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23 de setembro de 2017
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11:00

‘É um pouco tarefa da arte jogar luz nessas trevas que estão aí’

Por
Sul 21
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Renata Carvalho no palco do teatro Bruno Kiefer | Foto: Maia Rubim/Sul21

Ana Ávila

Quando as luzes diminuíram, a música subiu e Renata Carvalho entrou em cena a passos lentos, a plateia que lotava o Teatro Bruno Kiefer na noite da última quinta-feira (21) mal respirava. A atenção era toda pra ela. Ao final, a travesti estrela do monólogo O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu foi ovacionado por centenas de pessoas que não se cansavam de aplaudir. Ali, dentro do teatro, Porto Alegre nem parecia a mesma capital que recentemente encerrou a exposição QueerMuseu por pressões ultraconservadoras.

O espetáculo repercutiu em todo o país na última semana, depois que uma decisão judicial proibiu sua exibição em Jundiaí, interior de São Paulo. Na capital gaúcha, dois pedidos também tentaram barrá-lo na justiça, mas foram negados. Para Renata, no entanto, o que realmente importa são os debates que a peça é capaz de gerar no país que mais mata travestis e transexuais. “Eu vejo a luz que é colocada em cima da transfobia”, diz sobre o momento. A diretora Natalia Mallo também destaca a importância da representatividade contra a violência. “Quando a gente começar a ver pessoas trans em toda parte, a transfobia cai. Porque você já não vai querer assassinar a pessoa. As pessoas querem simplesmente matar porque existe, é tão perturbador que as pessoas querem matar”.

Se, ao longo da última semana, a peça ganhou ainda mais notoriedade e garantiu, entre outras coisas, sessões lotadas nas duas noites de exibição no Porto Alegre Em Cena, seu percurso começou muito antes. Escrita pela dramaturga escocesa Jo Clifford, O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu tem no Brasil sua primeira montagem fora do país de origem. Aqui, estreou há mais de um ano e vem atingindo o principal objetivo desde então: sensibilizar quem a assiste. No dia do lançamento em Porto Alegre, o Sul21 conversou com a diretora Natalia Mallo, argentina radicada no Brasil, responsável por trazer a peça ao país e que, agora, se prepara para levá-la ao Uruguai e à Argentina.

Natalia conta que o projeto nasceu de uma ideia de intercâmbios internacionais sobre preocupações comuns na sociedade. “Em 2014, eu fui para a Escócia para os festivais de Edimburgo e foi a primeira coisa que eu assisti. Ali, eu já tive um choque, fiquei muito mexida pelo trabalho. Na época, óbvio que eu tinha empatia pela causa trans, mas eu não tinha muito entendimento, e a peça me mostrou isso, me mostrou que eu não sabia muito bem o que as pessoas trans vivem e onde elas estão na sociedade”, lembra Natalia, que recebeu o texto das mãos da autora como um presente, naquele mesmo encontro.

Confira a seguir a entrevista completa.

Natalia Mallo, diretora da peça | Foto: Maia Rubim/Sul21

Sul21 – Esta é a primeira vez que a montagem é feita fora da Escócia, terra da dramaturga autora do texto?

Natalia Mallo – Sim. Ela estreou em 2009 esse trabalho, mas teve muita controvérsia na época. Toda essa questão trans não estava tão discutida quanto hoje, então ela estava muito sozinha nesse movimento e sofreu muitas ameaças, reclamação, foi um trabalho meio massacrado. E, sobretudo, a imprensa sensacionalista britânica pegou super pesado. Ridicularizaram ela e o trabalho, foi uma mágoa muito grande, tanto que parou. Aí o trabalho foi retomado cinco anos depois porque ela entendeu que isso ainda era importante, e foi aí que eu conheci. Quando veio para o Brasil foi a primeira vez que foi produzido em outro país. Agora caminha para a terceira montagem, que eu também estou dirigindo e vai estrear na Argentina e no Uruguai, com uma atriz uruguaia. Uma nova etapa surgindo. Aqui no Brasil, estreou em agosto do ano passado.

Sul21 – O caso em Jundiaí ficou célebre, mas como vinha sendo a repercussão da peça desde a estreia?

Natalia Mallo – Já na estreia foi meio caótico porque, no festival de Londrina, teve atos de repúdio, teve notas de repúdio e teve uma pressão muito forte de um político, de um vereador, que foi pessoalmente até o espaço ameaçar, provocar. Ele fez uma campanha no YouTube para que as pessoas boicotassem, então já na estreia a gente sentiu o quanto tinha essa força. Mas, ao mesmo tempo, ali mesmo, já aconteceu um fenômeno que se repete agora, que é um movimento de apoio, que é maior ainda e que cria uma contra-narrativa que responde àquilo, que se recusa a esse retrocesso, a esse preconceito todo, e cria uma rede de solidariedade, de apoio e traz pra gente muita visibilidade. Depois disso, a coisa já rolou tranquilamente. A estreia em São Paulo teve 18 apresentações, todas esgotadas, então teve um fenômeno muito bom de público e de mídia. A crítica também foi sempre muito boa, teve bastante espaço na crítica especializada e aí a peça fez um caminho tranquilo e muito bom de público. Já rodou bastante, foi apresentado 70 vezes desde a estreia. Enfim, é um trabalho que está em evidência.

Nos tornamos emblemáticos nas artes cênicas, assim como o QueerMuseu nas artes visuais, ao expormos essa censura, esse apedrejamento, essa hipocrisia

Sul21 – E os casos de violência?

Natalia Mallo – Teve alguns episódios pontuais; esse de Londrina, na estreia, e o segundo que posso citar como mais forte foi em Taubaté, interior de São Paulo. Em geral, é um problema em cidades pequenas. Por serem lugares que têm menos acesso a cultura, têm menos repertório também pra entender que é uma obra. Ninguém está dizendo que a Renata é Jesus. É um exercício de imaginação, mas muita gente não lê assim, lê literalmente. Já teve [gente dizendo] assim “você está achando que você é Jesus?!”. Em Taubaté teve muitas ameaças, teve um vereador local que levou gente pra fazer uma vaia, e foi muito chocante porque teve revista do público pela primeira vez. A gente olhou pra fila e ficamos preocupados, tinha um grupo de 20 homens sozinhos, agrupados. Não é o perfil. Em geral são amigos, casais, gente velha, gente nova, gente LGBT, a gente saca. Aí, 20 homens juntos com uma postura que a gente sacou, o Sesc resolveu fazer a revista e teve gente que saiu da fila. Corre o boato de que estavam com pedras, a ideia era apedrejar. Rolou uma vaia, mas aí o público respondeu a essa vaia, era uma vaia muito pequena perto do apoio. As pessoas estavam curtindo aquilo. Teve também essas notas de repúdio de igrejas evangélicas e de representantes do legislativo. Esse foi o segundo episódio, mas em Jundiaí teve o cancelamento pela primeira vez.

“A sentença do juiz de Porto Alegre é histórica” | Foto: Maia Rubim/Sul21

Sul21 – Tu falastes do que enfrentou a Jo Clifford na primeira montagem e dos cinco anos de interrupção da peça. Diante da sequência de episódios de retrocesso, casos de ameaças e disseminação de ódio no Brasil, vocês sentiram medo, pensaram em parar?

Natalia Mallo – Não. Todo esse movimento é muito estressante pra gente porque isso é o que fica visível, mas o que não fica visível são as mensagens de inbox que eu e a Renata recebemos de ódio, de ameaça, querendo que a gente morra. Essa semana furaram os quatro pneus do meu carro. Então a gente recebe toda uma carga, mas ao mesmo tempo eu não consigo achar que é ruim isso, porque tem um debate que está acontecendo e não estava, que precisa acontecer. Quais são os critérios que orientam o judiciário, em todos os níveis? Isso só representa que a gente tem uma lei que é aplicada com critérios que são muito discutíveis. A liminar que proibiu o espetáculo em Jundiaí é um absurdo, até juristas conservadores olharam e falaram que esse argumento não dá. Você não pode dizer que é uma aberração porque a atriz é uma travesti. Você não pode dizer que é uma peça agressiva e de mau gosto, sendo que o juiz não teve acesso a nada, nem ao texto nem ao espetáculo. E você não pode dizer “embora o estado seja laico, é um fato universal que Jesus é o filho de Deus”. Ora, se o estado é laico, há mil versões sobre quem é Deus e todas são válidas. Então, nos tornamos emblemáticos nas artes cênicas, assim como o QueerMuseu nas artes visuais, ao expormos essa censura, esse apedrejamento, essa hipocrisia, porque quando a gente é ameaçada por uma pessoa no legislativo, eu pergunto pra essa pessoa: será que em vez de se preocupar com uma peça de teatro não devia pensar políticas públicas pra proteger essa população? Por que você está no legislativo? Pra quê? Pra ter um crivo sobre a arte ou pra melhorar a situação da sociedade, atender às demandas da sociedade. E depois você fica sabendo que aquele mesmo vereador controla a prostituição na cidade. Grande parte exercida por travestis. E o bonito é que a peça fala disso porque Jesus falava disso nos Evangelhos, Jesus não condenava ninguém. As únicas pessoa que Jesus condenava abertamente eram os hipócritas, os que escrevem as leis e não têm moral nenhuma, os que performam rituais vazios, que não estão realmente preenchidos com amor pelo próximo. Jesus também é afirmação do corpo, afirmação da vida, produção da vida acima de tudo. Esse são os valores da peça, esses são os valores que a gente considera cristãos. Mas aqueles que nos atacam têm um discurso oposto, é como se tivesse uma nova crucificação. “Apareceu de novo, é travesti? Vamos crucificar de novo”.

É um pouco tarefa da arte jogar luz nessas trevas que estão aí e que não estão sendo olhadas

Sul21 – Como tu olhas pra essa postura política, essa hipocrisia que mencionastes no caso do vereador que critica e ameaça a peça, mas controla a prostituição?

Natalia Mallo – A gente olha como um sintoma, como um retrato do Brasil. Como são temas invisibilizados, não se fala em transfobia, não se fala no extermínio das travestis que acontece brutalmente todos os dias. Mas é um pouco tarefa da arte jogar luz nessas trevas que estão aí e que não estão sendo olhadas. É natural que as estruturas de poder reajam contra isso, porque isso está sendo abafado, esse tema, essa questão, esse corpo. Demoniza esse corpo, que é o corpo trans, deixa ele em um lugar de aberração, objeto, sexualizado, marginalizado, ligado à prostituição, às drogas, à pobreza, deixa ele ali.

A sentença do juiz Coitinho de Porto Alegre é uma sentença histórica, porque ela é totalmente oposta à de Jundiaí. Dá vontade de fazer um quadro porque ele entendeu tudo

Sul21 – Qual a expectativa de vocês pras apresentações em Porto Alegre, cidade onde a exposição QueerMuseu foi encerrada recentemente e onde houve pedidos para que a peça não fosse exibida – o que acabou negado pela Justiça?

Natalia Mallo – A sentença do juiz Coitinho de Porto Alegre é uma sentença histórica, porque ela é totalmente oposta à de Jundiaí. Dá vontade de fazer um quadro porque ele entendeu tudo. Não só entendeu, mas ele está aplicando a lei corretamente. Ele fala coisas muito simples: que realmente não cabe ao judiciário julgar uma obra de arte, não é pela opinião que você vai julgar. O processo dizia “isso não é arte” e o juiz disse “não cabe a mim decidir”, e ele disse ainda “mas aflorou o ódio, aflorou uma reação emotiva, então provavelmente é arte, porque só arte faz isso”. Ele fala também que ser transexual, travesti, homossexual, heterossexual, são apenas dados subjetivos de fórum íntimo da pessoa e que isso não cria necessariamente uma boa ou uma má representação de um personagem. Isso é apenas um dado. Somos todos iguais perante a lei, isso não faz diferença. Ele também fala: não é obrigatório, não está na tv aberta, no rádio, então quem não concorda e não quer ver não vai sofrer nenhum dano porque a peça existe. Então, não tem motivo pra censurar. Pra gente, tudo isso foi um turbilhão, um acontecimento de três dias pra cá.

Renata entra em cena | Foto: Maia Rubim/Sul21

Sul21 – A autora da peça vem acompanhando a repercussão no Brasil?

Natalia Mallo – Claro, a gente se fala diariamente. Ela fez várias declarações na página dela, ela escreveu uma carta pra um bispo porque ele fez uma nota de repúdio. Ele falou em um programa de rádio, disse que todos que assistissem à peça tinham que se confessar imediatamente porque é pecado assistir. Aí ela foi pesquisar sobre ele para escrever pra ele, pra entender quem ele era e descobriu que ele tinha tido um caso com um motorista e era acusado de pegar o dinheiro da igreja pra comprar presentes caros. Então ele mesmo respondia acusações, aí na carta ela diz “eu sei o que você passou, me solidarizo com as acusações que você recebe”, então a coisa toda dá uma volta. E é de novo Jesus na veia, é atire a primeira pedra. Quem está livre de falhas? Ninguém! Você não pode sair por aí levantando dedos, porque ninguém está livre. Ela [a autora da peça] é muito próxima da gente, agora ela vem pra Argentina e Uruguai em outubro. A gente se fala, a gente se apoia, eu aprendo muito. Além de uma dramaturga incrível, ela é uma pessoa incrível, uma grande amiga, e em todos esses momentos, a gente conversa. A peça tem junto com ela um projeto de comunicação. A gente tenta que todos os valores da peça estejam incutidos ali. A gente sempre faz uma comunicação tranquila, não é bélica, não é reativa, simplesmente baixando o tom e falando “vamos conversar, vem assistir”. Quem quiser pode sempre vir e se colocar. Fundamentalista não escuta, ele não vai pra te ouvir, mas tem pessoas que vieram conversar e a gente não chegou a um acordo, mas a gente conseguiu concordar em algumas coisas que são importantes.

Sul21 – Como tem sido esse retorno? Tem gente que vai ao teatro com preconceito e consegue mudar de ideia, vocês recebem esse tipo de relato?

Natalia Mallo – O que mais teve foi gente que levou a mãe ou a vó, meio arrastada. Pessoas que acabaram indo por amor àquele filho, mas pensando “já sei que não vou gostar”, mas saem de outro jeito. A gente ouve relatos. Teve uma vez que um ator que eu conheço levou a mãe, e ela estava muito chateada de estar lá, e no final ela veio chorando falar que estava muito emocionada. Essa resposta é que muda alguma coisa. É a partir disso que se deixa uma marca na pessoa, ela já vai ver de outro jeito. E a peça tem essa força das palavras no texto. É muito bem escrita. A autora é uma mulher trans de 70 anos, você colocar isso na voz de uma travesti brasileira de trinta e poucos anos, que está na luta, na militância, ainda ganha outra camada política. É chocante, as pessoas ficam chocadas com a presença, com o corpo, com a voz, com a existência, simplesmente. Não é uma existência que está naturalizada. Você sai com outra visão, no mínimo com uma compaixão. Ao mesmo tempo, é uma montagem muito simples. É o texto, a presença e a sacada política no país que mais mata pessoas travestis no mundo.

Quando a gente começar a ver pessoas trans em toda parte, a transfobia cai

Sul21 – Como tem sido pra Renata lidar com os últimos acontecimentos?

Natalia Mallo – O teatro foi sempre, pra ela, um espaço de acolhimento, onde ela pode começar a experimentar essa mudança. Na transição, ela começou a dirigir, porque não tinha muito espaço como mulher travesti. Hoje, você dizer “eu sou trans” tem um peso, mas dizer “eu sou travesti”, você está falando de uma identidade super marginalizada e estigmatizada. Ela faz isso porque ela é isso, mas ela faz questão de manter esse status porque é a travesti atuando no Porto Alegre Em Cena, é a travesti no Sesc, é a travesti na Globo, ocupando. Quando a gente começar a ver pessoas trans em toda parte, a transfobia cai. Porque você já não vai querer assassinar a pessoa. As pessoas querem simplesmente matar porque existe, é tão perturbador que as pessoas querem matar.

Renata Carvalho antes da estreia em Porto Alegre | Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Maia Rubim/Sul21

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