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28 de maio de 2017
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12:29

‘Substantivo Feminino’: filme conta a história de ativismo de duas ecologistas gaúchas

Por
Sul 21
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Substantivo Feminino |Foto: Divulgação/DanielaSallet

Fernanda Canofre

“Na maior parte do mundo civilizado, a palavra natureza é um substantivo feminino”, dizia Giselda Castro. Agora, “Substantivo Feminino” é também o título que os diretores Daniela Sallet e Juan Zapata pegaram emprestados para batizar o filme que conta a história de 30 anos de ativismo e luta de Giselda e Magda Renner, que ajudaram a pautar a Constituinte de 1988 e a mudar a forma como se discutia meio ambiente no Brasil.

A amizade e a militância da dupla começou em Porto Alegre, em 1964, quando ajudou a fundar a Associação Democrática Feminina Gaúcha (ADFG). A entidade ajudava a promover ações de cidadania para mulheres da periferia e oferecia bolsas de estudo. Em 1974, conheceram o ambientalista José Lutzenberger. Foi através do contato com ele e com a geração de ambientalistas gaúchos que ajudou a moldar a visão preservacionista no debate sobre meio ambiente, que a própria ADFG mudou seu foco
Hidrelétrica para ecologia.

Durante as três décadas de militância, Giselda e Magda participaram de ações contra o uso indiscriminado de agrotóxicos, cobraram o Banco Mundial por projetos em países do Terceiro Mundo que afetavam o meio ambiente, denunciaram e defenderam a Amazônia, durante o incêndio provocado pela Volskwagen, nos anos 80, e quando veio à tona o uso do agente laranja (o mesmo que serviu como arma durante a Guerra do Vietnã), para a construção da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, nos anos 80. O ativismo pioneiro das duas gaúchas ecoou tanto que chamou a atenção até do Serviço Nacional de Informação (SNI), o órgão de inteligência do regime militar, que manteve vigilância sobre elas durante anos.

O filme contando sobre a trajetória das duas estreia no próximo dia 04, na 6ª Mostra Ecofalante de Cinema Ambiental. Com entrevistas com familiares, amigos e vozes importantes do ativismo pelo meio ambiente, como a ex-ministra do governo Lula, Marina Silva, somadas a imagens de arquivo e do acervo de Giselda, o documentário é uma homenagem à memória de duas das mais importantes ativistas brasileiras – Giselda faleceu em 2012 e Magda em outubro do ano passado – mas também uma forma de mostrar como a luta delas iniciada há mais de 30 anos, segue atual.

Substantivo Feminino |Foto: Divulgação/DanielaSallet

O Sul21 conversou com a diretora Daniela Sallet, que também assina o roteiro da produção:

Sul21: Como surgiu a ideia do filme e qual a tua relação com as histórias da Magda e da Giselda?

Daniela Sallet: Tive o privilégio de conviver com a Giselda, fui apresentada a ela e a sua história pela nora, Carmen Crochemore, minha colega na TV Assembleia. A partir daí, a visitei em vários momentos , sempre muito bem recebida pela Giselda, mesmo que ela já apresentasse a saúde debilitada. Sou muito grata por essa breve convivência, havia um afeto recíproco entre nós. Chegamos a planejar uma gravação ainda para a TV Assembleia, o que acabou não se realizando. Então, após a morte da Giselda, em 2012, senti que era necessário resgatar sua militância, indissociável da trajetória da Magda Renner. E partimos para esse projeto tão inspirador quanto desafiador uma vez que já não podíamos ter as duas protagonistas falando das suas vivências. A partir daí foi um dedicado processo de pesquisa e gravações, que resultou no filme, cinco anos depois.

Sul21: Qual a importância delas na luta ambiental?

Daniela Sallet: Magda e Giselda se inspiraram nele e fizeram parte de um grupo de ecologistas liderado por José Lutzenberger. Aquela geração dos anos 70 (que também tinha Hilda Zimmermann, Augusto Carneiro e Flávio Lewgoy, entre outros notáveis) foi pioneira e imprescindível na construção de uma cultura da preservação. O Judiciário, por exemplo, precisava do conhecimento e da contribuição dos ecologistas para as decisões uma vez que não existia legislação no Brasil sobre o tema. Elas estudavam muito e tinham uma rede internacional que permitia estarem sempre muito bem informadas. Magda e Giselda envolveram as mulheres na luta ambiental, já que transformaram uma entidade voltada para ações sociais (ADFG) em uma entidade ecológica. E trouxeram para Porto Alegre, o braço brasileiro da organização internacional Friends of the Earth (Amigos da Terra), que existe em cerca de 70 países. Abordavam a Ecologia num sentido amplo, não era apenas o olhar conservacionista. As duas utilizavam sua origem social e os seus relacionamentos para abrir as portas aos jovens do movimento ambiental, que não tinham esse acesso. Eu vejo duas mulheres ousadas e determinadas que surpreenderam familiares e amigos com uma dedicação imensa numa época em que poucos sabiam o que era Ecologia.

Sul21: E qual o significado que a questão de gênero de ambas teve no contexto em que elas estavam inseridas?

Daniela: Entendo que foram duas mulheres de vanguarda, inovadoras em opiniões e atitudes. Primeiro, deixaram de cuidar apenas do lar, como era a expectativa para as mulheres da época, para agir pelo coletivo. Giselda Castro e Magda Renner foram pioneiras do que chamamos hoje de “empoderamento feminino”. Educadas, inteligentes, bem informadas, convincentes, buscavam a eficácia das suas ações, não apenas gerar manchetes na imprensa. Utilizavam-se de uma condição social privilegiada para defender suas convicções quando poderiam estar confortavelmente dedicadas a filhos e netos. Tinham trânsito no meio político que ainda hoje é muito masculino, imagine lá nos anos 60 e 70. E sempre buscavam contagiar outras mulheres com ideias que seguem muito atuais, como o consumo consciente e a reciclagem do lixo. Elas contribuíram muito para a difusão dos preceitos ecológicos e começavam em casa, convencendo maridos, filhos e netos das atitudes que consideravam necessárias.

Substantivo Feminino |Foto: Divulgação/DanielaSallet

Sul21: Como escolheste o nome do filme? Pode falar um pouco sobre ele?

Daniela: Foi logo no processo inicial da minha pesquisa, quando buscava conhecer melhor a história das duas. No livro “Pioneiros da Ecologia”, de Elmar Bones e Geraldo Hasse, Giselda faz referência a esse termo dizendo que “na maior parte do mundo civilizado a palavra natureza é um substantivo feminino”. Entendi que esse deveria ser o nome do filme. Primeiro, porque era algo referido por uma das protagonistas, e a isso agregavam-se outras representações como o adjetivo substantivo significando algo essencial, substancioso. Já o feminino, não só fala do gênero das biografadas, mas é significativo porque as questões femininas sempre foram inerentes às suas causas como a qualificação de mulheres para o trabalho e a nossa inserção no mundo político. Sobre o filme, como durante a militância delas havia poucos recursos técnicos para gravações, tivemos dificuldade em resgatar imagens. Por isso usamos fotografias de época, reportagens e entrevistas cedidas por emissoras de TV além de recortes de jornais. O NAT, Núcleo Amigos da Terra, generosamente abriu as portas do arquivo organizado por elas para a nossa pesquisa. A demora na finalização do projeto teve suas vantagens, sempre descobríamos algo novo com a colaboração de muita gente. Pra ter uma ideia, entrevistamos 45 pessoas, 39 ficaram no corte final.

Sul21: Teve alguma descoberta que fizeste durante a filmagem?

Daniela: Cada nova gravação trazia uma história. Sem falar que, ao acaso, a família da Giselda Castro descobriu uma fita K7. Era a Giselda falando sobre as atividades da instituição, um verdadeiro relatório. Essa fita tornou-se o fio condutor do filme. Mas o mais revelador, aconteceu em Brasília. Estava buscando fotografias das duas com os presidentes e fui até o Arquivo Nacional. Ao invés de fotografias, descobrimos registros do Serviço Nacional de Informações do regime militar, o SNI. Magda Renner e Giselda Castro foram vigiadas de perto, são mais de sessenta documentos com os nomes delas. Surpreende saber que duas donas de casa ricas do sul do Brasil representavam uma ameaça.

Substantivo Feminino |Foto: Divulgação/DanielaSallet

Sul21: E o que diziam os documentos que vocês acharam?

Daniela: Revela que elas foram monitoradas de perto a partir do momento em que passaram a fazer cobranças do governo para solucionar questões ligadas ao meio ambiente, menor abandonado e controle da natalidade. Como elas eram muito solicitadas pela imprensa local, o conteúdo de entrevistas também era acompanhado por informantes do regime. Ate uma jantar na casa do cônsul dos Estados Unidos em POA, que elas participaram junto com um pequeno grupo, foi relatado ao SNI.

Sul21: Qual a importância de se recuperar essa história no momento atual que vivemos?

Daniela: Magda e Giselda não tinham nenhum interesse em política partidária. Elas tiveram relacionamento com todos os governos, independente do partido, interessava que as reivindicações ecologistas fossem atendidas. Em 1988, durante a Assembleia Nacional Constituinte, iam à Brasília e cobravam incisivamente o voto dos parlamentares gaúchos. Eram recebidas pelos presidentes da República e falavam com políticos, empresários e líderes de entidades mundiais. Nesse imensa crise de representatividade que vivemos, imagino que as duas estariam na linha de frente. Magda e Giselda mostraram que praticar a cidadania não é para os acomodados, dá trabalho. E o cenário atual mostra o quanto é necessária essa fiscalização da sociedade civil. Por outro lado, o meio ambiente enfrenta muitas ameaças e acho simbólico terminarmos o filme em um momento de tantas preocupações dos ambientalistas. Cito como exemplos, aqui no Rio Grande do Sul a extinção da Fundação Zoobotânica (FZB) e no Congresso Nacional tentativas de flexibilizar ainda mais a venda de agrotóxicos no país. Estou certa de que elas não acompanhariam tudo da janela. Se estivessem aqui, Magda e Giselda seriam protagonistas mais uma vez.

Substantivo Feminino |Foto: Divulgação/DanielaSallet

Sul21: Qual a mensagem que esperas passar com o filme?

Daniela: Acho que Magda e Giselda deixaram um grande legado de amor à humanidade porque defender a natureza e o meio ambiente é defender a sobrevivência de todos. Tudo está interligado. Não há vida sem água potável e não haverá água potável se os químicos da indústria e das lavouras contaminarem rios e mananciais. É necessário que todos tenham entendimento sobre essa conexão. As meninas, como eu gosto de chamá-las, também nos provocam a sair da zona de conforto para o ativismo, seja qual for a causa escolhida. Quando deixamos de olhar apenas para o próprio umbigo, a vida ganha novo sentido. Pessoalmente fazer o filme foi uma grande aprendizagem sobre persistência e trabalho colaborativo. Muita gente ajudou a viabilizar esse projeto, desde o co-diretor Juan Zapata passando pelos profissionais que generosamente atuaram com cachês simbólicos ou voluntariamente até ambientalistas que conviveram com Magda e Giselda. Amigos contribuíram financeiramente uma vez que não tivemos nenhum patrocínio e as famílias das biografadas também foram muito importantes. No caso da Giselda, ela tinha um acervo grande de documentos que nos foi disponibilizado. Acho que as palavras da jornalista Lilian Dreyer, biógrafa do Lutz, traduzem bem o que sinto com esse trabalho finalizado. O que estamos tentando é “fazer justiça com o imenso papel que a Magda e a Giselda tiveram na construção de uma cultura voltada para a vida”.

Substantivo Feminino |Foto: Divulgação/DanielaSallet

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