Últimas Notícias > Geral > Areazero
|
1 de março de 2018
|
20:11

‘Não há representatividade para uma geração inteira’: campanha leva jovens da periferia para assistir Pantera Negra

Exibição do filme Pantera Negra. Foto: Giovana Fleck/Sul21
Exibição do filme Pantera Negra. Foto: Giovana Fleck/Sul21

Por Annie Castro e Giovana Fleck

“É muito legal tá aqui”. Ao ver várias câmeras e microfones, vozes infantis repetiam, a passos apressados, essa frase. Eles queriam contar para todos que estavam em frente à uma das entradas principais do Shopping Praia de Belas, em Porto Alegre, o quão felizes estavam por estarem ali. Mas a euforia das crianças começou muito antes daquele momento. Desde a manhã da última terça-feira (17), os pequenos moradores do condomínio Princesa Isabel, no bairro Azenha, já queriam saber quando chegaria o ônibus que, naquela tarde, os levaria até o shopping para assistir ao filme Pantera Negra.

Eles não foram os únicos que estavam ansiosos para a hora de ir ao cinema. Membros de mais quatro comunidades periféricas da capital – Cabo Rocha, Vila Cruzeiro, Quilombo do Areal e Morro da Maria da Conceição – também aguardavam por esse momento. Mais de 200 crianças, jovens e adultos das comunidades entraram no cinema rompendo a regularidade das tardes de terça-feira de shoppings. As escadas rolantes foram preenchidas por grupos de amigos e famílias com crianças que abanavam para uma maioria branca que observavam nos três andares pelos quais passaram.

“Por que você veio ao cinema hoje?”, perguntamos para Lauren, de 11 anos. “Por que a Vitória deu uma ficha para as nossas mães nos inscreverem”, ela explica. Lauren gosta de filmes de super heróis. “Mas eu tava vendo um esses dias e era todo mundo branco”, afirma, com expressão de espanto no rosto. “Por que Pantera Negra é um filme importante?”. “Porque a maioria dos heróis são brancos”, Lauren responde, segurando sua pipoca e o refrigerante. A Vitória a quem ela se referia é a estudante de pedagogia Vitória Sant’Anna Silva, de 22 anos, responsável por criar a campanha que possibilitou que Lauren e outras crianças e jovens da periferia da cidade lotassem o hall de entrada do cinema naquela tarde.

Vitória, que é moradora do Princesa Isabel, viu o filme logo que ele estreou. Em seus mais de 20 anos, nunca tinha assistido a uma megaprodução feita e interpretada por uma equipe majoritariamente negra. Ao sair da sessão, não teve dúvidas: precisava levar as crianças que moravam no Princesa Isabel para o cinema. Mas, como? Mesmo com a meia entrada, cada ingresso sairia, pelo menos, R$ 14. Sem poder arcar com os custos sozinha, Vitória iniciou uma campanha através de seu perfil no Facebook. Rapidamente, a iniciativa somou apoiadores e, em pouco tempo, havia arrecadado valor suficiente para levar 210 pessoas. “Sempre que eu vou a algum espaço cultural eu fico pensando em quantas crianças têm a oportunidade de estar nesse ambiente. Sou muito privilegiada, tenho acesso ao cinema, ao teatro, a parques, e tem crianças que moram no mesmo lugar que eu e que ficam e crescem ali, só vão para a escola e voltam”, conta Vitória.

“Sou muito privilegiada, tenho acesso ao cinema, ao teatro, a parques, e tem crianças que moram no mesmo lugar que eu e que ficam e crescem ali, só vão para a escola e voltam”, conta Vitória. Foto: Giovana Fleck/Sul21

Apesar do retorno positivo, a campanha foi atacada por usuários que acusavam Vitória de estar sendo racista, já que a iniciativa era voltada para crianças negras. Na terça-feira anterior (20), a publicação que continha informações sobre a iniciativa foi excluída pelo Facebook por estar, supostamente, “violando os termos da comunidade”. Vitória ainda teve seu perfil bloqueado pela plataforma e, por conta disso, não conseguia responder ou comentar nenhuma das mensagens que recebia – muitas delas eram de pessoas querendo saber como doar o valor dos ingressos. Na mesma semana, a estudante foi desbloqueada e seus posts foram restaurados. De acordo com a assessoria do Facebook no Brasil, a remoção havia ocorrido por um erro interno.

Vitória chega com as crianças ao Praia de Belas. Foto: Eduardo Plinio/Reprodução: Facebook

A campanha inicialmente focava em crianças e jovens negros de 8 a 14 anos. Porém, o valor arrecadado possibilitou que, além delas, maiores de 15 anos, incluindo pais e familiares e, também, crianças brancas que moram nas comunidades, pudessem participar do evento. Segundo Vitória, alguns dos adultos nunca tinham ido ao cinema. “Foi uma maneira de dar oportunidade para eles também”, afirma.

Cintia de Souza gosta de ir ao cinema, mas não costuma frequentar os shoppings. Vizinha de Vitória, na tarde do dia 27, foi acompanhar os três sobrinhos. Com sorriso no rosto ela fala sobre a reação das crianças durante o filme, que “foi maravilhosa”. Enquanto Cintia conta que o filme foi “muito falado” no Princesa Isabel, o sobrinho Cleber Matheus, de 13 anos, interrompe a tia e afirma: “Ele é o único super herói negro. Pode ver que não existe outro na Marvel (Studios) ou na DC (Comics), só o Pantera Negra”.

Cleber, que é apaixonado por histórias e filmes de super heróis, conta ter visto vários filmes da produtora, como Homem de Ferro e Vingadores. Quando criança, gostava de brincar como o Hulk – personagem branco que altera sua forma por conta de um erro científico e se transforma em um monstro verde. Mas agora, diz ele, não brinca mais; apenas conversa com os amigos sobre os filmes que assistiu. “O que tu vai comentar sobre o Pantera Negra?”. “Vou comentar que ele é o único super herói negro, e que esse filme veio bem nesse assunto de racismo”, afirma.

Segundo Vitória, a preocupação com questões raciais permaneceu no centro da campanha. Não apenas pela representatividade, mas como resistência aos ataques que sofreu nas redes sociais. Assim, ela conta que a iniciativa proporcionou que, além de irem ao cinema, os participantes pudessem representar e debater a simbologia de preencherem um cinema para assistir a um filme onde a temática racial é fundamental.

Para além do condomínio onde Cintia e os sobrinhos moram, Pantera Negra está sendo falado e debatido ao redor do mundo. O motivo: representatividade. O filme da Marvel Studios conta a história do príncipe T’Challa, que irá assumir o trono após a morte do pai. Wakanda, reino fictício onde a história se passa, aparentemente é uma terra pobre, isolada do mundo. Acontece que, na realidade, Wakanda é dona de uma tecnologia aprimorada. O filme mostra, ainda, raízes da cultura africana e tem o elenco majoritariamente formado por pessoas negras, que estão em papéis principais e não apenas como coadjuvantes.

Fotos: Giovana Fleck/Sul21

Por conta disso, desde que foi anunciado, Pantera Negra provocou expectativas grandiosas em todo o mundo. Isso porque a demanda por mídias centradas em grupos que não costumam ser protagonistas é enorme. No Brasil, por exemplo, a população é composta por 54% de pretos e pardos, segundo dados do IBGE. Mas na mídia em geral, os brasileiros não são representados corretamente. A pesquisa “A Cara do Cinema Nacional”, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), apontou que nos filmes nacionais, os homens negros são só 2% dos diretores e 4% dos roteiristas. Nenhuma mulher negra ocupou algum desses cargos. Ao se tratar do elenco, a falta de representatividade continua. O estudo analisou ainda produções brasileiras que alcançaram as maiores bilheterias entre 2002 e 2012. Dessas, somente 31% tinham atores negros no elenco e na maioria dos casos, eles interpretavam personagens marginalizados e estereotipados, associados à pobreza ou criminalidade.

A representatividade em Pantera Negra – que já é a 20ª maior bilheteria dos Estados Unidos, atingindo, em cerca de duas semanas de exibição, a marca de 421,8 milhões de faturamento – foi um dos motivos para Vitória querer realizar a campanha. “As crianças assistirem a um filme onde 99% do elenco é negro é muito positivo. É uma forma de elas olharem e verem que ‘nossa, nós podemos ser super heróis’. O negro, quando ele é vinculado na televisão, é o único completamente deslocado e nunca é o protagonista. Então, esse filme mostra que eles são os protagonistas, são os super heróis. Isso é muito importante para a autoestima das crianças”, afirma.

Fotos: Giovana Fleck/Sul21

Na terça-feira (27), perto das 16 horas a expectativa era visível nos rostos ao longo da enorme fila que se formou na entrada das salas do cinema. Alguns corriam, outros conversavam entre si. Um grupo de meninas se reunia aos risos para tirar selfies e registrar cada momento. Os menores ficavam quase imóveis, segurando seus combos de pipoca e refrigerante. Quem não sabia da campanha olhava com olhos curiosos, querendo entender o que estava acontecendo. Mayk da Silva Lopes conversava com os amigos. O jovem de 20 anos, morador da Vila Cruzeiro, gosta de ir no cinema, mas conta não ter muitas oportunidades em função do custo de vida. “É que nós somos pobres, […] é uma questão de oportunidade”, explica. “É um pouco da nossa cultura, da raiz negra; e [esse filme] vai mostrar um pouco da verdade que é escondida já faz muito tempo.”

Lá dentro, os burburinhos de alegria continuam. Na primeira fileira Maísa, 8 anos, já estava com o óculos 3D antes mesmo do início dos trailers. Era a primeira vez que ela ia ao cinema. Entre uma pipoca e outra afirmou estar achando tudo “muito legal”. Logo, uma moça para na frente da tela e pede silêncio: “todo mundo colocando óculos e fechando a boquinha”. Vitória não estava lá sozinha. Durante o andamento da campanha teve ajuda de mais três mulheres: a pedagoga Mariana Boeno, a educadora social Desirée Gomes e a graduanda em biblioteconomia Cristina França. No dia do filme, além delas e dos adultos moradores das comunidades, amigas e conhecidos também foram auxiliar com as crianças.

Antes mesmo de o filme começar, quando aparecem os avisos do cinema, as primeiras animações em 3D surgiram. A sala inteira se encheu de gritos de euforia e bracinhos para o alto, que tentavam alcançar as figuras que saiam para fora da tela.

Depois do filme, Teodoro Borges não queria ir embora do cinema. Ele segurava um boneco do Pantera Negra nas mãos, enquanto falava de suas partes preferidas. Com sete anos, ele abre um sorriso e tira os fios de cabelo verdes do rosto para falar que o personagem foi apresentado pela mãe. “Ela falava dele e da população negra”, conta; apertando o boneco com os dois braços contra o peito.

Com sete anos, Teodoro abre um sorriso para falar que o personagem foi apresentado pela mãe. Fotos: Giovana Fleck/Sul21

Sherol dos Santos é a mãe de Teo. Nascida na década de 1980, ela conta que sua geração foi marcada por figuras como a apresentadora Xuxa; mulheres altas, brancas, loiras e de olhos claros. “Não há representatividade para uma geração inteira”, relata. “Para nós, nunca foi possível ser bonito.” Sherol conta como sentiu a necessidade de que Teo não passasse pelas mesmas inseguranças na juventude. “Por mais que a criança viva num mundo de fantasia, falta alguma coisa. […] São coisas que tem que ser trabalhadas porque a autoestima é se enxergar e se achar bonito, se achar forte”, completa.

Sherol também fala das mulheres em Pantera Negra. No filme, são guerreiras, rainhas, cientistas – todas com cabelo natural ou carecas. Sherol observou as meninas que saíam da sessão. “Elas notaram muito o cabelo das personagens, isso pra elas é muito importante.”

Quase indo embora, um grupo de jovens se apoiava na cerca de vidro que dividia os andares do shopping. Debruçados e querendo olhar os amigos que estavam nos pisos de baixo, eles reproduziam sons e gírias africanas que viram no filme. “Acho que esse dia, [em que trouxemos] 200 crianças periféricas ao shopping – o que causou tanto estranhamento e também tantos apoios positivos – mostra que elas não estão tendo acesso ao cinema, elas não estão tendo acesso aos espaços que são ditos públicos”, conclui a organizadora Vitória.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora