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6 de janeiro de 2018
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19:02

Justiça Federal recupera 11 mil processos de decisões que ajudam a contar história do RS

Por
Sul 21
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Processos trazem jornais da época, para ajudar a contar denúncias | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Fernanda Canofre

O Coronel que era dono do Centro Histórico de Porto Alegre. A cervejaria de imigrantes processada por supostamente colocar absinto na fórmula. O artista francês que falsificava moedas e as enviava do porto de Pelotas para o mundo. As prisões dos tenentes que se rebelaram contra o governo federal. Essas são algumas das histórias que a arquivista Rita Vieira da Rosa já conseguiu recuperar em meio aos 11 mil processos da Justiça Federal, que correram no Rio Grande do Sul, desde o século XIX até os anos 1980.

Mantidos durante anos pelo Arquivo Público do Rio Grande do Sul, boa parte dos documentos se encontra em estado de deterioração que impede qualquer consulta ou manuseio. Páginas coladas, papel que se desmancha ao toque, trechos que já ficaram ilegíveis. Desde dezembro de 2016, os documentos passam por um minucioso processo de restauração. Agora, os primeiros processos já começam a ser disponibilizados para o público.

Antes, mesmo estando no Arquivo, a maioria deles era desconhecida. Pilhas e pilhas de processos que foram guardados em meio a tantos outros, sem qualquer descrição ou detalhamento do conteúdo.

Parte do acervo será exibida em exposição aberta a partir do dia 8 | Foto: Guilherme Santos/Sul21

“Enquanto não tem descrição, as pessoas não sabem o que tem aqui dentro e não vêm. A ideia é fazer divulgação, a medida que vai conseguindo identificar informações”, conta Rita. “Agora, estamos fazendo o que se faz na arquivologia, pegar os que têm mais risco, depois a gente tenta localizar os outros”.

Foi assim que o processo do Coronel Francisco Pereira de Macedo Couto, que reclamava a desapropriação de suas terras (quase metade do Centro de Porto Alegre) se tornou um dos primeiros a ser restaurado. Ele fugiu da Capital, com a família, quando iniciou a Guerra dos Farrapos. Quando voltou, o Centro já havia começado a se estruturar e suas terras estavam ocupadas.

Um dos volumes contém um mapa raro da Capital, de 1820. Porto Alegre não tem a Borges de Medeiros, nem havia sido aterrada ainda. Perto do que viria a ser a Usina do Gasômetro, o mapa mostra o local onde ficava a forca. O papel estava duro e não podia ser aberto. Levou um ano de trabalho da equipe, aplicação de materiais que foram trabalhando as fibras, para que fosse recuperado.

Rita mostra ainda um outro jornal, que circulou na região de Rosário, no começo do século, e fazia parte de um processo sobre mercadorias presas na alfândega. O papel partido, com letras que estavam prestes a se perder nas brechas, foi restaurado graças ao uso do papel japonês. Mais claro, feito de arroz, ele possui uma fibra mais alongada que a da celulose. Quando colocado junto ao papel comum, o material quase some, como uma “coisa viva”, que se adapta ao outro.

Os homens do tenentismo

A mesma técnica deve ajudar as arquivistas a recuperar parte dos processos ligados ao Movimento dos Tenentes. Conhecido como tenentismo, a série de rebeliões de oficiais de baixa patente do Exército irrompeu em São Paulo e criou uma rede em todo o país contra o governo federal. Eles pediam o fim do voto aberto e reformas na educação pública, entre suas reivindicações.

No Rio Grande do Sul, um dos nomes mais conhecidos era o de Honório Lemes, o “Leão de Caverá”. O homem que, nas palavras de Rita, sempre esteve do lado que perdeu. Como mostram os vários pedidos de prisão guardados pela Justiça Federal de Porto Alegre, em seu nome. Quase analfabeto, ele se juntou como soldado à Revolução Federalista, em 1893, contra Borges de Medeiros, e rapidamente chegou ao posto de coronel. A escrita dos processos – “Honório fugiu desabaladamente”, “caricato coronel” – mostra o lado tendencioso de como a própria justiça o via.

Foto de grupo em um dos vários processos ligados à figuras do tenentismo | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Nos arquivos, constam relatórios de contas, telegramas, recibos de hotéis, papéis que ajudam a contar como se organizava e por onde passou o movimento tenentista no Estado. Para Rita, os vários processos de homens que participaram dos levantes podem lançar luz a uma parte da História não contada.

“Como aconteceu esse movimento, não só para os grandes líderes, mas também dos sujeitos comuns, da base da revolução? Quem era o tenente que se revolta lá em São Gabriel e fica preso pedindo julgamento? Nas petições, eles acabavam contando um pouco da vida, do que estava acontecendo com eles, pedindo para serem julgados, para ir ao dentista, atendimento médico. São muitas vidas envolvidas nesses movimentos”.

O artista falsificador

Os documentos recuperados ajudam a entender o passado. A arquivista lembra, por exemplo, que as mulheres nunca apareciam como autoras dos processos. Eram sempre citadas como “a viúva de, a esposa de”. Mesmo quando eram elas que moviam as ações, como as mães que escreviam cartas pedindo que os filhos fossem dispensados de servir ao Exército, eram identificadas como “mãe de”.

Poucas coisas, porém, falam tanto de economia e política quanto os crimes praticados em cada período. Na virada do século XIX para o XX, nos processos que estão sendo restaurados nessa primeira fase do projeto, o Núcleo de Memória se deparou com montes e montes de casos de contrabando e falsificação de moedas.

“Teve um historiador que localizou um grande falsário, que atuava em Pelotas. Era um falsário francês, artista e fotógrafo, por isso a qualidade do desenho da cédula dele, que falsificava moedas do mundo inteiro. As moedas saíam via Pelotas, pelo porto, algumas até misturadas aos produtos do charque, que era a grande exportação. E ninguém o conhecia, ninguém sabia quem ele era”, conta Rita.

Para arquivista, documentos ajudam a compreender a época, a partir dos relatos que eram registrados por escrivães | Foto: Guilherme Santos/Sul21

O historiador uruguaio Diego Antonio Galeano buscava pelos processos há 10 anos. Ele só conseguiu ter acesso quando viu a notícia de que o acervo da Justiça Federal estava deixando o Arquivo Público, para voltar à sua origem, e contatou a equipe.

Outro processo inusitado, do começo do século XX, em época de contrabando de bebidas, foi da cervejaria de Pelotas acusada de adicionar absinto, bebida proibida, à sua fórmula. A Ritter, fundada por imigrantes alemães, que produzia 4,5 milhões de garrafas por ano, foi acusada de adulterar a cerveja por uma fábrica de Pernambuco. Sem fiscalização durante a fabricação das bebidas, o dono foi atrás da comprovação científica. Encomendou um laudo a um laboratório e conseguiu provar que sua cerveja apenas seguia a fórmula original, como era feita na Alemanha. Nada de absinto.

“Esse processo tem uma repercussão bem grande, porque ele diz que o que está por trás é a tentativa de cartelização das cervejas. O que acaba acontecendo poucos anos depois. Poucas marcas acabam comprando as outras e se termina com essas produções de cervejarias pequenas”, diz Rita.

Em 1940, a mesma Ritter foi comprada pela Brahma.

O lado público

A ideia do Núcleo de Memória é abrir os processos ao público. Na próxima segunda-feira (8), uma sala de pesquisa será inaugurada e parte dos processos já começou a ser disponibilizada na internet.

Como diretora do Núcleo de Documentação e Memória, Rita conta que o pouco do arquivo que já conseguiu acessar revela um “tesouro”. “Cada descoberta dessas arrepia. A gente fica pensando o que mais está escondido dentro desses processos, porque são fontes originais de como a época via. Hoje, se a gente pega pra ouvir essa história, é a nossa interpretação. Mas, se a gente segue por aqui, está ouvindo o juiz, o policial ou o próprio réu. A gente não tem em outras fontes dessa fala”.

Também na segunda, a Justiça Federal abre uma exposição com vários dos casos do Rio Grande do Sul, que fizeram História. Processos envolvendo questões indígenas, quilombolas, terras, saúde, previdência social, direitos.

Processos do RS, que estão sob tutela da Unesco, estarão em exposição | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Entre os processos em exibição, estarão a decisão histórica do juiz Roger Raupp Rios, que garantiu o reconhecimento da união a casais homossexuais, depois que um casal processou para conseguir ter acesso à Previdência Social, em 1998, e a ação civil pública gerada por ela. “Até hoje esses documentos garantem esses direitos, porque ainda não existe legislação, não existe lei para isso. O direito ainda está assentado na jurisprudência”, salienta a pesquisadora.

Os processos estão sob tutela da Unesco, junto aos documentos de prisão de Nelson Mandela e à Lei Áurea, assinada em 1888.

Quem quiser acessar e fazer pesquisas no arquivo da Justiça Federal pode entrar em contato com a equipe pelo e-mail [email protected] ou pelo telefone (51) 3214 2037.

Confira mais imagens

Documento com aplicação do papel japonês | Foto: Guilherme Santos/Sul21
Partes da escrita que não podem ser recuperadas, são mantidas rasuradas, para evitar alterações que não podem ser checadas | Foto: Guilherme Santos/Sul21
O mapa da Porto Alegre de 1820 trazia a Rua da Praia | Foto: Guilherme Santos/Sul21
E o local onde eram realizadas execuções, na Capital | Foto: Guilherme Santos/Sul21
Alguns documentos foram encontrados em estado avançado de decomposição e não poderão ser completamente recuperados | Foto: Guilherme Santos/Sul21

 


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