Marco Weissheimer
A tempestade que atingiu Porto Alegre e outras cidades do Rio Grande do Sul no último dia 1o de outubro não foi um ponto fora da curva, mas a confirmação de uma tendência à qual a população dessa região e as autoridades públicas devem se acostumar e, sobretudo, se preparar para minimizar danos. A Fundação de Economia e Estatística (FEE), entidade que o governo José Ivo Sartori (PMDB) está prestes a extinguir por considerá-la dispensável para o desenvolvimento do Estado, promoveu, dia 4 de outubro, um debate sobre a agenda global das mudanças climáticas e o impacto dessas mudanças no Rio Grande do Sul. Francisco Eliseu Aquino, professor e pesquisador do Centro Polar e Climático, do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Mariana Lisboa Pessoa, geógrafa pesquisadora da FEE foram convidados a debater esse tema e deixaram clara que a produção de conhecimento sobre as mudanças climáticas em curso no planeta é estratégica, não só para a segurança das populações, mas para a própria definição de políticas públicas para o desenvolvimento da região.
Francisco Aquino iniciou sua intervenção assinalando que a região Sul do Brasil e o Rio Grande do Sul em especial estão localizados em um ambiente atmosférico favorável a tempestades e, em virtude do aquecimento global da temperatura, esse quadro deve se acentuar nas próximas décadas. Os dados mais recentes não deixam muitas dúvidas sobre a realidade desse fenômeno. Nos últimos 30 anos, a temperatura média global subiu um pouco mais de um grau Celsius. O ano de 2016, destacou o pesquisador da UFRGS, foi o mais quente do último século, atingindo temperaturas até 5 graus Celsius acima da média em determinadas regiões. Não foi um aquecimento localizado apenas em algumas regiões, mas em praticamente todo o planeta. E a curva segue ascendente em 2017. O primeiro trimestre deste ano foi o mais quente do último século e o último mês de agosto um dos mais quentes do último século.
Este mês de agosto, observou Aquino, foi repleto de fenômenos anômalos no mundo inteiro, como chuvas intensas, inundações, diminuição de gelo marinho no Ártico e na Antártica. “Estamos diante de sinais que algo não está funcionando bem. O planeta inteiro está ficando mais quente, independentemente da região. Assim como 2016, 2017 também está sendo um ano anômalo”.
A diminuição do gelo marinho é um dos fenômenos que mais vem preocupando cientistas no mundo inteiro. Em março deste ano, a Nasa e o Centro americano de Neve e Gelo (NSIDC) anunciaram que o gelo marinho no Ártico registrou sua menor extensão no inverno em 38 anos. Fenômeno similar foi registrado com o gelo marinho no continente antártico. Francisco Aquino lembrou que a população do Rio Grande do Sul vive perto da maior concentração de gelo do planeta:
“Neve e gelo são os elementos da natureza que têm a maior capacidade de elevar ou baixar a temperatura com rapidez. A Antártica concentra 90% do gelo da Terra, com uma espessura média de 2km, podendo chegar, em alguns pontos, a quase 5km de gelo. Essa cobertura de gelo tem um papel fundamental no resfriamento da água e do ar. A concentração de C02 (dióxido de carbono) e metano nunca estiveram tão altas quanto hoje. Os gases de efeito estufa cresceram, nas últimas décadas, numa quantidade e numa velocidade jamais vista. De 1960 a 2010, passaram de 320 partes por milhão (ppm) para mais de 400 partes por milhão. E esse número deve aumentar ainda mais”.
Um dos efeitos desse processo, assinalou o pesquisador, é o maior aquecimento da troposfera, a camada atmosférica mais próxima da superfície terrestre, que passa a ter também ventos mais fortes. O Rio Grande do Sul, acrescentou, sempre foi palco de eventos severos, o que deve aumentar com o aquecimento da temperatura global. O Estado está localizado numa região de trânsito do fluxo de ar quente que vem da Amazônia e de entrada de ar frio que vem do sul. Segundo Francisco Aquino, Porto Alegre reuniu, no dia 1° de outubro, todas as condições para a ocorrência de tempo severo: entrada de ar quente do norte, entrada de ar frio vindo do sul e um jato de ar na troposfera funcionando como um exaustor. O problema desse tipo de cenário, advertiu, é a dificuldade de fazer previsões em função das nuvens convectivas que se formam em horas. “Uma única nuvem dessas gerou o tornado que atingiu São Miguel das Missões (no noroeste do Estado) em 2016”, exemplificou (ver vídeo abaixo).
A circulação do ar inteira está mudando e aumentando as anomalias na região Sul. Entre essas anomalias, algumas podem parecer paradoxais, como o aumento das precipitações e das estiagens. O problema é que as chuvas estão ocorrendo de modo mais concentrado em curtos espaços de tempo, o que deverá afetar o abastecimento de água. Em função disso, previu o pesquisador, o Rio Grande do Sul terá que estocar água nos próximos anos para atender a demanda. “A bacia do Prata, de modo geral, terá que adotar uma política similar a da instalação de cisternas no Nordeste”. A geógrafa Mariana Lisboa Pessoa reforçou essa previsão, especialmente na região do Pampa, chamando a atenção para a necessidade de vencer uma resistência cultural para aplicar aqui medidas que, de um modo preconceituoso, muita gente acha que é “coisa do Nordeste”.
Embora o Rio Grande do Sul possua uma grande disponibilidade hídrica, salientou a pesquisadora, as suas bacias apresentam situações críticas pela baixa qualidade das águas e pela grande demanda, fenômenos relacionados com o alto grau de urbanização e industrialização, especialmente na Região Metropolitana de Porto Alegre.
A maior demanda por água doce do Estado, observou Mariana Pessoa, é para atividades de irrigação, que consomem cerca de 78% do total de água utilizada. Além disso, acrescentou, o Estado usa quase o dobro da média nacional de agrotóxico nas lavouras: 8,3 litros por habitante contra 4,5 l/hab. “O excesso de agrotóxico contamina o solo, as águas subterrâneas e os mananciais do entorno, uma vez que a chuva drena o solo e carrega esses poluentes, afetando não apenas a qualidade dessas águas, mas todo o ecossistema do local”, advertiu.
O Rio Grande do Sul, concluiu Francisco Aquino, está intimamente ligado às mudanças ambientais globais. “A América do Sul é o continente onde mais chove no planeta e as tempestades mais severas ocorrem justamente no Sul do Brasil. Esses fenômenos devem se intensificar nas próximas décadas com um grau de certeza muito elevado”, afirmou. O Estado deveria ter, portanto, um interesse especial por esse tema, fortalecendo as instituições com capacidade de produção de pesquisa e inteligência, como é o caso da FEE.
No plano nacional, o pesquisador lamentou que o Brasil tenha se tornado de novo um grande poluidor global, com o aumento do desmatamento. “A maior contribuição que o país poderia dar aos esforços mundiais contra o aquecimento global seria diminuir o desmatamento. No entanto, em setembro, batemos o recorde de queimadas na Amazônia. Lamentavelmente, nos tornamos de novo um grande poluidor”.