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10 de fevereiro de 2018
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10:39

Com documentos retificados, homens trans precisam se apresentar obrigatoriamente às Forças Armadas

Por
Sul 21
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Com documentos retificados, homens trans precisam se apresentar obrigatoriamente às Forças Armadas
Com documentos retificados, homens trans precisam se apresentar obrigatoriamente às Forças Armadas
Vincent Goulart, integrante do coletivo Somos, teve de se apresentar às FA depois de mudar documentos | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Fernanda Canofre

Qualquer brasileiro que tenha um documento que aponte “sexo: masculino”, precisa se apresentar às Forças Armadas. Incluindo homens transgênero, como Vincent Goulart. Com 24 anos, quase dois anos depois de começar o processo de transição de gênero, ele se apresentou para o alistamento obrigatório, junto às Forças Armadas, em Venâncio Aires, região central do Rio Grande do Sul, com um grupo de mais de 40 homens cisgênero que recém completavam 18 anos.

Um mês antes, Vincent havia passado pela cirurgia de mamoplastia (para remoção das mamas). O tratamento hormonal já havia dado uma barba grossa ao seu rosto e pelos pelo corpo. Acompanhado pelo pai, ele diz que se preparou para o pior. Achou que ia sofrer com piadas e com o próprio ambiente militar, predominantemente masculino.

“Achei que ia ser horrível. Mas, todos foram muito respeitosos do início ao fim. Eles deram um número para cada um, para apresentar os documentos, depois cada um ia para o exame médico. Conversaram comigo, como eu já tinha me apresentado como trans, perguntaram se eu queria fazer separado dos outros, para que não fosse algo violento para mim. Fiquei bem surpreso com isso”, conta.

Vincent foi informado de que teria que se apresentar às Forças Armadas quando retificou seus documentos, alterando o gênero para “masculino”. Porém, além de nem todos terem acesso à informação, as leis brasileiras quanto aos direitos da população transgênero também não são claras. Tecnicamente, todo homem trans de até 45 anos teria de se apresentar para alistamento ou para retirada do certificado de reservista.

A questão fez com que a Defensoria Pública do Rio de Janeiro encaminhasse um pedido de informações ao Ministério da Defesa. Segundo a defensora Lívia Casseres, o órgão recebia muitos casos de pessoas que tinham problemas no mercado de trabalho ou por não terem o documento ou por não saberem como proceder.

“A Defensoria, de acordo com as demandas que chegam a nós, vem tentando assegurar essa igualdade a que as pessoas trans fazem jus a partir da Constituição Federal. A gente verifica nas situações práticas que a insegurança jurídica, falta de leis que garantam direitos civis da população trans, é o grande problema. Cada órgão tem um pensamento e uma interpretação diferente”, explica ela.

Segundo as Forças Armadas, para regularizar a situação, basta que a pessoa se apresente à Junta Militar mais próxima de sua residência. O cidadão será encaminhado para alistamento ou registrado como reservista, como qualquer outro homem brasileiro. No caso de mulheres trans, que fizeram a transição depois de se alistar, não é preciso nenhuma providência. O registro militar é inutilizado no momento em que os demais documentos são retificados. As que alteram seus documentos antes dos 18 anos, também são dispensadas.

A defensora aconselha ainda que, toda pessoa trans que ainda precise fazer alistamento, busque com a Defensoria Pública do seu Estado um encaminhamento por escrito, para que tenha sua privacidade respeitada e não seja exposto a nenhum tipo de revista pública. Como vem sendo feito no Rio de Janeiro.

O lado das mulheres

Quando Vincent se apresentou para as Forças Armadas, se sentiu acolhido e ouviu que, se quisesse seguir carreira na Aeronáutica (a corporação escolhida por ele), já entraria como Tenente, por ter curso superior. Uma realidade diferente da que é enfrentada por mulheres trans, que fizeram a transição enquanto já seguiam carreira militar.

Um dos casos recentes, que está na Justiça, é de uma militar que começou seu processo de transição com quatro anos de Marinha. Logo depois, ela foi encaminhada para licença-médica. Embora a corporação alegue que o afastamento não está relacionado à transexualidade, os laudos usam o código da Organização Mundial de Saúde (OMS) que faz referência a ela como transtorno. Algo que o movimento trans tenta alterar. O caso não seria exceção.

“Essas pessoas acabam sendo reformadas, aposentadas. Algumas entraram na Justiça. A minha cliente conseguiu uma liminar parcial para ser reincorporada, agora estamos aguardando a manifestação das Forças Armadas para prosseguir”, conta a advogada Maria Eduarda, que representa a militar.

Pela decisão judicial, a cliente dela terá de ser incorporada ao quadro feminino, com o direito de usar o uniforme de mulheres. No início da transição, ela teve de enfrentar várias barreiras dentro da corporação, segundo Duda, que também integra o Fórum de Trans e Travestis do RJ. Pouco antes de ser afastada, mesmo com nome social alterado, ela ainda teve de permanecer na ala masculina.

Agora, seguir na Marinha, diz a advogada, é uma escolha pela vocação. “Ela já está lá há 7 anos, tem uma história com as FA. Se ela sair, ela sai como perdedora, como uma pessoa incapaz. Eles dizem que não têm preconceito, mas não se posicionam pelo direito da população trans de trabalhar na carreira militar”.

O que dizem as Forças Armadas 

Uma ação do Ministério Público Federal também tem cobrado posicionamento das três corporações das FA sobre militares transexuais.

A Marinha possui hoje três mulheres transexuais em seu quadro e nenhum homem trans. Respondendo à pergunta do Sul21, sobre registros de pessoas que fizeram a transição, quando já estariam servindo, a corporação respondeu: “Das três acima citadas, somente uma fez a cirurgia de redesignação”. O que não é a mesma coisa. A retificação dos documentos não depende do procedimento cirúrgico.

A Força Aérea Brasileira não possui nenhum transexual servindo à corporação. Segundo a assessoria da FAB, “os critérios de seleção são objetivos e destinados à admissão de cidadãos brasileiros” e a recomendação do MPF “sobre a possibilidade de aceitação de transexuais nas Forças Armadas encontra-se em processo de análise”. A corporação destaca ainda que “não compactua, em hipótese alguma, com qualquer postura de discriminação ou preconceito dentro da Instituição”.

O Exército diz que levantamento de dados de quantas pessoas trans existem na corporação “não ocorrem”. “Exército Brasileiro não discrimina qualquer de seus integrantes, em razão de raça, credo, orientação sexual ou outro parâmetro. O respeito ao indivíduo e à dignidade da pessoa humana, em todos os níveis, é condição imprescindível ao bom relacionamento entre seus integrantes e está alinhado com os pilares da Instituição: a hierarquia e a disciplina. Cada um dos seus integrantes tem seus direitos assegurados na forma do que está previsto no ordenamento jurídico vigente”.

Para Vincent, a situação reflete mais um lado do “privilégio masculino na sociedade”. “O ideal seria que ninguém tivesse a obrigação de servir. A luta seria que nenhuma pessoa, trans ou cis, tivesse que se alistar obrigatoriamente. Quando a gente vai discutir essas coisas na sociedade, a gente não pensa nisso e é um diálogo que precisa ser feito”.


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