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3 de julho de 2017
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19:59

Líder em casos de HIV, RS agora sofre com falta de remédios para crianças e gestantes

Por
Luís Gomes
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Movimentos sociais denunciam falta de medicação para HIV |Foto: Divulgação/Abia

Luís Eduardo Gomes

Campeão de taxas de infecção de HIV/Aids, o Rio Grande do Sul vem enfrentando nos últimos meses falta de remédios na rede pública para o tratamento da doença em gestantes, recém-nascidos e crianças menores de cinco anos. Movimentos sociais que trabalham com a população infectada e suas famílias alertam que o problema é fruto do sucateamento das políticas para a área e que podem ter consequências graves, uma vez que a falta do medicamento AZT para gestantes pode impactar diretamente na transmissão do vírus para recém nascidos.

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A partir de relatos de pais, o Grupo de Apoio a Prevenção da Aids (Gapa-RS) e o Fórum ONG/Aids do Rio Grande do Sul denunciam que há falta do medicamento AZT na forma injetável para maternidades e na apresentação de xarope para as crianças de até cinco anos.

Em depoimento feito ao Gapa, um pai (que não quis se identificar) de uma menina de 5 anos infectada com o vírus, mas que está saudável e com carga viral zerada, afirma que há um grande problema de falta de informação na rede sobre a situação dos medicamentos. A criança depende do AZT xarope, mas o pai reclama que há dois meses tem se tornado cada vez mais difícil consegui-lo e que há um jogo de empurra-empurra entre os governos estadual e federal sobre a responsabilidade pela falta da medicação. “É muito complicado as pessoas viverem já de certa forma discriminadas e à margem, não só da medicação, mas de informação também. Como a única maneira de adquirir é através do Estado, a gente fica à mercê de saber se vai vir ou não, sem saber como, por onde, em que condições”, diz.

O pai conta que foi informado que uma carga emergencial de medicamentos estaria vindo de Pernambuco. “Fica a dúvida do condicionamento do medicamento, porque deve respeitar a questão de temperatura”, diz, acrescentando que recentemente também já ouviu denúncias de frascos quebrados. O temor dele é que, sem medicação, sua filha posso vir a adoecer. “Colocar a saúde de uma criança em risco por causa de situações que, ao meu ver, deveriam ser facilmente contornáveis é uma irresponsabilidade. A gente fica impotente, a gente fica sem acreditar que isso possa acontecer”, diz.

Carla Almeida, do Gapa, afirma que os pais têm feito uma “verdadeira saga” nos serviços de saúde atrás de remédios e, quando encontram, têm recebido doses fracionadas, o que os obrigada a estar constantemente retornando em busca da medicação.*

“A falta de AZT tem impacto muito grande na adesão ao medicamento. A falta de AZT injetável para gestantes impacta fortemente na transmissão vertical. Como tu fala em infância melhor quando tu não tem o básico para uma criança que precisa de tratamento especial”, diz, acrescentando que este problema seria resultado do descaso com as políticas de enfrentamento ao vírus HIV. “Há muito tempo, a gente vem dizendo que a resposta à Aids só ocorre no plano biomédico. Agora, nem no plano biomédico ela é efetiva”, afirma Carla.

Rubens Raffo, do Fórum ONG/Aids, salienta que a falta de medicamento afeta principalmente as famílias mais carentes, que não tem condições de adquirir o AZT pela rede privada. “As crianças ficam praticamente à mercê do Estado no sentido de tratamento. A maioria das crianças que tem HIV hoje são pessoas de nível social muito baixo, não tem como ter acesso a esses medicamentos que ainda são muito caros, só tem acesso na rede pública”, diz.

Raffo afirma que uma criança que interrompe o tratamento fica mais suscetível a criar resistência aos medicamentos e, consequentemente, de contrair Aids e morrer. “Quando nasce com vírus e o recém nascido recebe o tratamento, o AZT evita que se desenvolva a síndrome de Aids. A pessoa pode ter o HIV controlado”, explica. “A pessoa pode viver por décadas, mas para isso precisa da medicação. Se ela não tem esse acesso, pode vir a óbito”.

Hospital de Clínicas em Porto Alegre abriga um dos principais serviços de enfrentamento ao vírus HIV no RS | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Hospital de Clínicas

Coordenadora do Programa de Aids do Hospital de Clínicas, a pediatra Carmem Lúcia Oliveira da Silva diz que a falta do AZT em suas versões injetável e xarope começou a ser sentida há cerca de dois meses, mas se agravou no último mês. “Nos últimos 15 dias está um caos”, relata a médica. Segundo ela, mães de crianças infectadas que moram no interior, ao virem para Porto Alegre para consultar no Clínicas, têm relatado falta de medicamentos para seus filhos nas farmácias e que estão recebendo a recomendação de trocarem de medicação. “Mas isso não é assim. Não existe a possibilidade de trocar de remédio”, diz.

A médica explica que o AZT injetável é aplicado na veia das gestantes infectadas no momento em que elas entram em trabalho de parto e continua pingando até o momento em que o cordão umbilical do recém-nascido é cortado. No Brasil, o medicamento é aplicado em gestantes que têm carga viral circulante no momento do nascimento, mas no RS, devido aos elevados índices de epidemia, a orientação da Secretária Estadual de Saúde (SES) é que seja aplicado em todas as gestantes infectadas. Carmem Lúcia salienta que a aplicação do medicamento é essencial para coibir a chamada transmissão vertical da doença, de mãe para filho, diminuindo em muito a incidência do vírus nos recém nascidos. “É a diferença de ser infectado ou não ser. É toda uma história de vida de uma criança que pode mudar por causa disso”, diz.

Após o parto, é essencial que o bebê tome o AZT em forma de xarope pelo menos nas primeiras quatro semanas nos casos em que a doença não foi transmitida. Em caso de haver transmissão, a criança deve continuar tomando o xarope até a casa dos cinco anos, quando passaria então a tomar o AZT em comprimido. Na adolescência e na idade adulta, a medicação passa a ser a chamada 3 em 1. Segundo a pediatria, a princípio não há informação de falta desta última medicação.

A pediatra salienta que os médicos passaram a ter de fazer escolhas sobre quem receberá qual quantidade da medicação fracionada. Uma família da zona rural de Viamão, que não tem dinheiro para passagem, pode receber a preferência para ter acesso à quantidade mensal do medicamento em relação a outra que mora mais próxima do hospital. No entanto, ela pondera que a falta de medicamento, além do risco direto à saúde, prejudica o trabalho dos médicos no sentido de conscientizar as famílias sobre a importância de aderir ao tratamento e realizá-lo de forma adequada.

“A gente batalha muito junto com as mães sobre a importância da adesão ao tratamento, de tomar o remédio na hora certa, e agora nós não estamos entregando o remédio. É uma dupla mensagem. E por um tempo os pacientes ficam bem sem a medicação, então uma criança maior pode desistir de tomar o remédio”, diz.

Oficialmente, a Secretaria Estadual da Saúde reconhece que os estoques estão em queda desde o mês de abril porque o Ministério da Saúde vem entregando de forma irregular os medicamentos solicitados para atender os cerca de 40 mil usuários cadastrados no Estado. Os estoques de AZT xarope, por exemplo, caíram de 2.991 frascos no início de abril para 767 no início de junho (ver gráfico abaixo). Nota emitida pela SES na semana passada diz que o MS não esclarece a razão dos atrasos no envio dos medicamentos.

A reportagem do Sul21 entrou em contato coma SES em busca de informações atualizadas sobre a situação dos remédios e se há perspectiva de normalização da distribuição, mas não obteve retorno até o fechamento desta matéria.

RS é líder em casos

Nas últimas décadas, o Rio Grande do Sul e Porto Alegre vêm amargando a liderança nos rankings de maior incidência de HIV/Aids e de mortalidade entre pessoas infectadas. Entre 2007 e junho de 2016, foram notificados no SINAN 136.945 casos de infecção pelo vírus HIV no Brasil, sendo 13.855 no RS. Isto é, quase 10% das notificações do Brasil foram registradas no Estado.

Fonte: Boletim Epidemiológico HIV/Aids 2016

Enquanto a média nacional vem se mantendo de certa forma estável (ver gráfico abaixo) com a taxa de infecção da casa dos 20 casos por 100 mil habitantes, o RS chegou a ter mais de 45 casos por 100 mil habitantes em 2007. Desde esse pico, os números vêm caindo de forma gradual. Em 2012, a taxa era de 43,1/100 mil habitantes. Em 2015, passou para 34,7. Em Porto Alegre, onde a realidade é ainda mais alarmante, a taxa de detecção era de 108,1 casos por 100 mil habitantes, em 2010, e caiu para 74,0 em 2015. Os índices de mortalidade também estão em queda no Brasil e no RS, passando de 6,1 e 11,9 óbitos por aids para cada 100 mil habitantes em 2004, respectivamente, para 5,6 e 10,2 em 2015.

Por outro lado, a taxa de detecção de HIV em gestantes, índice em que o RS também ocupada a liderança nacional desde 2000, vem aumentando. Dos 99.804 casos de gestantes infectadas por HIV entre 2000 e junho de 2016, 18.170, ou 18,2% do total, foram registrados no RS. Já a taxa de detecção entre recém nascidos, também a maior do Brasil, atingiu o ápice de 10,1 infectados por mil recém nascidos, o que representa 1% do total de recém nascidos. A média nacional é de 2,7 casos por mil recém nascidos.

Fonte: Boletim Epidemiológico HIV/Aids 2016

Carmem Lúcia analisa que o Brasil se tornou referência no tratamento de HIV/Aids porque, além da distribuição gratuita de medicamentos, havia forte investimento em ações de prevenção e na capacitação de médicos, o que acabou se “desmanchando” ao longo do tempo. Segundo ela, a deterioração das políticas públicas de enfrentamento ao vírus vêm sendo ainda mais sentidas desde a mudança no governo federal com o impeachment de Dilma Rousseff.

Ela relata, por exemplo, que há muitos anos já não há capacitação para novos médicos, o que acaba se tornando um problema cada vez maior a medida que a epidemia vem mudando nos últimos anos, com mudança no perfil dos infectados. “A epidemia vai mudando de cara. Os últimos dados mostram que aumentou muito entre homens que fazem sexo com outros homens e na terceira idade. Até 10 anos atrás, tinha outro perfil”, diz.

De acordo com o boletim da SES, a taxa de infecção na faixa etária de 50 a 59 anos aumentou de 51,9 por 100 mil habitantes em 2006 para 61,1 em 2015. Já na faixa etária de 60 anos ou mais, a taxa subiu de 19,8 para 21,9 no mesmo período. Outra faixa etária que apresentou forte crescimento foi a de 15 a 19 anos, saltando de 4,0/100 mil em 2006 para 9,4/100 mil em 2015.

Raffo também reclama do contingenciamento dos exames de carga viral. Segundo ele, por determinação do Ministério da Saúde, apenas gestantes e bebês estão autorizados a fazer de forma gratuita o exame que calcula a quantidade de vírus circulando no sangue. “O médico precisa saber como está o organismo, se a medicação está surtindo efeito ou não, porque o vírus HIV tem uma facilidade muito grande de criar resistência aos medicamentos. Portanto, é essencial para personalizar o tratamento. Sem acesso aos exames, o médico trata o paciente de forma meio às cegas”, diz.

Carmem Lúcia salienta que se vê cotidianamente na prática os resultados da falta de medicação e da falta de detecção das doenças. “Eu tive uma mãe que adoeceu no pós parto imediato, ninguém sabia do vírus. A criança não tomou o remédio e se infectou”. Teve uma mãe usuária de drogas que se atrapalhou com a medicação e o bebê se infectou. São casos recentes”, diz.

Confira a íntegra da nota do governo do Estado (29/06)

Considerando as últimas notícias veiculadas na imprensa no estado do Rio Grande do Sul, a Secretaria Estadual da Saúde vem esclarecer com as seguintes informações:

O abastecimento dos medicamentos antirretrovirais é de responsabilidade do Governo Federal, cabendo aos estados realizar a distribuição aos seus serviços. Ocorre que desde o mês de abril, as remessas vem sendo entregues ao Estado de forma irregular e aquém do quantitativo necessário para garantir o atendimento dos 40.000 usuários cadastrados. Como exemplo, abaixo é apresentado o histórico de ressuprimento de três medicamentos atualmente em situação crítica no RS:

Fonte: Secretaria Estadual da Saúde

A equipe logística do estado e, principalmente os serviços, vem trabalhando exaustivamente com estratégias como: remanejamentos e fracionamento das dispensações no intuito de minimizar o impacto na terapia dos usuários. Por rotina, o estado mantém contato e registra as dificuldades enfrentadas ao DIAHV/MS. No entanto, esse não esclarece oficialmente a razão dos atrasos no envio dos medicamentos.

Por fim faz-se importante considerar que a partir do recebimento dos medicamentos no Estado ( município de Porto Alegre) damos início à logística de reabastecimento dos serviços das nossas Coordenadorias Regionais de Saúde (3ª e 19ª) e toda a Região Metropolitana e Capital, que é reabastecida diretamente pelo Almoxarifado Central , o qual compete o recebimento, armazenamento, separação e distribuição.

A nota é assinada pelo diretor do Departamento de Ações em Saúde, Elson Farias e pela diretora substituta da Assistência Farmacêutica, Simone Amaral.

Teste de Aids

Saiba onde e como fazer o teste rápido de HIV no RS.

*Correção: Inicialmente, a matéria creditava de forma equivocada a Carla Almeira a informação de que “algumas famílias relataram que têm recebido a orientação de diluir o AZT xarope”. A informação foi suprimida do texto. 


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