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13 de setembro de 2017
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22:19

Subcomissão da moradia recomenda criação de protocolo para reintegrações e desapropriações

Por
Sul 21
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Público no Plenarinho era de movimentos sociais e moradores de áreas que sofreram ou correm risco de reintegração | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Fernanda Canofre

Josiane viu a casa que o pai construiu, há 30 anos, ser derrubada em poucos segundos na última segunda-feira (11). A patrola esmagou o que ficou dentro da casa e que a família não teve tempo de tirar. A cama do pai ficou entre as ruínas. A reintegração de posse da área do Daer (Departamento Autônomo de Estradas e Rodagem), em Gravataí, onde ficavam a casa dela, do pai e de outras 48 famílias, aconteceu, segundo ela, sem diálogo e às pressas.

“A gente é pobre, mas tudo o que a gente tinha dentro de casa era nosso. Mesmo assim, a gente perdeu um monte de coisa, porque não deu tempo [de tirar] e a patrola passou por cima. Parecia que estavam tirando um saco de lixo de um lugar e largando em outro”, conta Josiane da Costa, 34 anos, que é mãe de duas meninas, de 5 e um ano. “A gente perdeu tudo: casa, moradia, dignidade. Porque depois que uma coisa dessas acontece, tu para e pensa: quem sou eu? Será que eu valho alguma coisa? Tinha até helicóptero da Brigada sobrevoando por cima da gente”.

O aviso prévio veio no dia 29 de agosto, um dia antes de uma reunião no Batalhão de Polícia de Gravataí definir como se daria a reintegração. O oficial de justiça teria dito às famílias que “ninguém precisava se preocupar, porque não ficariam na rua”. De acordo com os depoimentos de moradores, a oferta do poder público era que os adultos ficassem em abrigos e albergues municipais e as crianças fossem encaminhadas ao Conselho Tutelar. Nenhum plano para depois disso foi apresentado.

A Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa (CCDH), que acompanhou todo o processo, afirma que a reintegração autorizada pela Justiça previa a retirada das famílias do trecho entre os quilômetros 18 e 20, da RS-118. A área onde Josiane e as demais famílias viviam estava a partir do quilômetro 21 e faria parte de outro processo. Ela afirma que os terrenos faziam parte de uma antiga fazenda que nunca foi desmembrada e por isso nunca tiveram papéis oficiais. Ainda assim, as famílias da sua vizinhança pagaram pelos terrenos e pagam IPTU regularmente.

Sem casa desde segunda-feira, Josiane relatou durante audiência como foi a ação de despejo que atingiu ela e mais 49 famílias em Gravataí | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sem conseguir impedir o despejo, há três dias, ela e a família estão vivendo na casa de conhecidos, sem saber ao certo como ficará sua situação. “A gente sabe que a obra não começa amanhã, por que não podiam dar um prazo maior?”, questiona.

Josiane contou a sua história durante a apresentação do relatório de trabalhos da Subcomissão para Análise da Questão da Moradia no Rio Grande do Sul, apresentado nesta quarta-feira (13), no Plenarinho da ALRS, com a presença de movimentos sociais e moradores. A subcomissão, que é parte da CCDH, trabalhou durante quatro meses, visitando 20 ocupações – 14 na capital e 6 no interior do estado.

“A principal recomendação é o reforço do Fórum Permanente, a ideia de criarmos e garantirmos todos os espaços de mediação possíveis. Há um esforço muito grande de invisibilizar as histórias de pessoas que vivem em ocupações e tratar todos de forma uniforme, como se fosse uma ‘cambada de vagabundo’. Essa é a expressão que melhor define como parte da sociedade e setores do Estado enxergam as famílias que ocupam”, explica a deputada Manuela D’Ávila (PC do B), relatora da subcomissão.

Entre as recomendações apontadas no relatório estão: a criação de um protocolo estadual para ações de reintegração de posse e desapropriações, que garanta o reassentamento das famílias; garantia de que as crianças terão acesso à escola e às redes de proteção social; um recenseamento que contemple áreas públicas devolutas e áreas privadas que não estão cumprindo função social, para fins de moradia popular e levantamento de dados para quantificar o déficit habitacional do estado.

Ausência de números dificulta elaboração de ações

Um dos problemas apontados reiteradamente por membros do Legislativo e Judiciário, que trabalham de perto com a questão da moradia, é a ausência de números e dados para visualizar a situação real no Rio Grande do Sul e planejar ações a partir dela. Por isso, a recomendação para que a Assembleia organize um recenseamento das famílias e áreas.

“A falta de dados técnicos é um problema seríssimo, porque a gente não sabe avaliar da forma correta a realidade. Nós, da Defensoria Pública, convivemos diariamente com essas famílias, vivenciamos os dramas das que têm crianças e não sabem onde vão se abrigar, como vão resolver sua vida”, afirma Regina Taube, defensora pública da União.

Crianças que vivem em ocupações ocuparam um canto da sala e acompanharam audiência com as famílias | Foto: Guilherme Santos/Sul21

A defensora diz ainda que “a falta de sensibilidade na condução das ações” de reintegração de posse “preocupa” o órgão. Mesmo ponto levantado pelo deputado Nelsinho Metalúrgico (PT), que também participou da audiência. “Quem olha para ocupações [tende a ver] áreas de bandidos e criminosos e é isso que mais dói, quando o sistema judicial também reforça essa ideia. Por isso, a necessidade de violência e o aparato policial que deslocam todas as vezes”.

O promotor da Habitação e Justiça do Ministério Público, Claudio Ari de Mello, lembrou que, apesar de moradia ser um dos direitos humanos básicos, o único programa habitacional existente hoje no Brasil é o Minha Casa, Minha Vida. “Nós temos o magistério e escolas públicas para garantir acesso à educação, hospitais públicos que garantem acesso à saúde, mas a moradia não é um direito institucionalizado e não tem sistema de proteção desse direito, porque foi um dos últimos a ser reconhecido”.

Ex-deputado Carrion defendeu aplicação de IPTU progressivo para imóveis que não cumprem função social | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Reforço de Fóruns e mediação

Outra das recomendações do relatório, como destacado por Manuela, é para que a Assembleia reforce e fortaleça os Fóruns de Prevenção e Mediação dos Conflitos Fundiários, além de propor a criação de uma Frente Parlamentar em Defesa da Moradia Digna e Contra os Despejos Forçados. Os Fóruns foram criados como ferramenta de mediação na época em que Raul Carrion (PC do B) era deputado estadual.

Nesta quarta, Carrion voltou a falar da necessidade de articulação por parte do legislativo para cobrar ações. O ex-deputado estadual lembrou que a Constituição Federal de 1988 foi a primeira a incluir o direito à moradia no texto. Demorou ainda outros 13 anos para que seus dois artigos fossem regulamentados, através do Estatuto das Cidades. Até então, todos os textos constitucionais do Brasil falavam em “direito de propriedade” e não “à” ela. A mudança acabou com a ideia de direito absoluto sobre a terra, segundo Carrion. “As leis estão aí construídas, com muita luta e pouca aplicabilidade”, afirmou ele durante audiência.

Carrion disse ser a favor da adoção de um IPTU progressivo para imóveis que não cumpram a função determinada por eli. Assim, proprietários teriam um prazo para edificar algo nas áreas ociosas, sem cumpri-lo, teriam outro prazo para parcelar o lote em questão, só depois de falharem nas duas primeiras propostas é que passariam a pagar IPTU mais caro.

Foto: Guilherme Santos/Sul21

“O IPTU que vale, digamos, 2% – sem edificação ou parcelamento de um terreno que não está cumprindo sua função – passa a valer 4%. No outro ano, se o proprietário ainda não tomar medidas vai para o dobro, 8%. Ele vai sendo desapropriado ou o poder público pode desapropriar o imóvel, pagando o valor em até 10 anos, com juros de 6% ao mês”, explica Carrion.

Manuela, como relatora, defende que a Assembleia trabalhe para construir pontes junto aos municípios e que os provoque na criação de planos diretores inclusivos e áreas especiais. “Nós já temos um número grande [de pessoas sem moradia] e teremos um número cada vez maior, porque a crise econômica aumenta, o número de imóveis fechados aumenta, então as pessoas precisam morar. Elas podem abrir mão de muitas coisas, mas não de moradia”.


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