estar de brincadeira com essa coisa de direitos humanos? Eu quase morri duas vezes em operação policial, reagi a duas tentativas de assalto e minha casa foi invadida por cinco bandidos. Nas operações, quando eu estava trabalhando a serviço da sociedade, nenhum psicólogo, nenhum assistente social, ninguém da Comissão de Direitos Humanos foi conversar comigo – mesmo depois que eu vi meu amigo ser morto com um tiro na cabeça. Marielle faz parte de um grupo de direitos humanos que agora está equilibrando o jogo.

Sul21: O teu projeto tenta indicar aos jovens que certas escolhas levam a certos caminhos, mas também tenta mudar a relação deles com a polícia?

Beto: É, acaba mudando por consequência. Nós mudamos porque conversamos de forma horizontal, porque fazemos o que fazemos. A verdade é que toda vez que somos policialescos, por vezes isso é pejorativo, mas nesse caso não, a gente está com a razão. O que a gente faz todos os dias nas salas de aula é conectar essa razão com o coração. Não tem dogma naquilo que a gente faz. Quando você ouvir algum de nós falando de drogas, não vai ouvir que droga é ruim. Talvez eu traga inúmeros exemplos para que olhem e comecem a pensar por si. A decisão final é de quem? A gente costuma dizer o seguinte: o papo é nosso, a responsa é de vocês.


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