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31 de outubro de 2017
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10:14

#Issoéfeminicídio: Mobilização social garante inclusão do termo ‘feminicídio’ em boletins de ocorrência no RS

Por
Sul 21
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Giovana Fleck

Juliana morava em Carlos Gomes, pertinho de Erechim. Tinha 33 anos e trabalhava em um frigorífico da região. Era mãe de uma menina de 8 anos. Foi assassinada pelo ex-companheiro logo após voltar do trabalho. Ela carregava uma medida protetiva contra ele no bolso da calça.

Rosália era de Horizontina. Também tinha uma filha de 8 anos. Ela estava separada do ex-marido – denunciado após anos de relacionamento abusivo e uma tentativa de assassinato. Ele foi preso, mas solto dois meses depois. Rosália queria refazer a vida; voltou a morar com a mãe. Elas iam viajar no natal – a mãe de Rosália foi primeiro e a filha e a neta deveriam encontrá-la em alguns dias. O ex-marido bateu à porta. Ela abriu. Eles brigaram e Rosália foi atingida por uma série de facadas que cortaram sua jugular. Ela morreu na frente da filha. Em seguida, o assassino voltou à antiga residência do casal onde se suicidou. O crime foi inteiramente gravado pela câmera de segurança de um vizinho.

Rosália e Juliana tinham algum tipo de medida cautelar emitida contra os ex-companheiros. Ainda assim, foram mortas. A taxa de feminicídio no Brasil é a quinta maior do mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). No entanto, todos os dados que existem especificamente sobre feminicídios só puderam constar na estatística após serem analisados individualmente, como explica a delegada Tatiana Bastos, da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher em Porto Alegre.

Em ocorrências da Polícia Civil, não existe um campo próprio para a inclusão do termo em nenhuma parte do processo de registro do crime. “Mesmo com lei própria, a execução prática vinculada à falta de capacitação dos servidores em postos de atendimento e delegacias faz com que tentativas de feminicídio sejam facilmente confundidas com ‘crimes passionais’ ou ‘crimes contra a honra'”, explica a delegada.

Por esse motivo, Tatiana decidiu iniciar um processo civil na Divisão de Planejamento e Coordenação (Diplanco), solicitando a inserção do subtítulo “feminicídio” nos boletins de ocorrência. “Sem isso, a vítima acaba sem o atendimento e a proteção adequados”, afirma.

O processo foi iniciado há três anos. A inclusão definitiva, no entanto, dependia de decisão da delegada Andréa da Rocha Mattos e do chefe da Polícia Civil, Emerson Wendt. Sabendo disso, a Rede Minha Porto Alegre decidiu criar um canal de mobilização civil para acelerar a aprovação do processo. Através da campanha #Issoéfeminicídio, criaram plataforma em que qualquer pessoa poderia enviar um e-mail para a caixa de entrada dos dois responsáveis pela aprovação.

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Desde a Lei 13.104/2015, conhecida como Lei do Feminicídio, que o classifica como crime hediondo, apenas 89 crimes contra a vida da mulher foram registrados como feminicídios no Rio Grande do Sul. Segundo Tatiana, esse número é “fora do real”.  De janeiro a junho desse ano, 11.061 casos de violência física contra a mulher foram registrados no Estado. “Quantas dessas histórias são possíveis feminicídios no futuro?”, questiona a campanha.

Números de violência contra a mulher no Rio Grande do Sul

11.061 ocorrências de violência física contra a mulher foram registrados entre janeiro e junho de 2017 (Fonte: Secretaria de Segurança Pública do RS)

Em menos de uma semana, as representantes do projeto foram chamadas para uma reunião com a delegada Andréa. Ao completar 10 dias de campanha, o documento foi assinado – definindo o início da inclusão do termo para o dia 1º de janeiro de 2018. “O apoio popular foi a característica arrebatadora nesse processo”, enfatiza Clara Alencastro, uma das coordenadoras da Rede Minha Porto Alegre. “O mais importante é a prevenção, ou seja, o que fazer antes que elas morram”, completa.

“Justificar um erro com outro”

Segundo o Mapa da Violência de 2015, o número de assassinatos chega a 4,8 para cada 100 mil mulheres. Entre 1980 e 2013, 106.093 pessoas tiveram sua morte diretamente relacionada ao fato de ser mulher. As mulheres negras são ainda mais violentadas. Apenas entre 2003 e 2013, houve aumento de 54% no registro de mortes, passando de 1.864 para 2.875 nesse período. Muitas vezes, são os próprios familiares (50,3%) ou parceiros/ex-parceiros (33,2%) os que cometem os assassinatos.

Para Tatiana, poder compreender melhor esses dados é o que levará ao entendimento de um histórico de violência já epidêmico. “Mas não podemos justificar um erro com outro; temos buscado em mudanças internas espaço para que as vítimas se sintam acolhidas”. Grande parte do criticismo das Redes de Atendimento às Mulheres em Situação de Violência se dá pela falta de capacitação dos funcionários e as diversas restrições de atendimento. Vários Centros de Referência e Casas Abrigo, por exemplo, não funcionam 24h ou aceitam acolher filhos ou netos das vítimas.

“Isso expõe a mulher, cria um espaço para mais violência e comprova que o equipamento não consegue absorver a demanda”, afirma Tatiana. Segundo a delegada, o próximo passo é otimizar esse serviço. Reestruturações físicas já vêm sendo concretizadas – a DEAM de Porto Alegre foi reinaugurada no dia 25 de outubro e vem realizando oficinas mensais pelo Rio Grande do Sul com os servidores responsáveis pelo acolhimento de vítimas.

O coletivo Nossas, vinculado à Rede Minha Porto Alegre, é responsável pelo Mapa do Acolhimento que avalia serviços públicos de atendimento a mulheres vítimas de violência em todo o Brasil. A inciativa também cadastrou mais de 400 profissionais, entre advogadas e terapeutas, em 10 cidades, para suprir a demanda que o Estado não consegue cumprir.

Clara, coordenadora da Minha Porto Alegre, foi uma das avaliadoras na Capital. “Em um dos abrigos, abriram a porta, perguntaram o que eu queria e já estavam prontos pra me mandar embora. Imagina se eu estivesse em situação de violência?”, conta.

Segundo ela, os próximos passos do #Issoéfeminicídio também caminham para a conscientização. “Tanto de quem presta o atendimento direto quanto da mídia, que recorrentemente não reconhece o termo”. Formas de colocar isso em prática ainda estão sendo estudadas. No entanto, Clara afirma que a vitória da inclusão do termo já manifesta uma mudança de posicionamento que abre precedentes para o reconhecimento da realidade violenta de muitas mulheres. “São essas medidas, mesmo que pequenas, que podem salvar vidas”.

 


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