Geral
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23 de junho de 2017
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11:27

Por trás da ‘polêmica’ geladeira da Lanceiros, Lilian, a mulher que fugiu do tráfico para educar os filhos

Por
Luís Gomes
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Lilian de Oliveira Luciano, uma das morados da Lanceiros que ficou sem casa desde o último dia 14 | Foto: Giovana Fleck/Sul21
Lilian de Oliveira Luciano, uma das morados da Lanceiros que ficou sem casa desde o último dia 14 | Foto: Giovana Fleck/Sul21

Então havia uma geladeira. Uma geladeira prateada. Olhando pelas fotos, parecia coisa chique. Com freezer, grandona, apareceu em imagens após a reintegração de posse da ocupação Lanceiros Negros. Ganhou as redes sociais. Virou meme. “Eu não tenho uma geladeira tão boa assim”, disseram alguns. “Como é que tem uma geladeira dessas e invade um prédio?” “Por que não vendeu a geladeira e comprou uma casa?” “Com essa geladeira, não era pobre”. Mas, por trás da geladeira tinha uma pessoa; e uma história de vida.

Ela se chama Lilian de Oliveira Luciano, a dona da geladeira. Trinta e três anos, mãe de quatro filhos. Morava na Lanceiros Negros desde abril, mas esse nunca foi o plano. Também não houve plano para deixar Alvorada, na Região Metropolitana de Porto Alegre, em 2014. Foi para tirar os filhos de perto do tráfico, em especial o mais velho, hoje com 16 anos. Lá, eles tinham uma casa, mas não tinham o futuro que Lilian queria dar a eles. Quando o marido morreu, soube que era hora de mudar. Tinha uma filha com menos de um ano.

“Optei por sair. Sempre vivi na vila, sei como funciona. Via as pessoas morrendo e sabia porque morriam. Eu sabia tudo, mas até então a gente acha que nunca vai acontecer. ‘Eu não vou sair daqui porque aqui eu conheço todo mundo, estou protegida’. E os filhos vão crescendo. ‘Ah, vai mudar’. Mas eu vi que não ia mudar. Se eu ficasse ali, ia obrigar meus filhos a conviverem com aquilo”.

E se começassem a perguntar para o filho se ele tinha visto a polícia? Lilian diz que é assim que começa o assédio do tráfico. Mas antes que viesse, recebeu uma proposta de emprego de uma prima, para trabalhar como vendedora em uma empresa que cria websites. Era sua oportunidade de vir para Porto Alegre. Veio achando que ia dar. Por um tempo, deu. Alugou um apartamento na Rua Riachuelo, no centro da Capital. Depois não deu mais.

Ficou desempregada em novembro de 2015. “Achei que ia conseguir emprego fácil, mas não foi”. Não ter como pagar a creche das filhas menores lhe dificultava a vida. No desespero para não estragar o Natal, foi vender água na Rua dos Andradas. Deu certo, salvou o Natal. Mas daí começou a faltar dinheiro para pagar o aluguel. Um mês, dois meses. O proprietário passou a pressioná-la para devolver a peça. Não teve acordo. Depois sofreu um golpe. Chegou a pagar uma caução de R$ 500 em um apartamento em que nunca pode morar. “Aí o desespero pegou, comecei a correr para todos os lados”.

O problema é que as boas ofertas que encontrava muitas vezes estavam em lugares com a presença de traficantes. “Como eu já morei em vila, eu percebia que tinha uma movimentação estranha, que tinha algo mais”. Se ela saiu de Alvorada para fugir do tráfico, para perto dele não voltaria. Foi se virando, conseguiu morar em outro lugar, mas também não conseguia pagar o aluguel. Certo dia, em abril deste ano, começou a chorar na rua. Um ambulante a reconheceu dos tempos que se cruzavam na Andradas. Lilian explicou que não tinha mais condições de pagar aluguel, por isso as lágrimas. “Aí que ele me indicou a Lanceiros”.

E lá ela foi. Marcou uma conversa com os coordenadores da ocupação, que explicaram que o local era destinado apenas a famílias que realmente não tinham outras alternativas e que não permitia, entre outras coisas, o uso de drogas. Melhor. Entre lágrimas, conseguiu explicar que a proprietária do apartamento em que estava já tinha ameaçado jogar suas coisas pela janela. Em dois dias, recebeu autorização para mudar para a Lanceiros. “Ali é a minha casa”.

O início não foi tão fácil assim. No final, tinha conseguido ter seu próprio quarto, separado dos outros por divisórias de madeira. Mas teve que dividir refeitório e banheiro com outras famílias, pessoas que não conhecia. “Na hora, o que tu pensa é que tu não vale nada. Porque tu trabalha, trabalha, chega uma hora tu cai. Tu faz as coisas certas e chega uma hora tu cai”.

Lilian parou os estudos aos 18 anos, quando engravidou pela segunda vez. A primeira foi aos 16. Foi trabalhar. Por bastante tempo, atuou como promotora de vendas. Trabalhava de domingo a domingo e mal conseguia ver os filhos. Mais tarde, com quatro crianças, perdeu o marido. Ainda assim, havia conseguido sair de perto do tráfico. Voltaria?

“Parece que tu é condenado a viver lá na miséria. Não só de dinheiro, de cultura, de estudo, porque tu não tem nada nas vilas. Lá onde eu morava, não tinha nada. Tu só via os guris na esquina fumando um baseado. Final de semana, todo mundo bebia junto e depois da beberagem se pegavam no pau. Depois tu ficava sabendo que morreu fulano, morreu ciclano. Aí tu lutou contra tudo aquilo ali, não deu certo”.

Ela se viu diante de um impasse: morar na ocupação, “aceitar a queda”, ou voltar para o local de onde tinha vindo. “Todo mundo me dizia: ‘Por que tu não volta? Aqui tu conhece todo mundo’. Eu disse: ‘Eu não vou voltar. Não vou desistir. Cheguei até aqui e não vou voltar”.

Ficou. E foi no Centro que passou a fazer faxinas, sua ocupação atual. Também é onde está a escola de seus filhos. Os mais velhos, de 16 e 14 anos, estudam na Escola Rio Grande do Sul. As duas mais novas, de 5 e 3, na Escolinha Pica-pau Amarelo, ambas no Centro. É onde ela também retornou às aulas, na Educação de Jovens e Adultos (EJA), para concluir o Ensino Médio.

Após o primeiro dia, passou a superar o baque de achar que tinha caído. “Tu tem que ter uma força muito grande, falar para ti mesmo que é uma fase. Valia muito mais a pena eu me adaptar aquele convívio, com jantar comunitário, com banheiro comunitário, porque eu estava longe dos perigos de lá”.

Os filhos passaram a experimentar uma realidade completamente diferente daquela da periferia de Alvorada. A filha mais nova tinha aula em turno integral, o que ela nunca havia conseguido pagar para os demais. “Valia a pena eu passar por aquilo ali. Aí começou a mudar o sentimento. Feliz tu não fica, porque quer chegar em casa e poder tomar um banho e descansar, e muitas vezes tu não pode porque tem outras pessoas. Mas aí tu começa a te fortificar. Amanhã vai ser melhor”.

Lilian conta a luta para fugir do tráfico e dar uma vida digna aos quatro filhos | Foto: Giovana Fleck/Sul21

E veio a reintegração de posse. Na véspera, os moradores ainda acreditavam que a operação não ia ser realizada com as famílias dentro do prédio. No dia, porém, mandou os filhos para a casa da mãe, em Alvorada. Ficou então junto com outros adultos no terceiro andar, sentados no chão. Lá de dentro, ouviu a confusão que ocorria do lado de fora. Também sentia o forte cheiro das bombas de gás lacrimogêneo. Lá dentro, não houve agressões físicas por parte da Brigada Militar, conta. Houve xingamentos. “A forma que eles te abordam não é diferente das favelas. Não interessa quem tu é. Tu é alguém que para eles não serve e tem que sair”.

Relata que os brigadianos falavam rispidamente, pressionando para que retirassem pertences rapidamente e só o essencial. “Era para levar só o que era importante, mas na hora tudo é importante. Eu olhei para as roupas, e as roupas eram importantes. Mas não era, era para pegar o básico”.

A “sorte” de Lilian é que, como acabou ficando para o final, conseguiu auxílio dos carregadores disponibilizados pelo Estado. Assim, acabou salvando suas roupas e as dos filhos, cadernos, um microondas, um fogão e a tal geladeira, que sofreu várias escoriações. Para trás, no entanto, ficaram sofá, armários, livros e brinquedos.

Foi em uma fase com pouco trabalho como promotora de vendas que a geladeira prateada veio parar na vida de Lilian. Era 2003, foi indicada para substituir uma pessoa em uma faxina na casa de um americano que trabalhava no Aeroporto Salgado Filho. “Este senhor gostou do meu trabalho e mantive a faxina”.

Apesar de mal conseguir compreender o que o homem falava, acabou trabalhando quase que diariamente em seu apartamento e ganhando a confiança a ponto de ajudá-lo a fazer compras. Em uma ocasião, o acompanhou em uma ida a uma loja em um shopping da Capital. Lá, o americano comprou um sofá, um microondas, um liquidificador, uma cama “tri grandona e uma geladeira. “Quando ele foi embora, ele perguntou se eu queria, o liquidificador. ‘Te gusta, te gusta?’”. No final das contas, acabou dando para Lilian o sofá, a cama e a tal geladeira. “Ele ainda me deu R$ 600 para a festa da minha filha nenê”.

Ela viu a reação que a foto da geladeira teve nas redes sociais. O deboche. Os memes. As mensagens de ódio. “Quando me contaram, eu fiquei com ódio. Eu trabalhei bastante lá. Eu continuei quase não tendo vida. É foda. Eles não sabiam que eu deixava os meus filhos com a minha mãe, que eu via eles uma vez por semana”.

Do conforto de seus lares, os internautas diziam que ela tinha que vender a geladeira. “Eu tentei vender a geladeira para pagar o aluguel e quiseram me dar R$ 500. É revoltante. Se não fosse o pessoal ajudar com o carreto, eu não tinha nem dinheiro para trazer a tal geladeira do Centro Vida. Da onde que eu tinha dinheiro? Sempre trabalhei, nunca tive dinheiro sobrando”.

Lilian e os quatro filhos agora estão na Ocupação de Mulheres Mirabal. A geladeira, que chegou a ser levada para o Centro Vida, também está.

“Eu resolvi esperar até que aconteça alguma coisa. Se tirarem a gente da Mirabal, eu vou para debaixo da ponte, mas não vou desistir. Não vou migrar para nenhum lado mais. Até conseguir a casa, até eles terminarem os estudos, eu vou continuar aqui”.

Lilian segue trabalhando de dia e estudando à noite para que os filhos não precisem trabalhar. “Se eu já to me ferrando para eles estudarem, eles vão estudar então”.

Agora também decidiu lutar. “Eu sempre fui contra a injustiça, agora eu decidi me inteirar e participar. Quando tiver passeata pelos direitos do trabalhador, eu vou estar junto. Decidi que vou aprender sobre política, que nunca aprendi. Só sei o que falam na televisão. Se eles pensavam que a gente ia desistir, agora a gente está mais forte”.

“Agora a gente está mais forte” | Foto: Giovana Fleck/Sul21

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