Geral
|
16 de setembro de 2017
|
11:41

Carlos Augusto, gestado na rua, despejado com um dia de vida

Por
Luís Gomes
[email protected]
Carlos Augusto nos braços da mãe. Foto: Maia Rubim/Sul21
Carlos Augusto nos braços da mãe. Foto: Maia Rubim/Sul21

Seus pais já lhe contaram como era a vida deles antes de você nascer? Sobre o berço já preparado no quartinho de casa? As paredes já pintadas? A espera, ansiedade, visita dos familiares, os primeiros dias em casa, as primeiras roupinhas? Carlos Augusto nasceu no dia 23 de agosto. No dia seguinte, ainda no hospital, já não tinha mais casa. Seus pais eram moradores da ocupação Lanceiros Negros Vivem. Com pouco mais de 20 dias de vida, a casa que conhece são os salões anteriormente vazios e com buracos no telhado do Centro Vida, para onde as famílias foram levadas depois da reintegração, à espera do aluguel social ou de uma moradia do Minha Casa, Minha Vida.

Leia mais:
Final feliz? Lanceiros Negros e BM firmam acordo, mas decisão ainda não é definitiva
Acordo garante saída pacífica dos moradores da Ocupação Lanceiros Negros

Carlos André do Nascimento, 42 anos, e Alexandra Aline da Silva, 30 anos, recém tinham se mudado para a Lanceiros quando ocorreu a reintegração de posse. Eles conheceram o movimento na reintegração da ocupação anterior, na esquina das ruas General Câmara e Andrade Neves. Então catadores de lixo, estavam trabalhando quando a Brigada Militar retirou as famílias. Logo depois, com a nova ocupação já instalada no desativado Hotel Açores, encontraram-se com uma moradora que lhes explicou sobre o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) e a luta por moradia que travavam e os convidou a conhecer a Lanceiros. Aline estava prestes a dar à luz, com a cesárea já marcada. “A gente ficou meio apreensivo num primeiro momento. Ficamos só pensando, mas não fomos”.

Continuaram dormindo sobre a proteção da marquise do prédio da Habitasul, na rua João Manoel, bem próximo ao hotel ocupado, localizado na Andradas. Depois de experiências frustadas com o aluguel social, que só atrasava, um tempo morando em uma barraca montada nos fundos do Gasômetro, de onde foram removidos pela Prefeitura, e anos alternando a rua e pensões dominadas pelo tráfico de drogas na região da Voluntários da Pátria e da Farrapos, com o filho para nascer, preferiram ficar na rua.

“Na pensão, era um inferno, droga, tráfico, loucura. Totalmente sem noção. A gente estava bem na rua, reciclando, guardando as coisas no carrinho. Um dia eu levantei para ir no banheiro, ela ficou com o carrinho. Passou um senhor ali e perguntou: ‘Tu recicla?’ ‘Eu reciclo’. Ele deu mil real para ela”, conta Carlos. “Foi uma coisa surreal. Nunca esqueço mais a cara dele, o senhor”, complementa Aline.

Ela diz que o homem não lhe dera motivos para a doação, apenas disse para esconder. Era muito dinheiro, preso por um clipe. A primeira reação de Aline foi correr para contar a Carlos, que ainda estava no banheiro. “Ela quase arrombou a porta”, diz o marido.

Com os mil reais, compraram uma pequena televisão velha em uma assistência eletrônica e duas caixas de bala para vender, substituindo a reciclagem. Com a queda no valor do quilo dos materiais recicláveis, acreditaram que empreender neste negócio poderia significar mais dinheiro. “Não se suja, nem nada”, Aline elenca outra vantagem.

Mas ainda sobrara bastante dinheiro. Decidiram ir para um hotel até criar coragem para ver “qual é que era dessa Lanceiros”. Curiosamente, hospedaram-se em um hotel, o Los Angeles, próximo à ocupação Lanceiros Negros Vivem. Quanto é a diária? R$ 75. “Eu disse, não, tá louco, sem condições, mas vamos ficar”, conta Carlos. Ficaram uma semana. Tinham tranquilidade para poder descansar, certamente não era o mesmo ambiente das pensões que costumavam pagar entre R$ 10 e R$ 20 em que os assuntos versavam sobre “vou matar um, vou pegar outro”. “Se esbaldamos a dormir”, diz Carlos. “Eu só levantava para ir no restaurante do outro lado da rua para pegar comida. Depois, na hora de ir embora, não queria, quase chorei”, diz Aline.

Aline e Carlos André recém tinham se mudado para a Lanceiros Negros Vivem quando ocorreu a reintegração de posse |  Foto: Maia Rubim/Sul21

 

Com o coração doído, saíram do hotel, mas já tinham se apegado a ideia de uma noite quente sob lençóis. Com o filho prestes a nascer, resolveram ir conhecer a Lanceiros. Conversaram com um e com outro, os coordenadores lhes explicaram as regras e os compromissos que teriam ao entrar para o movimento. “Para nós, era tudo tranquilo, depois de tudo que a gente já passou. Com o maior gosto, a gente faz”, diz Carlos.

Receberam um quartinho – um quartão, segundo Aline, no antigo hotel desativado, com direito a banheiro e tudo. O espaço vazio passou a abrigar as roupas que carregavam no carrinho e a televisão que haviam comprado com o dinheiro doado. “De repente, tu se vê num quartinho de um metro e meio por dois de comprimento”, diz Carlos. “Já começamos a fazer planos na nossa cabeça. Vamos comprar guarda roupa”, complementa Aline. “Bota isso aqui, bota isso ali. Já dou uma pintadinha aqui, uma ajeitadinha ali, aí o castelo se construiu na hora”, emenda o marido.

Era a primeira experiência deles em ocupação. Instalados no quartinho, a primeira coisa que fizeram foi ir a uma assembleia de moradores para se apresentar e receber uma tarefa. “Todos tinham uma tarefa. Um limpa a cozinha, outro limpa o banheiro, outra cuida do almoço, outro lava a louça, e mantém o espaço meio que organizado. Não fica todo organizado porque é muita gente, mas a gente está sempre indo atrás de deixar”.

Quando a Lanceiros foi reintegrada, Aline estava no hospital | Foto: Maia Rubim/Sul21

Vendendo balas para clientes das lancherias e restaurantes da Andradas, já visualizavam que morar na ocupação seria uma “mão na roda”. “A gente deu um salto além do que a gente imaginava. Para quem não via uma luz no fim do túnel, se escancarou o sol”, diz Carlos.

Mas a alegria duraria pouco. A primeira noite dormiram juntos. No dia seguinte, saíram de casa às 6h para ir até o Hospital Fêmina, onde estava marcada para as 15h45 a cesárea de Aline. Carlos deixou ela ali e voltou para o Centro, retornando à tarde para acompanhar o parto. Mesmo com medo de sangue, ficou do lado da esposa, segurando sua mão. Carlos Augusto veio ao mundo prematuro, aos sete meses de gestação, mas cabeludo como se já fosse grandinho. Precisaria ficar tomando antibióticos pelos dez dias seguintes. Não daria tempo de conhecer a nova casa.

Quando se mudaram para a Lanceiros, a coordenação do MLB tinha lhes colocado a par de toda a situação e de que o risco de reintegração era iminente, mas também tinham lhes oferecido o caminho da luta pela moradia, da luta por direitos. A outra opção era continuar na rua. Não queriam isso para o filho. O casal já tem um filho, Ryan, 3 anos. Entre as idas e vindas da rua para as pensões, sob o temor de que o Conselho Tutelar os encontrasse vivendo uma vida cercada pelo tráfico e o consumo de drogas, preferiram deixá-lo sob os cuidados de uma irmã de Carlos, que mora na Vila Cruzeiro. Não queriam passar por essa escolha de novo.

Na noite depois do parto, Carlos, ainda com uma caixa de balas em mãos, voltou à ocupação para tomar um banho. Mas a Brigada Militar já fazia o isolamento da Andradas entre as ruas Caldas Júnior e João Manoel. A ocupação estava inacessível, ninguém entrava. “E eu só com um casaquinho e as balinhas”, lembra Carlos.

Não podia passar, mas insistia. “‘Não passa’, ‘Que, não passa o quê’, ‘Tu não sabe de nada’, ‘Quem não sabe é tu’, mas quando eu olhei aquele paredão [de brigadianos], pensei: ‘Ih, sujou’”. E agora? E as roupas? E as doações que tinham recebido? E a televisãozinha?

Carlos e Aline já imaginavam o que poderia acontecer, tinham acompanhado a desocupação do prédio da esquina da General Câmara com a Andrade Neves. “Lá, eles fizeram a maior ladaia, jogaram bomba e reviraram tudo. Com um monte de criança lá e eles jogando bomba. Queria ver se tivesse o filho deles lá?”, diz Carlos. “Quando eles entram lá na Garibaldi, lá na Voluntários, entram pianinho, não entram fazendo aquilo tudo. Ali, já chegaram com as armas apontadas e explodindo tudo”.

Diante do grande aparato policial montado, Carlos pensou: “O bicho vai pegar”. Sem outra opção, ficou na rua, junto aos apoiadores impedidos de chegar perto do edifício, relegado apenas a gritar, “podre de cansado”, mas ficou. Só a caixinha de balas que não soube onde foi parar.

Carlos André diz que acreditava que a BM iria entrar no prédio |  Foto: Maia Rubim/Sul21

A lembrança que tem é que, dentro da ocupação, as pessoas já estavam bem conscientes de que, por decidirem resistir, iriam ser retiradas à força. Aline tinha o medo de que a entrada seria pelo teto, com os policiais descendo de helicóptero. “Achei que eles iam descer pela cordinha e invadir lá”, diz. Na manhã do dia 24, quando um helicóptero sobrevoou o local, Carlos teve a impressão de que o presságio da esposa se confirmaria. “Eu digo, ‘Bah, preencheu’”.

Veio então o acordo. A desocupação seria ‘pacífica’, tanto quando pode ser pacífica uma negociação conduzida sob a ameaça de centenas de homens do Batalhão de Choque fortemente armados, a postos para empregar a força contra pessoas que tentavam permanecer no lugar que consideravam sua casa. “Foi um milagre. Inacreditável, com todo aquele aparato que eles tavam, até aqueles capacetes pretos que tu vê em filme. Pé de cabra, eu pensei que iam derrubar o prédio”, diz Carlos. “Da polícia a gente só espera coisa ruim, que eles iam bater em todo mundo. Mas não, até que foram um pouco educados. Surpreenderam”.

Carlos foi levado junto com outras famílias – Aline ainda ficaria mais três dias no hospital – para o Vida Centro Humanístico, localizado na Av. Baltazar de Oliveira Garcia, em um microonibus. O acordo previa a realocação das famílias para um espaço sem uso no Centro até que uma solução definitiva para as famílias fosse alcançada. Chegando lá, encontraram um lugar sujo, cheio de armários e outras coisas deixados para trás. Tiveram que fazer um mutirão de limpeza, colocar o que encontraram em uma área diante dos salões cedidos para abrir espaço para os pertences das famílias. “Passamos um trabalhão, e ainda não ficou bem limpo”.

Encontraram também buracos no telhado, que permanecem, apesar da promessa de que seriam tapados. “Se vem uma chuva, dá enchente”, diz Aline. “Qualquer chuva que vier, molha tudo”, complementa Carlos. Dizem que não tem lugar seguro em caso de chuva e que até ouviram uma conversa de que viria um pessoal colocar uma lona no teto, para servir como espécie de forro, mas até o início da última semana – quando foi feita a entrevista com o casal – nada. Apesar de não ter chovido muito forte desde que se mudaram para o local, mais conhecido como Centro Vida, contam que já havia sido suficiente para entrar água no salão da frente e no dos fundos e que a água entra “pelos cantinhos”. “Mas se dá aquelas chuvas de uma semana, estamos perdidos”, diz Aline.
No Centro Vida, ganharam um cantinho, que dividem com outro antigo morador da Lanceiros, onde colocaram o sofá-cama onde dormem, a TV e o carrinho de Carlos Augusto, que ganharam em uma doação. O “quarto” é dividido apenas pelos pertences de outras pessoas e por cortinas. Já não havia um espaço para cada família, como no antigo hotel Açores. “É como se tivesse dado uma enchente e nos levado para um ginásio”, resume Carlos. Dez dias depois de nascer, o filho se mudou para o local.

Moradores da Lanceiros Negros Vivem foram levados para o Centro Vida após a reintegração do dia 24 de agosto | Foto: Maia Rubim/Sul21

No Centro Vida, as famílias da Lanceiros ainda estão juntas, ao menos uma parte delas. A ideia é reunir todos os 24 alugueis sociais que a Prefeitura se disponibilizou a ceder para as famílias, cada um no valor de R$ 500, e alugar um local único para todos continuarem juntos. Mas, por enquanto, a vida mudou bastante. Já não há a facilidade de morar no Centro. Como trabalhar?

Há duas opções de linhas de ônibus que os levam direto ao Centro, mas a passagem ficou cara para ir todos dias. Ainda tem o fato de que Carlos Augusto precisou ficar dez dias tomando antibióticos e precisavam usar o pouco dinheiro da passagem para buscar o remédio. Alguns dias, conseguiram passagem junto à assistente social do posto de saúde mais próximo para ir ver o bebê no hospital. “Não tá fácil. Quatro real a passagem, é salgado”, diz Carlos. Mas ele continua indo ao Centro vender balas. Tem dias que consegue vender bem e sobra dinheiro para a passagem, mas em outros nem para isso dá. “Gastou com a passagem e já era. Aí vai ter que desenrolar com o cobrador”.

Carlos diz que, se o Centro Vida fosse um pouco mais próximo, até daria para ir caminhando, afinal, caminhavam vários e vários quilômetros por dia quando trabalhavam com reciclagem, mas é tão longe que ir ao Centro a pé é inviável. “Aqui, é uma semana para chegar”, diz. De ônibus, a viagem dura uns 30 minutos, arrisca Carlos. “Dependendo do ônibus”, ressalta Aline. “O Parque dos Maias é muito lerdo, além dos buracos. O Rubem Berta vai voando, já”.

Fora isso, dizem que está sendo bom morar no Centro Vida. Melhor que na rua, ao menos. “Eu achei que viver no coletivo ia ser mais difícil, mas está sendo tranquilo”, diz Carlos. “Não é tão difícil, não. Um respeitando o outro é a conta”, corrobora Aline.

Carlos agora está procurando emprego. Com o problema da distância, se vê obrigado a “desistir da balinha”. “Mas, até eu ter um comprovante de residência, é difícil arrumar um emprego”.

Depois de tudo que passaram, não vai ser agora, que tem um filho recém-nascido, que vão desistir. “Lá nós fomos acolhidos com o maior carinho, de uma forma que os órgãos que têm condições de fazer isso para as pessoas não fazem. Saímos comendo um pratão cheio de coisa. E repetimos”, diz Carlos. “E conversando com as pessoas. Tudo gente boa”, complementa Aline. “Não tem como eu não lutar por essa causa”, finaliza o marido.

Carlos e Aline diziam que irão continuar na luta pela moradia | Foto: Maia Rubim / Sul21

Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora