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4 de novembro de 2017
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11:09

‘Vagas Arrombadas’: uma juventude precária que provavelmente vai viver em piores condições que seus pais

Por
Sul 21
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De acordo com um levantamento divulgado em outubro pelo Sindicato das Mantenedoras de Ensino Superior (Semesp), menos da metade das pessoas graduadas nos últimos dois anos trabalham em sua área de formação. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Gregório Mascarenhas

Há, no Brasil, uma aura de insatisfação entre uma juventude que é altamente escolarizada, com graduação ou pós em universidades respeitáveis, cursos de idiomas e tecnologicamente habilitada, cosmopolita e que cresceu sob condições materiais confortáveis, bastante superiores às das gerações anteriores. Embora se pudesse supor que esse grupo teria o futuro financeiro garantido, sobretudo em um país onde apenas 14% da população tem curso superior completo, algo aparentemente está dando errado: para uma parte do “precariado”, apesar de bem nascida em uma sociedade desigual como a brasileira, está difícil começar a vida laboral com alguma dignidade.

Trata-se de uma camada social que tem crescido, por aqui, há pelo menos 15 anos, ainda que não seja um fenômeno restrito ao Brasil – algo que já se verificava antes em países da Europa Ocidental ou da América Anglo-Saxônica. “Pela primeira vez, no Brasil, o fato de uma pessoa ter mais anos de estudo não significa que terá uma remuneração maior”, diz o sociólogo Giovanni Alves. Ele é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, livre-docente em Sociologia e professor da Unesp, campus de Marília, e tem se dedicado a estudar a camada média da juventude urbana brasileira – que caracteriza como “precarizada nas condições e expectativas de futuro”.

São jovens adultos, predominantemente até 36 ou 40 anos – o conceito de juventude tem se alargado nos últimos anos em relação à sua faixa mais velha – que, apesar da qualificação formal superior à da media, estão predominantemente inseridos em ocupações precárias, quando não desempregados. “Em Portugal, por exemplo, há uma demarcação bem forte dessa categoria, como uma identidade social de ‘precários’; chama-se de ‘geração da casa dos pais’. São altamente escolarizados, alguns falam até três idiomas, com graduação e pós”, ilustra o sociólogo. O país europeu – que tem sido recentemente citado como modelo por abandonar a crise rompendo com o receituário da austeridade – chegou a ter quase 40% de sua juventude desempregada no ápice da crise econômica que se iniciou em 2008.

“Precariado” é a conceituação de uma classe social – ou de uma parte do proletariado, a depender de diferentes leituras sociológicas – formada por pessoas inseguras financeiramente e sem previsão de melhores condições materiais com o passar dos anos. Ao contrário da classe trabalhadora tradicional do século XX nos países capitalistas centrais – aquela que conseguia, com o dinheiro do salário, adquirir casa, carro e tinha acesso a sistemas de saúde, por exemplo –, membros do precariado estão envolvidos de maneira mais inconstante e parcial nas relações econômicas e laborais.

Uma evidência disso é que, de acordo com um levantamento divulgado em outubro pelo Sindicato das Mantenedoras de Ensino Superior (Semesp), menos da metade das pessoas graduadas nos últimos dois anos trabalham em sua área de formação. 34,3% dos egressos sequer trabalham e 18,7% atuam em áreas distintas. E a metade dos pesquisados recebe menos de R$ 3 mil por mês.

Giovanni Alves: “É muito provável que no Brasil, pela primeira vez, os filhos não vão ter um padrão de vida melhor que o dos pais. É um elemento importante porque representa um limite da mobilidade social e, ao mesmo tempo, mostra um possível esgotamento do sistema que dá oportunidade de ascensão”. (Foto: Facebook/Reprodução)

Ter ensino superior, diz Alves, “muda inclusive a demanda das pessoas”. Ele percebe, nessas pessoas, muita frustração profissional, pois há muito investimento de tempo e o retorno não é equivalente. “É muito provável que no Brasil, pela primeira vez, os filhos não vão ter um padrão de vida melhor que o dos pais. É um elemento importante porque representa um limite da mobilidade social e, ao mesmo tempo, mostra um possível esgotamento do sistema que dá oportunidade de ascensão”. Alves, que tem uma carreira estável como professor universitário e pesquisador, diz que nada garante que seus próprios filhos terão um padrão de vida equivalente ao seu. E isso, diz, se dá “por conta da expansão de formas precárias de contratação. Esse é um elemento estrutural.”

A sociedade brasileira, diz Alves, mudou de forma acelerada: houve uma geração – a dos avós dos jovens precários – que vivia predominantemente no campo; seus filhos, por sua vez, fizeram parte da primeira geração de maioria urbana do país, já ma segunda metade do século XX. Eles viveram em cidades que ofereciam uma série de oportunidades vinculadas a sociedades industriais, sobretudo no centro-sul do Brasil. “Havia um ideal vinculado ao trabalho formal e uma perspectiva de padrão de vida superiores aos dos pais”, interpreta.

Hoje, há vagas de emprego destinadas à mão-de-obra mais qualificada do país, que, ao mesmo tempo, não garantem remuneração média superior àquela que no passado correspondia ao tempo de estudo. A indústria, no Brasil, perdeu importância e a economia passou a depender mais de serviços, o que pode ser caracterizado como “uma sociedade pós-industrial”. Na indústria criativa, por exemplo, as ocupações tendem a crescer, mas não se comparam com aquelas que caracterizaram o ideal de vida das gerações anteriores.

“Vagas Arrombadas”

Há uma página no Facebook que representa bem essa difusa insatisfação. “Vagas Arrombadas” tem quase 150 mil likes e se dedica a publicar anúncios de emprego caricatamente exploradoras desde agosto deste ano.

“Nós sempre tivemos contato com vagas desse tipo enquanto buscávamos emprego e há tempos já as postávamos em nossos perfis pessoais. Sempre chamando-as de ‘vagas arrombadas’ pelo conteúdo que apresentavam. Então resolvemos reunir todas elas num mesmo lugar”, contam os paulistanos Tiago Perrart e Daniel Alves, criadores da página. Tiago é designer e diretor de arte freelancer, Daniel é analista de marketing, mas se define como “disponível no mercado de trabalho”. Eles conversaram com o Sul21, por e-mail. A página começou tratando sobretudo de vagas em comunicação social – área cuja precarização, para eles, é “notável” –, mas, quando o público se expandiu, outros setores da economia passaram a ser também mais incluídos.

Há, para Tiago, jovens que acham “bacana contar pros amigos como a agência dele é moderna, tem vídeo game, ping pong, gato, pizza e cerveja; mesmo ele sabendo que estes itens estão ali pelo fato dele não ter hora pra sair”. Ou, nas palavras de Daniel, um “deslumbramento do universitário que sai da sala de aula buscando o glamour do publicitário da TV. E isso não tem base alguma na realidade. O ‘deslumbre’ fica só na ficção mesmo. Vida real não é Mad Men”, afirma.

No mercado da comunicação social, dizem, o “freela fixo” – contratação de um freelancer [isto é, um profissional autônomo que vende trabalho por empreitada] para prestação de serviços, através de um CNPJ, mas com horários determinados como um funcionário normal – é bastante comum, ainda que não permitida pela legislação trabalhista, por criar vínculo empregatício. “A CLT há tempos vem sendo desrespeitada no setor”, escrevem os administradores da página.

Há inclusive um “bingo” de características recorrentes na página: “espírito empreendedor”, “pensar fora da caixa”, “vontade de mudar o mundo”, “oportunidade de aumentar o portfólio” ou “no dress code” [sem código de vestimenta], entre outros clichês do mundo corporativo contemporâneo que se apresenta como atento a demandas do trabalhador, ainda que não ofereça uma remuneração suficiente, por exemplo. “Sei que as contas chegam, aluguel vence, boletos se acumulam; eu mesmo já aceitei freela que pagava bem abaixo pois estava precisando de dinheiro”, conta Tiago.

Esse padrão não envolve somente a questão salarial, mas também a proteção social. Aposentadoria, benefícios, acesso ao sistema público de saúde e de seguridade – setores precarizados por diferentes governos, mundo afora, para privilegiar a economia de mercado. E, para Giovanni Alves, também a relação com o tempo livre está mudando: “estamos perdendo a delimitação do que é trabalho e o que é vida. Há uma série de cortes – consumo, lazer, qualidade de vida, relações sociais. Ser jovem hoje é muito diferente do que há 50 anos”, avalia.

Ele chama isso – as consequências das relações laborais contemporâneas – de “precarização existencial”. É algo que se verifica em vários aspectos: do “equilíbrio sociometabólico, de realização de expectativas, de reprodução da força de trabalho, do lazer, a questão também do próprio conceito de qualidade de vida. É algo que preocupa muito”. A pressão o que Alves define como um “capitalismo turbinado” – que atinge sobretudo a juventude – vai provocando um desgaste no plano das saúdes física e mental. “É um grande problema para o futuro: jovens, adultos e velhos sem proteção social”.

O sociólogo não acredita que um desenvolvimento econômico acompanhado de mudanças sociais possa ocorrer em um futuro próximo, no Brasil.

De crescimento, sim, disso não duvido. Você pode ter crescimento do número de empregos, mas isso não significa qualidade, com perspectiva de realização profissional e também de futuro – coisas como se aposentar, ter acesso à saúde, por exemplo. São uma série de questões que vão precarizando a existência – e isso é preocupante em um país como o Brasil, continental, cheio de diferenças que podem se acirrar.

É uma tendência, diz Alves, que se repete mundo afora. A diferença é que por aqui não há um “lastro de direitos” que existe em países europeus, por exemplo. “Enquanto eles flexibilizam, a gente extingue”, afirma, referindo-se à reforma trabalhista aprovada neste ano e que começa a valer já em novembro. Entre outras mudanças, a nova lei determina que o que for acordado entre patrão e trabalhador passa a valer em detrimento daquilo que está legislado.

O Brasil, para ele, vinculado à sociedade global, está sob riscos de outro grau e “não vai reiventar nada” em termos de mercado laboral. Isso porque se trata de um “capitalismo dependente, de uma sociedade pobre, de remuneração miserável, verificamos que quase metade dos brasileiros sobrevive com até um salário mínimo”. Aqui e lá fora, resume Alves, o capitalismo não promete mais uma perspectiva de futuro.


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