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18 de julho de 2017
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12:28

Grupo da UFRGS mostra a realidade de catadores que pode ser proibida em breve em Porto Alegre

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Sul 21
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Grupo da UFRGS mostra a realidade de catadores que pode ser proibida em breve em Porto Alegre
Grupo da UFRGS mostra a realidade de catadores que pode ser proibida em breve em Porto Alegre
Ana Paula e dois dos filhos. A reciclagem é o sustento da família | Foto: Victor Culau/Gajup-Saju

Fernanda Canofre

Ana Paula tinha sete anos quando a mãe virou recicladora – ou catadora, termo mais comum de ouvir quando as pessoas se referem ao trabalho de quem passa os dias trabalhando com o lixo. A mãe sustentava Ana e quatro irmãos parando em supermercados, varrendo a calçada ou fazendo algum serviço qualquer do dia, por trocados, comida ou alguma outra coisa que tivessem para lhe dar no dia. A vida mudou quando um atendente de um dos supermercados onde ela costumava passar em busca de comida perguntou “por que ela não pegava aquelas caixas de papelão, as garrafas de vidro e ia vender no ferro velho, logo ali?”.

O punhado de papelão virou dinheiro na mesa da família. No ferro velho, ela descobriu que poderia sustentar os filhos e ter uma renda mais estável do que depender do serviço dos mercadinhos aqui e ali durante o dia. Passou a traçar uma rota entre os bairros Petrópolis, Cristal, Cruzeiro. Passava o dia puxando o carrinho sozinha para reciclar o que as pessoas misturavam no lixo. Não parou nem durante a gravidez do sexto filho.

No colégio, Ana Paula conta que tinha vergonha, porque as colegas gostavam de implicar com ela, dizendo que a mãe era “lixeira”. Quando tinha de 13 para 14 anos, porém, Ana começou a ter que trabalhar ela mesma puxando um carrinho. A mãe foi convidada para ajudar no galpão do mesmo ferro velho onde vendeu o primeiro pedaço de papelão e aceitou. A rua ficou para ela.

Depois que começou a namorar outro catador, passou a gostar da profissão. Em 2013, por 9 meses ela tentou trabalhar de carteira assinada como auxiliar de serviços gerais. Não gostou e disse que a renda era ainda menor do que o que tira na reciclagem. Hoje, aos 23 anos, é do lixo ela que sustenta os três filhos do casal e o galpão do Sossego, administrado por eles. “Quando eu estava na escola eu pensava em ser professora, qualquer outra coisa, mas não pensava em ser catadora. Mas como arranjei um companheiro que é catador, acabei indo por esse caminho”, conta ela.

Ana e o companheiro, Vanderlei são os primeiros catadores a terem suas histórias de vida compartilhadas por uma campanha do Grupo de Assessoria Justiça Popular (GAJUP), vinculado ao Serviço de Assessoria Jurídica Universitária (SAJU) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Desde o último final de semana, o grupo passou a compartilhar nas redes sociais as histórias e visões dos catadores sobre a proibição da circulação de carrinhos que, se aprovada pela Câmara de Vereadores depois do recesso, passa a valer em agosto.

Veto de Marchezan volta à Câmara

O fim da circulação de Veículos de Tração Humana e Animal (VTH e VTA) é um dos eixos do programa Todos Somos Porto Alegre, criado pela gestão de José Fortunati. A proposta era ajudar que carrinheiros e carroceiros pudessem ser inseridos em outras atividades, através de cursos ofertados pela prefeitura municipal. Em setembro do ano passado, com o final do prazo, a prefeitura reconheceu que o período estipulado para a transição não havia sido suficiente e resolveu estendê-lo.

O parecer conjunto assinado por diversas comissões do Legislativo municipal reiterou a posição. Segundo o vereador Marcelo Sgarbossa (PT), “centenas de usuários” ainda não haviam sido cadastrados, a meta de transposição das atividades ainda não havia sido atingida em bairros como Humaitá, Navegantes e Centro com os eixos Voluntários da Pátria e Ipiranga. A proposta era de que o prazo de proibição se estendesse até 2020.
Porém, em junho, o prefeito Nelson Marchezan Jr. (PSDB) deu veto total à proposta. No texto, ele alega “impedimentos de ordem legal para regular a tramitação do projeto”. Na interpretação de Marchezan, a proposta caberia ao Executivo e não ao Legislativo, tendo assim um vício de origem: “o Projeto de Lei invade, sobremaneira, a seara de atividades tipicamente administrativa, ferindo o princípio da Independência dos Poderes”.

O projeto irá agora para apreciação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, assim que os vereadores voltarem do recesso, em agosto. Se aprovado, os carrinheiros podem ficar proibidos de circular. Para muitos, isso significaria perder a única fonte de renda de uma hora para a outra.

O Gajup/Saju acompanha a situação de centenas de catadores desde 2013 e chegou a apresentar uma representação ao Ministério Público do Trabalho (MPT) questionando a lei da proibição. Para eles, a saída seria que o poder público atual pudesse começar a debater formas de integrar o trabalho dos recicladores com o Executivo, a exemplo das coletas seletivas solidárias.

“É um modelo que já existe em outras cidades, como Belo Horizonte ou mesmo aqui na região metropolitana, em Novo Hamburgo. A prefeitura faz parceria com os galpões e com os catadores para que façam a coleta. É muito mais econômico, do que pagar a uma empresa privada que só vai enterrar o lixo em um aterro”, explica Djeison André Diedrisch, advogado, membro do Gajup.

Na avaliação dele, a decisão da prefeitura de impor um veto à extensão de prazo, foi “arbitrária”. “Querendo ou não, os catadores trabalham há muito tempo dessa maneira e é uma área completamente estruturada. Não é algo que enriquece as pessoas, mas é um trabalho digno, com o qual eles conseguem sustentar as famílias. São milhares em Porto Alegre que dependem disso”.

Para recicladores, a proibição ignora a realidade da profissão

Ana Paula conta que tentou fazer um dos cursos propostos pela prefeitura como parte do Todos Somos Porto Alegre. Na época em que o galpão de reciclagem dela e do marido foi fechado, colocou em frente à casa uma placa oferecendo serviços de pedicure e manicure, para tentar sustentar a família. A ideia não deu certo.

“As pessoas falavam: eu não vou fazer com ela, ela deve ter pego o esmalte no lixo. Não consegui nada com esse curso. ‘Vai que ela coloca água no esmalte, vai que ela pegou do lixo’. Sabiam que antes era o galpão de reciclagem, então ninguém vinha”, lembra.

Ana Paula, assim como muitos recicladores, diz que o projeto não conhece sua realidade. “O catador não cata por opção de vida, por vocação, mas porque não tem outra alternativa, porque é excluído do mercado de trabalho”, explica Paulo Guarnieri, que faz parte da Arevipa (Associação de Reciclagem Ecológica da Vila dos Papeleiros). Segundo ele, muitos catadores foram contrários ao programa desde sua criação.

“São n problemas. A maioria de ordem estrutural. Há [entre os catadores], um grande número de analfabetos funcionais, a maioria só assina o nome. Tu coloca no programa uma alternativa que não existe. O que eu percebo,por trás dessa política, é uma visão higienista de cidade, de limpar a cidade desses carrinhos. A condição econômica dessas pessoas, como vão sobreviver não foi pensado. Não podia dar certo, como não deu certo”.

A reportagem entrou em contato com o gabinete do prefeito Marchezan para entender qual a proposta e o programa que a prefeitura atual tem pensado para a categoria, caso a proibição passe na Câmara no próximo mês. Até a publicação desta reportagem, nem a solicitação de entrevista com o prefeito, nem as questões enviadas haviam sido respondidas.

Enquanto isso, Ana e a comunidade de 20 recicladores com a qual trabalha no Sossego, dizem que vão tentar reverter a situação. Há três meses, depois que se mudou do bairro Cristal para o Santana, ela perdeu o auxílio do Bolsa Família, que ajudava a manter os três filhos. A agente comunitária responsável por seu cadastro não teria atualizado os dados. Não há perspectiva de quando ou se Ana Paula terá condições de voltar a ter acesso ao programa.

“Eu quero que eles tenham uma vida melhor. Talvez se daqui um tempo a Prefeitura for outra, se a coisa estiver melhor, eles possam trabalhar também assim. Mas, por enquanto, é difícil”.


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