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5 de novembro de 2017
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11:22

Judiciário, MP e polícia tem agido para calar a luta por direitos, diz defensora

Por
Luís Gomes
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Defensora pública Mariana Py Cappellari, coordenadora do Centro de Referência em Direitos Humanos da Defensoria. Foto: Maia Rubim/Sul21

Luís Eduardo Gomes 

A criminalização dos movimentos sociais no Rio Grande do Sul e no Brasil é um tema que voltou a pauta de discussões após a realização da Operação Érebo, pela Polícia Civil, ao final do mês de outubro passado. Na ocasião, agentes acompanhados de jornalistas do grupo RBS cumpriram mandados de busca e apreensão nas sedes da Federação Anarquista Gaúcha (FAG), do coletivo Parrhesia e na Ocupação Pandorga. O objetivo era apurar o envolvimento de integrantes desses movimentos em uma série de atentados em Porto Alegre nos últimos anos.

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A defensora pública Mariana Py Cappellari, coordenadora do Centro de Referência em Direitos Humanos da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul, que trabalha com a questão, destaca que o Brasil vive um contexto de aumento da repressão contra movimentos sociais, fortalecido pela entrada em vigor da Lei das Organizações Criminosas (12.850), em 2013, e da Lei Antiterrorismo (13.260), em 2016. A defensora pondera que Ministério Público e o Poder Judiciário tem tomado parte em ações que buscam criminalizar mobilizações reivindicatórias e de protesto, aproveitando-se do alargamento dos tipos penais a partir dessas legislações. Ao final, ela responde se considera que a Operação Érebo se enquadra nesse contexto de criminalização de movimentos sociais.

A entrevista foi veiculada, em sua versão condensada, no programa  de vídeo #5Perguntas do Sul21 desta semana. Confira a íntegra a seguir.

 

Sul21 – A senhora tem atuado contra a criminalização dos movimentos sociais. Como ocorre esse processo?

Mariana Cappellari: A gente tem visto, principalmente após todos os movimentos que eclodiram no ano de 2013, depois nós tivemos a questão da Copa do Mundo, das Olimpíadas, uma crescente criminalização em relação às manifestações sociais e aos protestos. Essa crescente vem inclusive com legislações, que, nesse período, restaram solidificadas, não só com a criminalização do que se entende por organização criminosa, mas também de atos terroristas. Ao longo dessas manifestações, nós temos percebido — principalmente pela atuação que a gente leva a cabo [no centro de referência de DH], que é o enfrentamento da violência estatal, como um todo — diversas ações empreendidas pela polícia e por outras instituições do sistema de justiça com o intuito de criminalizar, no sentido de realizar a apreensão e a até a prisão dessas pessoas. É um movimento que a gente vem acompanhando, inclusive participamos desde 2013. Acho que o ano passado já nos revela várias ações onde se acirrou essa crescente vinculada à situação política do país. Eclodiram várias manifestações em virtude da reforma trabalhista, da reforma previdenciária, principalmente pós-impeachment. As pessoas saíram para a rua e começaram a reivindicar os seus direitos, a reivindicar a legalidade e a perda crescente desses direitos, e a gente vê então uma ação de buscar calar a defesa dos direitos através do mecanismo penal, do mecanismo criminal, ou seja, através do braço do estado opressor e policial.

Sul21 – Existem movimentos sociais que são alvo com mais frequências dessas ações de criminalização? 

Mariana: Ao longo desse período, a gente observa que a ação de determinados grupos são sim mais visibilizadas. Por exemplo, em 2013, nós tivemos a questão dos Black Blocs, também tivemos a apreensão e a prisão, inclusive, de pessoas vinculadas ao Bloco de Lutas. Eu não sei se as pessoas não se lembram, mas tem uma ação muito específica que aconteceu lá atrás que foi a apreensão de livros. Isso é um mecanismo que acontecia na ditadura. Se a gente for olhar o nosso passado, na ditadura, os professores universitários, por exemplo, escondiam seus livros em determinados locais porque, quando se adentrava, não só na universidade, mas em determinadas casas, a primeira coisa que as pessoas tentavam localizar eram os livros. Não existe fundamento jurídico ou legal para a apreensão de livros. Não é um objeto de crime. Talvez, por trás disso, está o fato de que o livro te faz pensar, te faz buscar, te faz abrir o mundo e reivindicar, exercer teus direitos, a tua cidadania, mas não existe um fundamento para isso. Então a gente vê que determinados grupos, nesse contexto, são mais criminalizáveis, são escolhidos.

No Direito Penal, a gente trabalha com isso também. O [jurista argentino Eugenio Raúl] Zaffaroni trabalha muito bem com a questão do inimigo no Direito Penal, a criação de uma figura na qual eu vou fazer incidir a norma. Em várias ações que ocorreram no RS e em Porto Alegre, por exemplo a questão dos Lanceiros Negros, na primeira desocupação que teve, em 14 de junho, nós também verificamos uma situação nesse sentido [apreensão de livros]. Na questão das greves gerais, com a apreensão de um professor do CPERS, nós também visualizamos nesse sentido [de criminalização]. Ou seja, existem movimentos, principalmente movimentos que têm por intuito um cunho político, no sentido de questionar o regime político vigente no País, que são mais alvos dessa ação, exatamente porque eles estão buscando contestar toda essa ordem de coisas.

Sul21 – De que maneira o Poder Judiciário e o Ministério Público contribuem para esse ambiente de punitivismo de movimentos sociais?

Mariana: O que a gente tem visto? A gente teve lá em 2013 a Lei das Organizações Criminosas. No Brasil não existia o conceito de organizações criminosas, a gente se baseava num tratado internacional. Essa lei trouxe um conceito de organização criminosa e tem um aspecto muito importante porque ela altera e amplia a investigação criminal. Por exemplo, a delação premiada estava prevista já, mas não tinha procedimento. É essa lei que traz o procedimento. Essa lei traz a possibilidade da utilização de agente infiltrado, o que se coaduna muito com alguns movimentos sociais, que tensionam em alguns casos sobre a presença de agentes infiltrados no seu entorno. Essa lei autoriza isso, autoriza a captação dos sinais eletromagnéticos. Nós temos uma lei da interceptação telefônica, mas a lei das organizações criminosas amplia essa questão, inclusive no acesso aos dados, seja em aeroportos, seja em bancos. Então, essa lei tem uma esfera de ampliar o poder punitivo do estado. Ela está dando força, não só a atividade policial, mas a atividade do Ministério Público, porque ele o titular da ação penal, e do próprio Poder Judiciário, porque todas essas ações que eu falava são feitas, antes da instauração de um processo policial, entre juízes, promotores e polícia. A atividade da defesa vem só depois. Interceptação telefônica é uma coisa que tu só vai ter acesso depois, quando já tiver processo, então é uma ação que já é consertada entre essas instituições.

Sul21 – A Lei Antiterrorismo aprofunda isso a partir de 2016?

Mariana: Sim. A gente viu essa nascente que amplia os poderes e atribuições do estado punitivo, vamos dizer assim, através da lei das organizações, e, em 2016, da Lei Antiterrorismo. É uma lei que já foi muito criticada, porque, quando ela  estava no Congresso Nacional, várias organizações da sociedade civil e a própria ONU se manifestaram, porque ela deixa esse espaço do que a gente chama de tipo penal aberto, que seria vedado constitucionalmente pelo princípio da legalidade, amplia sobremaneira o tipo penal e permite que a análise por parte dos operadores esteja vinculada ao seu olhar, a sua interpretação. Ela foi muito criticada porque tem um parágrafo que tenta excluir os movimentos sociais, mas está redigido de uma forma que não traz segurança aos movimentos, porque fala muito mais de protestos e manifestações. O parágrafo coloca ali que a proteção é para aqueles grupos que estão fazendo a defesa em nome dos direitos constitucionalmente estabelecidos. Aí a gente tem uma questão que fere sobremaneira a garantia da liberdade da expressão, porque e se eu sou um movimento que contesta o regime político vigente? Como é o caso dos anarquistas. Os anarquistas vão ter toda uma filosofia de crítica ao estado. O anarquismo prega que não tenha governo, mas tem vários ideais de solidariedade, liberdades, enfim, vão pensar num outro mundo possível. Se estabeleço ali que vou fazer a proteção dos movimentos só diante daqueles direitos que estão constitucionalmente estabelecidos — bom, a República Federativa do Brasil está fundada num estado democrático de direito, isso está previsto na Constituição –, então o fato de eu me opor ao regime político vigente pode dar margem a interpretação de que eu não estaria dentro desse parágrafo e, portanto, os atos que eu pratiquei estariam sujeitos a serem considerados como atos terroristas, se implementadas as demais razões que a lei exige para isso. A crítica vem nesse sentido, porque esse parágrafo não resguarda daquilo que a lei de segurança nacional, e aí eu volto a ditadura, fazia lá atrás.

A gente viveu no nossa País uma ruptura institucional, que tem e está trazendo suas consequências. O impeachment sem base para tanto revela isso. E é o que está se vivendo ao longo desse período. Há nas instituições por si só um fechamento que se observa, são inúmeras decisões judiciais. Recentemente, impediram inclusive o show do Caetano Veloso numa ocupação em São Paulo, a gente tem os fechamentos dos museus, das exposições, a gente tem o ataque um ataque à população LGBT, a cultura, a arte como um todo, e nós temos aí ações dessas instituições. No caso do show do Caetano, quem entrou com a ação foi o Ministério Público, quem concedeu a decisão foi o judiciário. A gente vê esse fechamento e esse punitivismo que não está só na sociedade, ele está nas instituições também, está arraigado nos poderes.

Sul21 – Diante desse contexto, a operação Érebo pode ser avaliada como uma tentativa de criminalização de determinados movimentos sociais?

Mariana: Sim. Depois de tudo que nós viemos conversando, acho que a grande questão é: como se inicia essa investigação? Há notícias de que teria sido uma denúncia anônima. Quando a gente estuda o processo penal, a gente sabe que a denúncia anônima por si só não é suficiente para embasar uma investigação. Para instalar um inquérito policial, geralmente a polícia busca a partir da denúncia fazer uma investigação preliminar para conseguir outros elementos, para que então ela possa instaurar um inquérito policial. Quando eu consigo mandados de busca e apreensão, eu já tive aqui a ação do judiciário, porque a concessão desse mandado tem que ser com autorização judicial. Só que a lei impõe limites. Ou seja, eu tenho que ter uma investigação, eu tenho que dizer qual é o crime que eu estou investigando, inclusive porque algumas medidas, por exemplo, interceptação telefônica, não cabem em todos os crimes. A lei delimita quais são os crimes que ela cabe, ou a pena que é atribuída ao crime. Ou seja, para determinadas ações investigativas em que eu preciso de autorização judicial, eu preciso passar pelo judiciário, mas precisa trazer elementos, não posso trazer nada genérico, pelo menos é o que a lei coloca, porque eu estou invadindo a liberdade e as garantias constitucionais das pessoas. Então, eu tenho que ter isso delimitado.

Quais são os crimes que pretensamente ensejaram essa ação, de que forma essa ação foi realizada? Porque existem formas também para eu cumprir um mandado de busca em apreensão, em tese eu não vou realizar a apreensão de livros, eu realizo apreensão de armas, de objetos de crime, mas não de livros. Posso apreender papeis. Geralmente, em crimes tributários, eu tenho como aferir a materialidade pelos documentos ou algo nesse sentido. Mas há também uma forma para a concretização desse mandado e me parece que, da forma como essa operação se deu, traz o entendimento de uma tentativa de criminalizar um movimento social que é legítimo na defesa dos seus direitos e dos seus ideais, do que pensa enquanto sociedade se a gente parar para pensar que a gente vive e deve viver numa democracia. Nesse contexto, me parece que sim. A forma como foi conduzida a ação e principalmente a veiculação por parte da grande imprensa dos fatos mostra esse caráter de tentativa de criminalização dos movimentos sociais. Quando a gente atua na defesa dos movimentos, a gente tenta trazer à tona a isso, esclarecer a população como um todo de que são tentativas do estado de te fazerem calar, de te fazerem com que tu não siga na luta, com que tu não siga indo atrás daqueles direitos legítimos que tu possui. A criminalização é utilizada dessa forma. Trazer isso à tona, mostrar que o movimento é legítimo na busca dos seus direitos e não dessa forma criminalizante, é o grande papel que a gente pode fazer para que essa luta não se cale, pra que ela tenha continuidade e para que a gente possa pensar num futuro melhor para nós enquanto nação.


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