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2 de julho de 2017
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17:41

Amós Oz sobre Israel e Palestina: ‘É um choque entre o certo e o certo. O que é a minha definição de tragédia’

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Sul 21
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Amós Oz vaio ao Brasil para apresentar seu novo livro e ser palestrante dentro do Fronteiras do Pensamento | Foto: Luiz Munhoz/Divulgação

Fernanda Canofre

“O amor à humanidade é uma faca de dois gumes”. É isso que o médico que serve como personagem central para o conto Inimigos, do russo Anton Tchékhov (1860-1904), responde ao homem que quer levá-lo contra a vontade para tratar sua esposa, apenas cinco minutos depois de o filho pequeno do doutor ter morrido de difteria. O amor à humanidade ao qual o homem apela para que o médico saia de casa com ele, é o mesmo que o médico usa para pedir que o homem o deixe em paz com seu luto. A contradição de uma história de dois lados certos. Não é à toa que o escritor israelense Amós Oz considera Tchékhov seu mentor intelectual.

Nascido em Jerusalém no primeiro ano da Segunda Guerra Mundial, Oz — que escolheu a palavra hebraica de “homem que carrega um fardo pesado” como sobrenome para ter coragem de seguir — é considerado o principal intelectual israelense. E um dos primeiros a escrever literatura contemporânea em hebraico, em uma retomada do idioma depois de séculos relegado aos textos antigos. “Escrever em hebraico é como tocar com uma orquestra de câmara em uma catedral”, afirma ele, antes de avisar que pararia por aí a explicação do tema que o emociona a cada vez que fala.

Além de autor prolífico de romances, o nome de Oz também se firmou como um dos mais importantes ensaístas políticos contemporâneos. Crítico do governo de seu país, mas também batendo de frente com os movimentos que organizam boicotes em defesa da Palestina. Assim como o amor à humanidade na visão do médico de Tchékhov, a visão política de Oz também tem dois gumes. O que faz com que ele seja considerado traidor e criticado por pessoas dois lados da discussão. Diante dela, ele assume um imperativo categórico próprio: “Eu acredito em soluções pragmáticas e não em salvações metafísicas. Soluções que significam ceder. Elas não são sempre perfeitas”.

Assuntos complexos exigem soluções complexas para ele. O escritor diz reservar aos seus romances as contradições, o tecido complicado que busca entender as pessoas em todas as suas diferenças. Porém, foi sua análise política, que ele defende como algo claro e pontual, que o trouxe ao Brasil esta semana para falar do lançamento de seu novo livro Mais de uma luz. Em três ensaios, Oz discute fanatismo, o gene incutido na civilização judaica que faz com que ela “interprete, reinterprete e contrainterprete” diante de todo evento e como conviver “em uma das regiões mais disputadas do mundo”.

Os três temas foram os eixos da fala que deu em Porto Alegre, na quarta-feira (28), durante o Fronteiras do Pensamento, para um Salão de Atos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) lotado. Confira alguns dos principais pontos da fala de Amos Oz:

Fanatismo

‘Os fanáticos sempre irão te dar um resposta simples. Uma resposta que cobre tudo’ | Foto: Luiz Munhoz/Divulgação

Dois anos antes de publicar Mais de uma luz, Oz havia lançado no Brasil Como curar um fanático, outra coletânea de ensaios sobre o conflito entre Israel e Palestina e religião. Antes de analisar a questão, o autor se debruçou sobre o que considera ser “a nova sedução do diabo”, que está espalhada em todo o mundo, cooptando cada vez mais seguidores: o fanatismo.

“Quanto mais complexas as questões da vida vão se tornando, mais as pessoas nas ruas desejam respostas simples. Fanáticos sempre podem oferecer respostas simples. Eles sempre podem te dizer quem culpar. Eles sempre podem te dizer quem deve ser destruído, para que o mundo seja salvo. Diferenças étnicas e raciais, pluralismo, multiculturalismo. Cada uma destas questões é complexa. Os fanáticos sempre irão te dar um resposta simples. Uma resposta que cobre tudo. Isso, no meu ponto de vista, é o novo tipo de sedução do diabo. Respostas simples, simples, simples, para tudo”, afirma.

Mas, como qualquer caso de erva daninha, Oz acredita em antídotos para enfraquecer fanáticos. “Um dos antídotos para o fanatismo é o ceticismo. Um dos antídotos para o fanatismo é a curiosidade. Um dos antídotos para o fanatismo é o senso de humor. Em toda a minha vida, nunca conheci um fanático com senso de humor. Nunca vi uma pessoa com senso de humor se tornar fanático, a não ser que ele ou ela tenha perdido o senso de humor. O que acontece. O humor é a habilidade de rirmos de nós mesmos, é a habilidade de nos enxergarmos como os outros nos enxergam. Todos nós, mesmo aqueles que são muito importantes e muito sérios, têm um lado meio ridículo”.

“Se nós conseguirmos vê-lo em nós mesmos, então, talvez consigamos nos tornar imunes ao fanatismo. Israel não é imune ao fanatismo, mas ainda assim segue sendo uma sociedade bastante argumentativa. Eu não gosto de fazer profecias — é muito difícil falar em profecias, vindo da terra dos profetas, onde há muita competição no setor de profecias — é por isso que eu só faço profecias sobre o passado, não sobre o futuro”.

A solução de dois Estados

‘No Apartheid definitivamente se saiba quem era os caras bons e o maus. Israel e Palestina não é assim’ | Foto: Luiz Munhoz/Divulgação

À primeira vista, quando Amós Oz fala que critica o governo de Israel e que defende a solução da criação de dois Estados — um para judeus, outro para os palestinos muçulmanos — poderia se ter a impressão de que ele se alinha com quem critica o pinkwashing (a tentativa de Israel de cobrir violações de direitos humanos contra a Palestina, usado políticas para população LGBT). No entanto, não é bem assim. Oz vê na região um caso onde em que os dois lados estão certos e há duas injustiças.

Para o autor, o olhar maniqueísta jogado sobre a questão é o que mais atrapalha. “Quem são os mocinhos e quem são os bandidos. Muitas, muitas pessoas, inclusive neste país, inclusive em universidades em todo o mundo, escolhem um lado. Normalmente, escolhem o lado contra Israel, sem saber os detalhes. Eles querem assinar uma petição apoiando os mocinhos, participar de alguma demonstração contra os bandidos e, depois, dormir se sentindo bem consigo mesmos. Senhoras e senhores, Israel e Palestina não é sobre bons e maus. É um choque entre certo e certo. Recentemente e frequentemente, um choque entre errado e errado. Não é um filme de Hollywood”, diz ele.

O escritor ainda coloca o conflito em sua região como algo que não é “moralmente simples”, como os demais conflitos do século XX. “Preto e branco. Fascismo e antifascismo era preto e branco. Qualquer homem decente queria tomar um lado. Colonialismo e anticolonialismo, preto e branco. Gulags, campos de concentração, câmaras de gás, preto e branco. Vietnã, preto e branco. Apartheid, definitivamente se saiba quem era os caras bons e o maus. Israel e Palestina não é assim”.

‘Pessoas decentes, em todo o mundo, não tem que escolher entre ser pró-Israel ou pró-Palestina, mas deveriam ser a favor da paz’ | Foto: Luiz Munhoz/Divulgação

No entanto, a região onde está Jerusalém é a única terra natal que os dois lados conheceram. “Então, é um choque entre certo e certo. O que é a minha definição de tragédia. A diferença entre um filme ruim de Hollywood e uma tragédia grega profunda e complexa é que, na tragédia, temos o embate do certo e certo, às vezes entre injustiça e injustiça. Eu acredito que essa tragédia só pode ser resolvida com transigência. Eu acredito que pessoas decentes, em todo o mundo, não tem que escolher entre ser pró-Israel ou pró-Palestina, mas deveriam ser a favor da paz. Eu acredito profundamente em acordo”.

O acordo defendido por ele seria algo pragmático, construído com os dois lados dispostos a ceder. “Não acredito em amor universal, não acredito em irmandade universal. O que eu acredito é em acordos pragmáticos e transigentes. Eu acredito em coexistência pacífica. Eu acredito na paz, não no amor, como forma de cura para conflitos internacionais. Quando os hippies americanos dos anos 1960 produziram aquele slogan famoso ‘Faça amor, não faça guerra’, eu não me juntei a eles. Vou explicar porquê. Porque o oposto da guerra não é o amor, o oposto da guerra é paz. E vis à vis com os palestinos, meu slogan é ‘Faça paz, não amor’. Ceder não significa se render, não significa dar a outra face, simplesmente significa encontrar o outro, em algum ponto, no meio do caminho. Eu sei alguma coisa sobre ceder porque sou casado com a mesma mulher há mais de 55 anos”.

A única solução prática seria então, segundo ele, o reconhecimento de dois Estados: Israel e Palestina. “Eu acredito em soluções pragmáticas e não em salvações metafísicas. Soluções são estar dispostos a ceder. Elas não são sempre perfeitas (…) Eu acredito em uma solução de dois Estados — Israel ao lado da Palestina. Não acho que haja qualquer razão nestes poucos teóricos, sonhadores radicais, que acreditam que israelenses e palestinos deveriam parar de brigar, de repente, começarem a se amar, pular juntos em uma cama de lua de mel e ‘fazerem amor, não guerra’. Isso não pode funcionar. Não depois de 100 anos de raiva, amargura, injustiça, opressão, derramamento de sangue, terrorismo. Simplesmente não pode funcionar. Não estamos vivendo em um filme de Hollywood. Além disso, não existe mais nenhum país binacional que funcione no mundo. Olhem o que aconteceu com o Chipre, que costumava ser da Turquia e da Grécia. Olhem o que aconteceu com a antiga Iugoslávia, com a antiga União Soviética, o que está acontecendo agora mesmo na Síria e no Iraque. Então, achar que entre Israel e Palestina, ‘ônibus amarelos da integração vão formar uma nação’, não é sério. Isso só pode vir de sonhadores ou de teóricos radicais que não estão interessados, de verdade, na realidade”.

 Traidor

‘Se alguém encontrasse um remédio muito eficiente que curasse a cólera, eu não recomendaria que usasse o mesmo para curar praga’ | Foto: Luiz Munhoz/Divulgação

A ideia de fazer a pequena casa, menor que Bélgica e Dinamarca, virar dois apartamentos independentes não ajuda exatamente a popularidade de Amós Oz com seus conterrâneos. Nada que a vida não tenha lhe acostumado. Ao jornal The New York Times, Oz contou que foi chamado de “traidor” pela primeira vez quando tinha 8 anos e conversou com um soldado do Exército de ocupação, contrário ao país em que nasceu, que na época vivia sob o Império Britânico.

“[Ter dois Estados] é minha opinião, que não me faz muito popular entre israelenses mais militantes ou de extrema-direita. O que me faz muito impopular com os extremistas que estão na moda em campus universitários ocidentais, que acham que a receita para todo o mal do mundo é como na África do Sul. Viver juntos, esquecer as diferenças. A praga é uma doença terrível, cólera também é. Se alguém encontrasse um remédio muito eficiente que curasse a cólera, eu não recomendaria que usasse o mesmo para curar praga. Porque a doença é diferente, o paciente é diferente, o remédio também tem de ser diferente”, afirma Oz, sem entrar na questão de outra tática que vem sendo usada por artistas, inspirados na campanha que pedia fim ao apartheid: o boicote. “Muitas pessoas no meu país me chamam de traidor. Eu fui chamado de traidor muitas, muitas vezes na vida. Tanto pela direita, a direita militante e chauvinista, assim como por alguns extremistas da nova esquerda. Eu não me importo de ser chamado de traidor. Alguns dos meus heróis intelectuais foram chamados de traidores pelos seus contemporâneos”.

Esses heróis, segundo ele, vão desde o profeta Jeremias, passando pelos escritores Émile Zola, Thomas Mann, [Aleksandr] Soljenítsin e [Boris] Pasternak até políticos como Winston Churchill, Menachem Begin e Anwar Sadat, que negociaram a paz entre Israel e Egito, com o Monte Sinai sendo devolvido ao país de maioria muçulmana. “Então, deixe que me chamem de traidor. Eu pego isso do chão e uso na lapela, ao lado da Legião de Honra que recebi do presidente da França, há 15 anos. Para mim, é um emblema de honra”.

Ficção vs Análise política

‘Sou alguém que crê em soluções, não em salvações. Em co-existência pragmática, em transigência, não no amor universal’ | Foto: Luiz Munhoz/Divulgação

Oz reclamou que as pessoas têm dificuldade para diferenciar seu trabalho político do literário. “Meu trabalho político está claro, espero. Com frequência eu escrevo artigos irritados, porque só escrevo artigos políticos quando fico brabo, criticando meu governo. Ocasionalmente, pedindo que meu querido governo, por favor, vá para o inferno. Eles leem meus artigos e, por alguma razão, não vão para o inferno. Eu ainda não descobri o porquê”, definiu irônico, antes de prosseguir. “Mas, a cada vez que descubro que há mais de uma voz em mim, cada vez que eu sei que há alguma justiça para lados diferentes, para personagens diferentes, eu sei que estou grávido de uma história ou um romance, não de um artigo político. Quando eu digo ‘grávido’, devo revelar a vocês que, ao menos na minha carreira literária, houve mais abortos e abortos espontâneos do que partos. Mas isso é a vida”.

Enquanto seus artigos seguem uma linha racional e exata de como Amós Oz passou a ver a questão Israel-Palestina, seus livros não são assim. Neles, as tramas e personagens são tão complexos, contraditórios e moralmente ambíguos quanto à própria vida. Onde não existe cura milagrosa, apenas uma recuperação passo a passo, apesar do que os seres acreditam.

“Sou alguém que crê em soluções, não em salvações. Em co-existência pragmática, em transigência, não no amor universal. Isso também é um fonte de confusão porque muitos dos meus protagonistas, em meus romances, acreditam em coisas que eu não acredito. No meu último romance, Judas acredita em salvação da noite para o dia, que o mundo todo vai ver Jesus saindo da cruz e cair de joelhos, enquanto Ele diz para amarem-se uns aos outros, seus irmãos. (…) Ele acredita em salvação, eu acredito em soluções. Ele, assim como Jesus, acredita no amor universal. Eu acredito em recuperação passo a passo, nem sequer com uma recuperação completa”.

‘Eu acredito que uma pessoa curiosa é levemente melhor que uma pessoa que não é curiosa’ | Foto: Luiz Munhoz/Divulgação

A capacidade de escrever sobre personagens tão diferentes de seu criador, diz ele, vem da rotina que repete há anos. Inverno ou verão, dia de semana ou fim de semana, feriado ou não, ele conta que acorda todos os dias às 4h da manhã, sem despertador, sai caminhar pelo bairro onde vive. “Para mim, essas caminhadas de madrugada são importantes para a minha escrita porque me ajudam a enxergar tudo em proporção. Se na noite anterior, eu ouvi um político qualquer usando na televisão palavras como ‘nunca’, ‘para sempre’, ‘para toda a eternidade’, durante a minha caminhada matinal eu sei que as estrelas lá de cima estão rindo dos ‘nuncas’ dele. E a brisa suave que vem do oceano, com alguns nuvens, está rindo dos ‘para sempre’. E que ‘eternidade’ não é a eternidade dele, é outra coisa”.

Mas mais do que isso, as caminhadas servem como um exercício de fazer com que o escritor se coloque no lugar das pessoas que busca entender. Para exercitar algo que considera força motora para o trabalho intelectual: a curiosidade. O que Amós Oz também considera a principal virtude moral. “Eu acredito que uma pessoa curiosa é levemente melhor que uma pessoa que não é curiosa. Porque uma pessoa curiosa tenta se colocar na pele do outro, não para se identificar completamente com ele, mas para ter uma melhor compreensão do outro”.

“Tanto minhas atitudes políticas, quanto meu trabalho literário se originam de uma certa necessidade de compreender as pessoas. Não para concordar com elas. Palestinos: eu não admiro nenhum líder palestino, acho que liderança palestina dos últimos oitenta ou noventa anos tem sido uma catástrofe para o povo palestino e para nós. Não é admiração, não é identificação, é curiosidade. E se eu fosse um refugiado palestino, vivendo pela terceira geração em algum campo de refugiados esquecido por Deus, como eu me sentiria, o que eu pensaria?”, questiona a si mesmo, como se estivesse diante da escrivaninha onde escreve à mão, todas as manhãs. “Isso faz com que sejamos mais abertos aos outros, para ter um melhor entendimento de nós mesmos e um pouco mais imunes ao fanatismo que é a praga dos nossos tempos”.


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