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4 de março de 2018
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20:02

ONG cria projeto para levantar dados da população LGBT nas prisões do Brasil

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Sul 21
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Lançamento da Rede Passagens, projeto da ONG Somos sobre LGBT nas prisões | Foto: Divulgação

Fernanda Canofre

Ter o cabelo raspado e as unhas cortadas, ficar sem acesso ao tratamento com hormônios ou a roupas que correspondem a sua identidade de gênero, sofrer estupros e agressões, serem obrigadas a servir de mulas para o tráfico de drogas. Essas são algumas das experiências comuns para pessoas LGBT que vivem nas prisões do Brasil. Um dos países mais violentos do mundo para pessoas trans e travestis reproduz dentro de cadeias e presídios, com ainda mais violência, preconceitos latentes na sociedade do lado de fora.

Como acontece com casos de homo e transfobia em dados oficiais, números sobre essa população também não aparecem no Infopen, o levantamento nacional de informações penitenciárias do Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Para tentar traçar um censo para quem é invisível no sistema, a ONG Somos, de Porto Alegre, lançou nesta sábado (03) o projeto “Passagens – Rede de Apoio a LGBTs nas prisões”. A iniciativa foi contemplada em um edital do Fundo Brasileiro de Direitos Humanos, para um ano e meio de trabalho, em oito prisões em diferentes estados.

“Esse projeto surge da nossa necessidade de ter dados. O Brasil não tem dados, não sabe quantas pessoas LGBT estão presas, por que estão presas, como são as experiências de violência, se são compartilhadas ou individualizadas, tudo isso surge da nossa necessidade de pensar essa realidade e de fortalecer os agentes e movimentos sociais para compor uma rede de apoio a essas pessoas”, diz Guilherme Gomes, integrante do Somos.

Inicialmente, o projeto irá trabalhar em presídios masculinos, onde relatos de violência são mais frequentes. O grupo, porém, já tem planos para um projeto piloto dentro do Presídio Feminino Madre Pelletier, em Porto Alegre.

Guilherme (segundo à esquerda), com demais participantes do debate de lançamento do projeto: a jornalista Carol Anchieta, Major Dagoberto Costa e a ativista Marcelly Malta | Foto: Caio Klein/Divulgação

Guilherme é autor do livro “Travestis e prisões: experiência social e mecanismos particulares de encarceramento no Brasil” e pesquisou o tema em seu mestrado e doutorado em Serviço Social. Para ele, uma das diferenças das prisões brasileiras – e da América Latina em geral – é a violência dentro das unidades. Além de determinações que garantem direitos.

“As pessoas trans aqui não são pensadas como sujeitos de direitos, quando estão presas. Nem homossexuais. São proibidas de usar hormônios, de terem cuidados de saúde específicos que elas precisam. Elas não podem mais usar o nome social pelo qual se identificam. Isso é diferente do caso europeu ou nos Estados Unidos. Lá eles compreendem que elas precisam de cuidados de saúde e direitos básicos de cidadania e dignidade”, explica.

A única referência à população LGBT na base de dados do Infopen está na pergunta: “Há ala ou cela destinadas exclusivamente às pessoas privadas de liberdade que se declarem lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT)?”. Entre as 1.215 unidades prisionais que aparecem no levantamento, 64 responderam que sim – 54 delas por oferecerem apenas cela separada.

No Rio Grande do Sul, sete instituições dizem ter alas ou celas exclusivas para LGBTs. Segundo Guilherme, nas unidades sem estes espaços, é comum que travestis e trans fiquem misturadas a outros presos ou que sejam encaminhadas à solitárias ou à enfermaria do presídio. Também é comum que sejam colocadas na mesma ala de presos que respondem por crimes sexuais. O chamado “seguro” das cadeias. Para onde são encaminhadas pessoas que os demais presos não aceitam entre eles.

“É de chorar, não queiram ver o que as travestis passam. Sabem o que o diretor [do Complexo Penitenciário da Papuda, em São Paulo] disse pra gente? ‘Podem levar para casa, nós não queremos esse tipo de viado aqui’. O Presídio jamais é um lugar que vai conseguir fazer alguma coisa por essas pessoas”, diz Marcelly Malta, presidente da ONG gaúcha Igualdade. Ela visitou diversos presídios pelo país, acompanhando a situação de trans e travestis.

Lançamento da Rede Passagens, projeto da ONG Somos sobre LGBT nas prisões | Foto: Fernanda Canofre/Sul21

A galeria H do Central

Em 2012, Marcelly também participou de uma iniciativa pioneira no estado. Ela ajudou a pensar a galeria do Presídio Central de Porto Alegre destinada para travestis e mulheres trans, inaugurada naquele ano. A terceira do Brasil.

Diretor do Central na época, o Major Dagoberto Costa conta que o sistema foi se adaptando à medida que as demandas foram surgindo. Um dia, ele foi procurado por Marcelly porque estava sendo proibida a entrada de roupas femininas e lingerie para as travestis e trans presas. Como o Central é um presídio masculino, os agentes decidiram que só roupas masculinas poderiam entrar. Assim, todo o sistema teve de ser readequado. Com o tempo, as reclamações ficaram mais graves.

“Principalmente por violência dos demais integrantes da massa carcerária contra a população LGBT. Essa violência consistia em espancamentos, violência sexual, cortavam os cabelos e as unhas, era um convívio muito difícil, porque não aceitavam homossexuais. A gente precisou separar para evitar que alguém morresse”, lembra ele.

Para conseguir criar a ala exclusiva, o então diretor enfrentou resistência de todos os lados. Primeiro, entre os policiais militares que trabalhavam no Presídio. Depois, entre os presos que tiveram de deixar a área destinada à galeria das travestis. O local se tornou um dos mais “tranquilos” do presídio que já foi considerado “o pior do Brasil” por uma comissão da Câmara dos Deputados.

Além das travestis, seus “maridos” também são encaminhados para a ala especial. Como em outras prisões, eles têm de assinar um termo reconhecendo sua orientação sexual e que estão em um relacionamento. Por um tempo, a administração tentou ainda colocar homens gays na galeria, mas os problemas apareceram logo. As travestis presas alegavam que os homens estavam tentando tomar “a prefeitura” da galeria.

Quando deixou o Presídio Central, o Major diz que a ala tinha pouco mais de 30 pessoas vivendo em oito celas. Uma configuração rara, que cumpriria o que é estipulado pela Lei de Execução Penal (LEP), num estado que tem cerca de 40 mil presos para 23 mil vagas. O Central, que teve o nome alterado para Cadeia Pública de Porto Alegre, tem hoje 4.576 presos, com capacidade projetada para 1.824 vagas.

Major Dagoberto, que hoje trabalha na Restinga, diz não achar o que fez “incrível”. “É uma questão de boa vontade. Precisa de ações governamentais, não tem que ser ação isolada de um diretor, de uma casa. Isso tem que partir do governo do Estado, passando pela Susepe, como uma política de Estado. Tem que passar por sensibilização, capacitações, cursos e tornar isso políticas consolidadas. Ainda é muito frágil”.

O modelo ideal

Lançamento da Rede Passagens, projeto da ONG Somos sobre LGBT nas prisões | Foto: Fernanda Canofre/Sul21

No dia 20 de fevereiro, uma decisão do ministro Luiz Barroso, no Supremo Tribunal Federal (STF), de pedir transferência de duas travestis para um presídio feminino ganhou as manchetes. As duas estavam em uma cela com 31 homens desde 2016. Apesar do texto confundir identidade de gênero com orientação sexual, o ministro cita na decisão resoluções do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo.

Porém, nem toda travesti ou mulher trans quer ser encaminhada a presídios femininos. O critério adotado por muitos estados é seguir o que diz o documento da pessoa presa.

“O ideal seria ouvir as pessoas. A gente tem desde 2014 um resolução do governo federal que estabelece que pessoas trans devem ir a estabelecimentos de acordo com seu gênero. Eu não concordo que isso seja o ideal. Tem pessoas trans que vão dizer que querem ir de acordo com o gênero, tem aquelas que vão dizer que se forem elas perdem o direito de ficar com seus companheiros”, diz Guilherme.

Para ele, que pesquisou sistemas prisionais do mundo todo, as políticas que poderiam servir como referência para o Brasil são as adotadas por Canadá e Austrália. Além de documentos que regulamentam o tratamento de LGBTs nas prisões, eles ainda permitem que se siga o tratamento hormonal e mesmo a realização de cirurgias de redesignação de gênero, enquanto cumprem pena.

“As travestis não recebem visitas, não recebem um abraço. Podem ter feito o que quiser, isso nunca me interessou, me interessa o ser humano. Como deveria ser com o Estado”, diz Marcelly.

Debate aconteceu na Aldeia, em Porto Alegre, neste sábado | Foto: Caio Klein/Divulgação

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